sábado, 20 de julho de 2013

Só saem duques


Luis Bárcenas



   O imperativo de estabilidade política é o argumento de Mariano Rajoy para recusar a demissão, cumprir a legislatura, e calar os críticos dentro do "Partido Popular" numa altura em que a dimensão da corrupção partidária e institucional em Espanha extravasa os limites da decência.

   A desmesura e a desfaçatez, velhas pechas da arrogância dos poderosos em Espanha, estão na origem da desonra de Rajoy que, se as coisas correrem pelo lado pior, arrisca ser chamado a responder à justiça.

   Primeiro, o tesoureiro do partido Luis Bárcenas ultrapassou todas as marcas ao acumular património imobiliário e contas em bancos suíços num montante superior a 50 milhões de euros após 28 anos a gerir as contas dos populares.

   Depois, o partido viu-se obrigado relutantemente a deixar cair Bárcenas quando o esquema de contabilidade paralela e os pagamentos não declarados feitos pelo próprio tesoureiro a dirigentes do PP vieram a público.

   O temor a eventuais denúncias do antigo senador pela Cantábria era tal que, apesar Barcénas abandonar o partido em 2010, a ruptura total só se consumou depois de Janeiro deste ano quando os jornais "El País" e "El Mundo" começaram a publicar documentação altamente comprometedora.

   O tesoureiro, detido desde 27 de Junho, facultou, entretanto, ao "El Mundo" suficientes sms comprovando que manteve contacto directo com Rajoy até Março deste ano solicitando apoio a troco de silêncio sobre a contabilidade paralela e pagamentos não declarados.

   O escândalo "Gürtel" – um clássico financiamento partidário ilegal, neste caso dos conservadores, a troco de concessões de terrenos, autorizações de projectos e adjudicações diversas nas regiões e autarquias sob administração do PP – que rebentara no início de 2009 converteu-se numa afronta moral a partir do momento em que Bárcenas acossado pela investigação judicial passou a confirmar as suspeitas.

   O PP que começou por negar qualquer credibilidade às acusações de financiamento ilegal entre 1990 e 2008, desqualifica agora o seu antigo tesoureiro, cerrou fileiras em defesa de Rajoy e reitera ter condições para iniciar a recuperação da economia até às eleições no final de 2015.

   Poucas vozes críticas se têm feito ouvir entre os populares e as excepções mais relevantes – a líder do partido em Madrid, Esperanza Aguirre, e o catalão Alejo Vidal-Quadras um dos vice-presidentes do Parlamento Europeu – não se encontram em condições de representar uma alternativa a Rajoy.

   A maioria absoluta do PP permitirá derrotar moções de censura e os socialistas, cujos actos de corrupção partidária na Andaluzia estão sob a alçada da justiça – tal como sucede com os nacionalistas de centro-direita da "Convergència Democràtica de Catalunya" – carecem de credibilidade em matéria de moral política.

   No confronto com os governos regionais sobre partilha de receitas e poderes o executivo madrileno terá, contudo, dificuldades acrescidas devido ao processo de reconfiguração de alianças e patrocínios.

   Os parcos indícios de recuperação económica ou os primeiros passos para recapitalização da banca não impedem que as previsões apontem no sentido de até ao final do próximo ano o desemprego, um indicador fatal, se cifre em 27% na estimativa governamental ou 28%, segundo a OCDE.

   A ruína moral dos conservadores agrava, por sua vez, a desconfiança generalizada nas instituições, incluindo a Casa Real, e ameaça a hegemonia bipartidária, envolvendo alianças pontuais com forças nacionalistas e regionalistas, típica do pós-franquismo.

   Em Madrid, uma maioria nas Cortes é a caução política da imoralidade e os mercados financeiros conformam-se, mas já se retraem quando em Lisboa outra maioria parlamentar aguarda pelo destino de um governo desqualificado.

  Na Península Ibérica baralha-se e dá-se de novo, mas só saem duques.

Jornal de Negócios

17 Julho 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/joao_carlos_barradas/detalhe/so_saem_duques.html

domingo, 14 de julho de 2013

O desatino português

 



  É muito pouco crível que o Estado português consiga financiar-se nos mercados obrigacionistas de forma autónoma e sustentável antes de terminar o programa de ajuda em Junho de 2014.

  Razões de ordem interna inviabilizam, em primeiro lugar, o cumprimento dos compromissos assumidos com a troika que terão de ser renegociados.

  O programa de austeridade, sob tutela de Vítor Gaspar, reduziu a despesa pública à custa da quebra do consumo interno e aumento de desemprego, falhando metas de redução do défice e redundando num recuo do PIB de 3,2% em 2012.

  O fracasso de uma política de austeridade – cujas linhas essenciais foram subscritas pelo PSD, PS e CDS – incapaz de gerar dinâmicas de aumento de capacidade competitiva e de relançamento económico obrigou, entretanto, a revisões de prazos relativas, por exemplo, a reduções do défice orçamental acordadas com a "Comissão Europeia", o "Banco Central Europeu" e o FMI.

  Os arrufos governamentais e a solução de compromisso avalizada por Cavaco Silva deixaram em aberto a questão de saber se os partidos da coligação pretendem prosseguir o programa de Gaspar, que esbarrou contra o Tribunal Constitucional, ou negociar outra solução com os credores externos.

  Esta incerteza, aliada à cizânia política e desacerto na orgânica governamental, além do notório desprezo mútuo entre os líderes da coligação, é incentivo suficiente para todo e qualquer grupo de interesses com capacidade de pressão e mobilização, seja no seio da administração pública ou fora da esfera do estado, fazer frente ao executivo.

  Jogar com as contradições no executivo e nos partidos que o sustentam no parlamento de forma a adiar ou mitigar tentativas de reordenação económico-social consideradas prejudiciais, injustas ou ignaras está ao alcance de sindicatos, institutos públicos e grupos de pressão sectoriais independentemente das reivindicações dos partidos de oposição.

   O PS até ao momento não apresentou políticas alternativas credíveis no contexto europeu e a contestação social – em particular acções da CGTP e UGT com apoio do PCP e BE – mostra-se esparsa e sem fôlego para alimentar movimentos subversores dos actuais equilíbrios partidários maioritários no parlamento.

   Os bloqueios a veleidades reformistas em Portugal, designadamente na reconversão do aparelho de estado e do clientelismo partidário e empresarial, revelam, por sua vez, no essencial, situações muito semelhantes ao ocorrido na Grécia uma vez esboroadas as bases sociais de apoio a reestruturações de fundo.

   A incapacidade de acção política efectiva por parte de Lisboa será tolerada até às eleições alemãs de Setembro, mas o panorama começará a mudar no Outono ante a iminência de nova reestruturação da dívida de Atenas, obrigando governos europeus e provavelmente também o FMI a assumirem perdas, o agravamento da recessão cipriota, as incertezas espanholas e o provável resgate da Eslovénia.

   Partindo do princípio de que na Alemanha o tribunal de Karlsruhe não agravará os problemas e considerará constitucional o "Fundo Europeu de Estabilização Financeira", o BCE, por seu turno, terá até ao final do ano de adoptar medidas, conforme recomenda o FMI, para evitar "dados de longo prazo ao crescimento potencial", tanto mais que irá confrontar-se com os efeitos do abrandamento dos estímulos da "Reserva Federal".

   É neste contexto turbulento que Portugal, necessitado de 16,3 mil milhões de euros para pagamentos em 2014, negoceia a "assistência financeira a título cautelar" do "Mecanismo Europeu de Estabilidade" para empréstimo ou compra de dívida nos mercados primário e secundário.

   Conseguir este apoio de forma a concretizar uma segunda emissão de dívida a dez anos para beneficiar do programa do BCE de compra dívida no mercado secundário tornou-se no desiderato maior de um governo carente de apoio social e de coerência programática.

   "Este governo não cairá porque não é um edifício..."

   "O empréstimo faz-se ou não se faz?"

   Há coisas que nunca mudam.

Jornal de Negócios
10 de Julho 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/o_desatino_portugues.html




sexta-feira, 5 de julho de 2013

Dilemas chineses





   Uma crise de liquidez no mercado interbancário gerada e mal gerida pelo Banco Central de Pequim e o lançamento de uma campanha de propaganda para reafirmar a liderança do partido comunista ilustram os dilemas que desde os anos 80 definem a política chinesa.

  O Banco Central reduziu no início de Junho a oferta de liquidez no mercado interbancário para forçar cortes no crédito, sobretudo ao sector informal financeiro, nominalmente regulado pelas administrações locais e regionais e equivalente a cerca de 10% do PIB, segundo estimativas conservadoras.

   Um inaudito aumento de 52% na concessão de crédito no mercado interno nos primeiros cinco meses deste ano em relação a idêntico período de 2012 lançara o alarme no Banco Central e levou à adopção de medidas extremas.

   Ao reduzir a injecção de liquidez, o Banco Central provocou uma alta histórica das taxas "overnight" e a sete dias viu-se confrontado com rumores sobre a insolvência do "Banco da China", um dos quatro maiores bancos comerciais do estado, enquanto os mercados internacionais reflectiam temores de uma crise de crédito na segunda economia mundial.

   Zhou Xiaochuan acabou por vir assegurar que o Banco Central prossegue uma política de regulação e ajustamento da liquidez para garantir a estabilidade dos mercados financeiros e de um sistema bancário sólido e solvente, mas, as declarações do governador não dissiparam dúvidas sobre a capacidade das autoridades para controlarem fluxos de crédito numa conjuntura de contracção da economia.

                             Imponderáveis do crédito

   O sector imobiliário, por exemplo, registou em Junho uma subida de preços de 7,4% em relação ao ano anterior – de acordo com dados de uma das maiores agências chinesas, a "SouFun" –, confirmando que os investidores encontraram formas de contornar as restrições ao crédito, designadamente a proibição de compra de segunda habitação.

  Após colapsos pontuais em 2011 – designadamente em Ordos, na Mongólia Interior, e em Wenzhou, na província costeira de Zhejiang, no sudeste da China – que puseram em causa a angariação de receitas pelos governos locais através de leilões de concessões de terra para construção e desencadearam falências em cadeia, o imobiliário é de novo visto como investimento rentável.

  A alta de preços num sector que representa 13% do PIB poderá, contudo, revelar-se de pouco dura a manterem-se restrições ao crédito para conter a dívida de administrações locais (equivalente a um montante próximo dos 25% a 36% do PIB) e obrigar os quatro maiores bancos do país (responsáveis por cerca de 40% do total de empréstimos) a fazerem provisões para obviar a maus devedores.

  A contracção do sector financeiro informal apresenta, por sua vez, o risco de asfixiar grande número de pequenas e médias empresas.

  Num universo de 40 milhões de PME 97% não têm acesso a crédito bancário, segundo dados do banco de investimentos de Pequim "CITIC" , vendo-se obrigadas a recorrer a agentes financeiros não regulados pelo poder central.

   O fim do ciclo de investimentos empreendidos sob tutela do estado entre 2008 e 2010, que beneficiou essencialmente as grandes empresas públicas, a impossibilidade de ampliar quotas nos mercados de exportação, associada ao aumento de custos salariais e à apreciação do reminbi, conjugam-se para uma redução da taxa de crescimento económico.

                                         Confiar no líder

   O objectivo oficial para este ano cifra-se em 7,5%, abaixo da média de crescimento de 10,5% da última década e justifica que Xi Jinping – presidente desde Março e líder do partido eleito em Novembro do ano passado – se tenha visto obrigado a uma nova campanha de propaganda.

   A legitimidade comunista deriva presentemente da capacidade para promover melhorias nas condições materiais de vida da população e o partido depara-se com crescentes dificuldades para evitar defraudar expectativas.

   A nova liderança é herdeira do Plano Quinquenal 2006-2010 que visava criar uma "sociedade harmoniosa" e dava por esgotado – devido ao envelhecimento populacional, degradação ambiental e crescentes assimetrias sociais e regionais – o modelo de desenvolvimento promovido pelas reformas de Deng Xiaoping no final da década de 70.

   Na herança ideológica de Xi encontra-se, ainda, a promoção do consumo interno e melhoria de qualidade de vida, destacada para o quinquénio 2011-2015, o que justifica que o líder venha agora declarar que o desempenho dos responsáveis do partido não deve apenas ser apreciado pelo seu papel na promoção do crescimento económico.

   Tal como os antecessores e na ressaca de sucessivos escândalos de corrupção – entre os celerados mais recentes destacam-se Bo Xilai, chefe do partido em Chongqing, e Liu Zhinjun, ministro dos transportes ferroviários – Xi apela à integridade e probidade dos 85 milhões de membros do partido e à confiança na liderança comunista.

   Um apelo à confiança e à crença no sonho de uma China próspera e influente é a mensagem, pouco substancial, que tem para oferecer um presidente que, preservando o monopólio do poder, pretende gerir reformas inadiáveis numa conjuntura de desaceleração do crescimento económico.


Jornal de Negócios
3 de Julho 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/dilemas_chineses.html

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Dilma e o crime hediondo



   À imagem de Lula da Silva, quando em 2006 viu ameaçada a reeleição pelo escândalo do "Mensalão", Dilma Rousseff vem a um ano das presidenciais propor a convocação de um "plebiscito popular" para reformar o sistema político.

   A presidente, procurando o apoio de governadores e prefeitos de capitais, adiantou, em linguagem pouco precisa, que a consulta visaria autorizar "um processo constituinte específico".

   Só o Congresso pode convocar um plebiscito e, desde logo, Dilma está cativa dos aliados do "Partido do Movimento Democrático Brasileiro", nomeadamente do seu vice-presidente Michel Temer e dos líderes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara dos Deputados, Henrique Alves.

  A oposição, em especial o "Partido da Social Democracia Brasileira", os "Democratas" e a "Mobilização Democrática", criticam Dilma por pretender usurpar competências do Congresso e acusam a presidente de demagogia ao avançar com pactos de regime em áreas económicas, sociais e de justiça sem prévia discussão.

   A reforma reentrou no debate oficialista e oposicionista a partir do momento em que manifestações em São Paulo a 13 de Junho contra aumentos de tarifas de transporte (área de tutela estadual) foram reprimidas de forma torpe e brutal pela polícia e se agigantaram num amorfo e incoerente movimento de constestação à política e aos partidos.

                          Antes que o verme roa as frias carnes

   Expectativas defraudadas da emergente classe média e temores que restrições orçamentais motivadas pela contracção do crescimento económico e alta inflacionária – em particular o défice orçamental equivalente a 2,9% do PIB e uma inflação acima dos 6,5% definidos como tecto para 2013 pelo Banco Central – contam-se entre os motivos difusos que alimentam os protestos.

  A injustiça social que deficientes, medíocres ou péssimos serviços públicos, em particular transportes e saúde, e a elevada carga fiscal (36% do PIB) representam numa altura em que o Brasil aposta em desmesurados investimentos de prestígio pelo Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos ficaram a claro num momento preciso e muito tradicional do calendário político usado para aumentos de tarifas: um ano após as eleições municipais e locais e um ano antes das presidenciais.

  A velha tradição despudorada do paulista Ademar de Barros, que vicejou corrupto dos anos 30 até ao advento da ditadura militar na década de 60, do "rouba, mas faz", já quadra mal.

  A corrupção implica que o que se faz, faz-se mal e muito mais caro à conta do erário público.

  A evidência surge no descontrolo orçamental das obras para o Mundial de Futebol em que materiais de segunda ordem, mão-de-obra desqualificada, estudos mal concebidos, e favorecimentos pessoais e empresariais, carregam uma factura já de si excessiva e injustificada ante as assimetrias sociais do Brasil.

                                      A magna corrupção

  Face a uma questão, ignorada por muitos, apesar de alertas diversos (vide nesta coluna; por exemplo: "Dilma e o rodízio de ministros, 2 de Novembro de 2011) surgem facções do "Partido dos Trabalhadores", incluindo sectores apostados na governamentalização do Ministério Público, a aplaudir a proposta da presidente em tipicar a corrupção com dolo, sob forma consumada ou tentada, em "crime hediondo", tal como sucede com o homicídio, o genocídio ou o estrupo.

   A corrupção é mais do que crime de peculiar gravidade; é estruturante do sistema político do Brasil e essencial para sustento de clientelas.

   Dilma apresenta, neste particular, um cadastro pesadíssimo, por conivência e associação política com malfeitores diversos desde que entrou para o governo em 2002, por mais que pretenda ignorar o óbvio e será incapaz de promover qualquer reforma significativa.

   Erenice Guerra, secretária-executiva da Casa Civil, ou seja, a assessora principal para coordenação do governo, parceira política de Dilma desde 2003, viu-se obrigada a apresentar a demissão em Setembro de 2010 por suspeitas de corrupção e acabou com processo arquivado dois anos depois.

   A chegada de Lula ao Palácio da Alvorada trouxe para a área do poder grupos tradicionalmente excluídos dos centros de decisão.

  A integração do "Partido dos Trabalhadores" num quadro político clientelar e pulverizado pela presença de mais de duas dezenas de partidos no Congresso e um sistema federal em que os desequilíbrios de peso relativo entre os 26 estados são característica marcante acabou por alargar a viciação nepotista e corrupta.

   O esquema ilícito de canalização de fundos para compra de votos no Congresso, o "Mensalão", denunciado em Setembro de 2004 e que um ano depois custaria a chefia da Casa Civil a José Dirceu, substituído por Dilma, foi um momento paradigmático de despudor e sinal de adesão plena de velhos contestatários à desmesura da política como expressão dos interesses mais díspares e inconfessáveis.

                                            A contestação

   A incorporação de novos sectores e suas reivindicações está a dar-se a ritmo irregular e, por vezes, extravasa das normas de integração tacitamente assumidas.

   Surpresas foram propiciadas, por exemplo, em 2010 pelo movimento "Ficha Limpa" visando a interdição de políticos condenados por crimes graves e pelo forte apoio de crentes evangélicos a Marina Silva que obteve 19% dos votos na primeira volta das presidenciais em Outubro do mesmo ano.

   Prestes a fechar-se um ciclo expansionista da economia, promovido pelo "Plano Real" que Fernando Henrique Cardoso lançou em meados de 1993, a repartição de recursos e investimentos para obviar a desigualdades sociais e garantir competitividade implica novas opções políticas.

   Os tumultos e a desordem, a baderna nas ruas e na política, são sinal de repúdio pelo crime hediondo em que viceja a política brasileira.

Jornal de Negócios
26 de Junho 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/dilma_e_o_crime_hediondo.html

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Guerras por procuração





   Armar a contragosto facções rebeldes para forçar Bashar al Assad a negociar um cessar-fogo e um acordo político que pacifique a Síria é um erro táctico a que Obama se conformou para aplacar pressões intervencionistas em Washington e que acabará por agudizar a guerra civil.

   Só o fornecimento de grandes quantidades de armas, incluindo mísseis anti-aéreos, poderia reforçar significativamente a capacidade militar do "Exército Livre Sírio" sob o comando de Salim Idriss, o general sunita que desertou há um ano e em que Washington aposta.

   Financiar e armar com parcimónia é ineficaz, acarreta custos políticos desproporcionados e mesmo assim o treino de combatentes e o controlo da distribuição de armas obrigará a uma maior presença no terreno de assessores militares e agentes secretos norte-americanos, britânicos e franceses.

   O desvio de armamento para forças indesejáveis aos olhos das potências ocidentais e da Turquia, mas apoiadas pela Arábia Saudita e o Qatar, é inevitável tanto mais que frentes islamitas radicais como "Ahrar al Sham" combatem em aliança ora com outros grupos islamitas do "Exército Livre Sírio", ora com os jihadistas da "Jahabat al Nusra".

   A criação de zonas seguras, sob o pretexto de protecção humanitária, pressupõe a imposição unilateral de zonas de exclusão aérea no Norte, a partir da Turquia, e no Sul, com bases na Jordânia, que darão pretexto à Rússia e ao Irão para aumentar as vendas de armas a Damasco.

   Zonas de exclusão aéreas implicam confrontos directos com forças governamentais muito para além das áreas destinadas a protecção e acarretam riscos de escalada militar regional e internacional.

  A alegada utilização pontual de armas químicas pelas forças fiéis a al Assad, pretexto em Washington, Paris e Londres para apoio militar directo a grupos da oposição, continua, entretanto, a gerar polémica.

   As divergências patentes na cimeira do G8 tornam claro que o confronto com russos e chineses no Conselho de Segurança dificultará uma eventual operação internacional com apoio da ONU caso se revele necessário intervir para neutralizar arsenais de armas químicas.

   Múltiplas e antagónicas forças integram frentes de oposição não-jihadistas – "Coligação Nacional", "Conselho Nacional", "Comité Nacional de Coordenação", "Exército Livre" – sem que ao terceiro ano de guerra tenham acordado um programa político mínimo para negociação com al Assad ou como plataforma de transição no caso de renúncia ou morte do líder alauíta.

   Num país ameaçado pela partilha territorial a entrada em combate ao lado das forças governamentais do "Hizballah" libanês acentuou o cunho étnico-religioso do conflito, seguindo-se a ruptura entre Damasco e o Cairo com o presidente Al Nusri a dar corpo a apelos de líderes dos "Irmãos Muçulmanos" para a criação de uma frente alargada sunita contra os apoiantes xiitas do herético regime alauíta.

   Os recentes ganhos das tropas de al Assad – a captura de Al Qusair consolidou o domínio dos acessos ao Líbano e às regiões costeiras – indiciam novas ofensivas governamentais para controlo das principais cidades, sobretudo de Aleppo, remetendo os opositores para regiões do Norte e Leste do país.

   Um pacto informal de não-agressão com as milícias curdas no nordeste permitirá, eventualmente, neutralizar mais uma ameaça ao regime que conseguiu estancar deserções militares e mobilizar novos contigentes de combate, ante grupos oposicionistas com desigual capacidade de combate e que carecem de coordenação.

   O ascendente militar de al Assad vai a par do temor pelas depredações e ameaças de grupos salafistas jihadistas que é cada vez maior entre as minorias cristã, druza, ismaialita, curda, e motivo de apreensão para muitos sunitas.

   A guerra civil síria é um conflito generalizado em que clivagens políticas são fortemente marcadas pelas identidades étnico-religiosas e vê agora acentuar-se o confronto por procuração.

   Sunitas anti-al Assad, salafistas do universo da jihad, potências ocidentais em busca de aliados ou clientes, confrontam-se com iranianos e russos, ante a não-interferência interessada de Israel apostada na debilitação de um estado rival e a crítica de chineses, indianos ou brasileiros ao unilateralismo intervencionista de Washington.

   Armar a contragosto facções rebeldes para forçar Bashar al Assad a negociar um cessar-fogo e um acordo político que pacifique a Síria é um erro táctico a que Obama se conformou para aplacar pressões intervencionistas em Washington e que acabará por agudizar a guerra civil.

   Só o fornecimento de grandes quantidades de armas, incluindo mísseis anti-aéreos, poderia reforçar significativamente a capacidade militar do "Exército Livre Sírio" sob o comando de Salim Idriss, o general sunita que desertou há um ano e em que Washington aposta.

   Financiar e armar com parcimónia é ineficaz, acarreta custos políticos desproporcionados e mesmo assim o treino de combatentes e o controlo da distribuição de armas obrigará a uma maior presença no terreno de assessores militares e agentes secretos norte-americanos, britânicos e franceses.

  O desvio de armamento para forças indesejáveis aos olhos das potências ocidentais e da Turquia, mas apoiadas pela Arábia Saudita e o Qatar, é inevitável tanto mais que frentes islamitas radicais como "Ahrar al Sham" combatem em aliança ora com outros grupos islamitas do "Exército Livre Sírio", ora com os jihadistas da "Jahabat al Nusra".

   A criação de zonas seguras, sob o pretexto de protecção humanitária, pressupõe a imposição unilateral de zonas de exclusão aérea no Norte, a partir da Turquia, e no Sul, com bases na Jordânia, que darão pretexto à Rússia e ao Irão para aumentar as vendas de armas a Damasco.

  Zonas de exclusão aéreas implicam confrontos directos com forças governamentais muito para além das áreas destinadas a protecção e acarretam riscos de escalada militar regional e internacional.

  A alegada utilização pontual de armas químicas pelas forças fiéis a al Assad, pretexto em Washington, Paris e Londres para apoio militar directo a grupos da oposição, continua, entretanto, a gerar polémica.

  As divergências patentes na cimeira do G8 tornam claro que o confronto com russos e chineses no Conselho de Segurança dificultará uma eventual operação internacional com apoio da ONU caso se revele necessário intervir para neutralizar arsenais de armas químicas.

  Múltiplas e antagónicas forças integram frentes de oposição não-jihadistas – "Coligação Nacional", "Conselho Nacional", "Comité Nacional de Coordenação", "Exército Livre" – sem que ao terceiro ano de guerra tenham acordado um programa político mínimo para negociação com al Assad ou como plataforma de transição no caso de renúncia ou morte do líder alauíta.

  Num país ameaçado pela partilha territorial a entrada em combate ao lado das forças governamentais do "Hizballah" libanês acentuou o cunho étnico-religioso do conflito, seguindo-se a ruptura entre Damasco e o Cairo com o presidente Al Nusri a dar corpo a apelos de líderes dos "Irmãos Muçulmanos" para a criação de uma frente alargada sunita contra os apoiantes xiitas do herético regime alauíta.

  Os recentes ganhos das tropas de al Assad – a captura de Al Qusair consolidou o domínio dos acessos ao Líbano e às regiões costeiras – indiciam novas ofensivas governamentais para controlo das principais cidades, sobretudo de Aleppo, remetendo os opositores para regiões do Norte e Leste do país.

   Um pacto informal de não-agressão com as milícias curdas no nordeste permitirá, eventualmente, neutralizar mais uma ameaça ao regime que conseguiu estancar deserções militares e mobilizar novos contigentes de combate, ante grupos oposicionistas com desigual capacidade de combate e que carecem de coordenação.

   O ascendente militar de al Assad vai a par do temor pelas depredações e ameaças de grupos salafistas jihadistas que é cada vez maior entre as minorias cristã, druza, ismaialita, curda, e motivo de apreensão para muitos sunitas.

   A guerra civil síria é um conflito generalizado em que clivagens políticas são fortemente marcadas pelas identidades étnico-religiosas e vê agora acentuar-se o confronto por procuração.

   Sunitas anti-al Assad, salafistas do universo da jihad, potências ocidentais em busca de aliados ou clientes, confrontam-se com iranianos e russos, ante a não-interferência interessada de Israel apostada na debilitação de um estado rival e a crítica de chineses, indianos ou brasileiros ao unilateralismo intervencionista de Washington.

Jornal de Negócios
19 Junho 2013
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quinta-feira, 13 de junho de 2013

Obama e a escuta sem fronteiras





     "Não é sem motivo que, nos últimos tempos, se diz um pouco por toda a parte que seja quem for que exerça ascendente sobre o Palácio dos Sonhos deterá as chaves do Estado."

Ismail Kadaré, "O Palácio dos Sonhos"


   Era uma vez um sultão que queria classificar e examinar a totalidade dos sonhos dos súbditos em busca de sinais divinos capazes de esconjurarem o mal, evitarem a desgraça e propiciarem até novas ideias.

  Esta quimera d’ "O Palácio dos Sonhos", pesadelo do romancista Ismail Kadaré na Albânia comunista dos anos 80, alastra, agora, vivaz na incessante recolha de dados engendrada pela "National Security Agency" (NSA) norte-americana.

  Os programas de monitorização de comunicações telefónicas e no ciberespaço, denunciados por um jovem técnico informático ex-funcionário da CIA e empregado por uma companhia contratada pela NSA, assentam no princípio de que quanto mais exaustiva a base de dados disponível tanto maior a possibilidade de detectar indícios de conjuras.

  A vigilância electrónica da actividade de organizações estatais e civis, empresas, associações e indivíduos segue a mesma regra e provê informação privilegiada de natureza política, militar, científica, económica e financeira.

  Depois do 11 de Setembro a recolha e análise computarizadas de comunicações cresceram desmesuradamente nos Estados Unidos, assumindo um pendor cada vez mais intrusivo, enquanto as decisões tomadas pela Casa Branca ou comissões do Congresso são mantidas em segredo.

  A expansão da actividade das agências empenhadas na vigilância electrónica, sobretudo da NSA, a subcontratação de empresas privadas, o aumento de pessoas com acesso a dados classificados e o afrouxamento de procedimentos de segurança tiveram o contraponto em espectaculares fugas de informação levadas a cabo por técnicos confinados a modestos escalões.

  Em 2010, o soldado Bradley Manning passou material embaraçoso, mas aquém da classificação "top secret" para "Wikileaks" e, desta feita, surge Edward Snowden num acto muito mais gravoso de denúncia do "Big Brother", punível pela legislação do seu país, que pretende definir como "objecção de consciência".

                                        Segredos e garantias

   "Google", "Microsoft" ou "Facebook" de uma forma ou de outra conformam-se aos ditames do "Foreign Intelligence Surveillance Act", revisto em 2008, que as obriga a cooperar na recolha de informação sobre cidadãos estrangeiros que alegadamente representem uma ameaça de segurança.

   Sendo sigilosos os procedimentos técnicos, são igualmente secretas as decisões do tribunal especial em Washington que julga pedidos de instituições governamentais e eventuais objecções das empresas.

   A vigilância electrónica de comunicações telefónicas nos Estados Unidos, excluindo, em princípio o teor das conversas requerendo autorização judicial, é feita, por seu turno, noutro enquadramento legal que, em última análise, exclui salvaguardas para cidadãos, empresas e entidades estrangeiras.

  O pacto de cooperação da NSA com o Canadá, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia – e, eventualmente, acordos secretos com outros estados – permite contornar limitações legais quanto à vigilância de cidadãos norte-americanos e vale o mesmo para os demais parceiros em relação aos seus concidadãos.

   Dada a prevalência de empresas norte-americanas na economia digital e no sector de comunicações todos os utentes dos seus serviços têm razões acrescidas para duvidar das garantias de privacidade que lhes sejam apresentadas.

   No emaranhado de interesses contraditórios das diversas entidades colectoras de informação e dos departamentos e agências que definem e implementam políticas nos Estados Unidos todo e qualquer dado confidencial sobre aliado ou adversário está sujeito a ser utilizado não apenas na prevenção e combate ao terrorismo, mas, ainda, para fins inconfessáveis de concorrência comercial ou espionagem industrial.

                                   Do alto do panóptico

  Washington abusa da vantagem tecnológica e económica, mas apenas dá mostra do que será a prática a que outros estados com importantes empresas informáticas e de telecomunicações não hesitarão igualmente a recorrer.

  Porque o mundo é uma selva, a União Europeia, que conta com estados prevaricadores na matéria, nas negociações para um acordo comercial com Washington terá de exigir maiores e mais precisas garantias sobre privacidade de comunicações e dados digitais.

  Obama e os seus, na senda de Bush, almejando o topo de um imenso panóptico, tendem à escuta sem fronteiras e olvidam que há mais mundo.

Jornal de Negócios
12 de Junho 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/obama_e_a_escuta_sem_fronteiras.html

sábado, 1 de junho de 2013

O paciente argentino




"Veja"


  A patologia ciclotímica da economia e política argentinas algo terá que ver com a inaudita proliferação de psicólogos, psicoterapeutas e psicanalistas pelas bandas do Rio del Plata e as celebrações de uma década de kirchenismo aparentam ter agravado as taras da nação.

   Aquando da sua eleição presidencial em 25 de Maio de 2003, Néstor Kirchner prometeu um peronismo de estilo novo e a alta das matérias-primas – com a soja à cabeça – ajudou a superar a crise e bancarrota de 2001-2002 legadas pelo radical Fernando de la Rúa.

  O governador da província de Santa Cruz instrumentalizou a seu favor a administração pública – a exemplo de outros avatares do "justicialismo" como Carlos Menem, presidente de 1989 a 1999 –, levou da Patagónia para Buenos Aires a panóplia tradicional de fiéis e, sobretudo, a intransigência no recurso aos poderes do estado para esmagar, neutralizar ou seduzir rivais e opositores.

  No mandato de Néstor as receitas das exportações agropecuárias permitiram reduzir a dívida externa (138% do PIB em 2003; presentemente 40%) de um país irradiado dos mercados desde Dezembro de 2001 graças ao recurso às reservas em divisas do Banco Central.

  Néstor e sua mulher Cristina, que lhe sucedeu em 2007, acabaram inevitavelmente por comprometer a independência do Banco Central e, apesar das reestruturações da dívida, compromissos pendentes somam 23 230 milhões de dólares.

  Processos pendentes em tribunais dos Estados Unidos mantêm o estado argentino refém de fundos de investimento que recusam aceitar perdas aceites por outros credores em 2005 e 2010.

  Ao esfumar-se o excedente comercial, o executivo de Cristina impôs em 2011 controlos cambiais numa altura em que a Argentina se via obrigada pela primeira vez a importar petróleo e gás desde a privatização da "Yacimientos Petrolíferos Fiscales" (YPF) no início da década de 90.

  Ao abrir esta semana, o câmbio oficial de venda do dólar era de 5,27 pesos e no mercado paralelo atingia os 8,95, enquanto detentores de cartões de crédito exploravam as vantagens de compensadoras aquisições em dólares no estrangeiro apesar das taxas em vigor.

  O fim-de-semana da festa da década de kirchenismo deu em ressaca na segunda-feira quando foi anunciado que a "Câmara de Comércio Internacional" de Paris decidira que a YPF teria de pagar por quebra de contratos em 2009 para fornecimento de gás 1 400 milhões de dólares a empresas brasileiras.

  A nacionalização em Abril do ano passado de 51% da YPF, em prejuízo da "Repsol" espanhola que exige receber como compensação 8 mil milhões de euros, surgiu como um corolário de diversos confrontos sociais que escaparam ao controlo dos Kirchner ainda antes da morte do marido de Cristina em 2010.

  Quando Cristina foi reeleita em 2011 eram já irremediáveis os efeitos nefastos do confronto com os próceres do sector agropecuário, taxado pelo governo a partir de 2008 a níveis considerados incomportáveis pelos produtores argentinos, que degenerou noutro conflito contra os "media" críticos da presidente.

   Desde então acentuou-se o controlo de nomeações de juízes e de responsáveis do Banco Central, a manipulação descarada das estatísticas económicas dos organismos do estado denunciada inclusivamente pelo FMI.

  As estimativas oficiais de taxas de inflação estão na ordem dos 10%, ao passo que entidades independentes referem valores rondando 24%, e tamanha discrepância com efeitos nas negociações salariais acabou por levar à ruptura com os sindicatos tradicionalmente apoiantes dos sucessivos avatares do "justicialismo" do eterno general Juan Perón que se finou em 1974.

  A legislação dirigida contra o grupo de media "Clarín", opositor declarado da presidente, ainda aguarda decisão do Supremo Tribunal e, é, por seu turno, sinal de prepotências políticas que alienaram os tradicionais apoios sindicais do "justicialismo".

  Na linha da frente "justicialista" anti-Cristina para as eleições legislativas de Outubro encontram-se figuras como Roberto Lavagna – antigo ministro da economia de Néstor – e Hugo Moyano – líder da "Confederação Geral do Trabalho" e inimigo declarado da presidente nos últimos anos.

  Ainda assim, face às fragilidades das oposições, incluindo radicais e progressistas, a senhora da "Casa Rosada", o palácio presidencial de Buenos Aires, continuará provavelmente a ditar os termos da compita política.

  Nada indica que psicanalistas, psicoterapeutas e psicólogos do Rio del Plata venham a perder pacientes.


Jornal de Negócios, 29 Maio 2012

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/o_paciente_argentino.html