quarta-feira, 13 de março de 2013

A violência da História



Manifestação antigovernamental sunita
Falluja, 15 Fevereiro 2013


   Entalado entre a guerra civil síria e o temor do programa militar nuclear iraniano provocar um conflito generalizado do Golfo Pérsico ao Cáspio, o Iraque, dez anos depois da queda de Saddam Hussein, está longe de ser o “farol da democracia” prometido por George W. Bush.

  Tensões entre xiitas e as minorias sunita, curda e turcomena comprometem um sistema federalista imperfeito, toldam a negociação sobre repartição de recursos e a institucionalização de normas democráticas.

  Os níveis de violência atingidos entre 2006 e 2008 reduziram-se significativamente, mas, sobretudo nas áreas sunitas, impera a falta de segurança e é também entre a minoria arredada do poder que se faz sentir mais fortemente o peso do desemprego que atinge cerca de 40% dos iraquianos.

   Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, por seu turno, confrontam-se com o passivo de uma invasão concebida sem medir as consequências e planeada com negligência criminosa que chegou a aproveitar aos extermicionistas terroristas da Al Qaeda sunita.

   As justificações invocadas para a guerra, designadamente a existência de arsenais de armas químicas e biológicas como ameaça iminente, revelaram-se falsas e demonstraram a sistemática manipulação de dados de valor duvidoso recolhidos e analisados por serviços de informação incapazes de assegurarem a sua autonomia face a preconceitos governamentais arreigados.

  A fraude das armas de destruição maciça – além da questão da insuficiência na recolha de informações sobre projectos militares clandestinos e confronto de análises contraditórias -- saparam a legitimidade para futuras intervenções unilaterais, sem cobertura da ONU, para alegadamente salvaguardar a paz e segurança internacionais.

  Nem o anúncio por Washington e Londres em Dezembro de 2003 de que Muammar Gadaffi renunciara a um programa militar nuclear clandestino de dimensões insuspeitas evitou o avolumar de críticas ao bem fundado da estratégia de Bush e Tony Blair.

   O patrocínio norte-americano da intrasigência israelita no conflito com palestinianos reforçou as alas islamitas e rejeicionistas de um acordo com o estado hebraico, que, por seu turno, persistentemente discrimina a população árabe.

   A duplicidade de critérios, patente na aliança com as monarquias sunitas autocráticas do Golfo Pérsico, retirou credibilidade à propalada “nova era de democratização” por todo o Médio Oriente e os abusos na “guerra contra o terrorismo” conjuraram-se para acentuar uma imagem altamente negativa dos Estados Unidos, e por arrasto dos seus aliados ocidentais, na maior parte dos países árabes e islâmicos.

  A ausência de planos, a falta de recursos militares e assistenciais civis, a desorientação na identificação de aliados locais para dar início a esforços necessariamente morosos e de resultados incerto de criação de entidades administrativas minimamente credíveis saldaram-se num estrondoso fracasso político, com elevadíssimos custos humanos para as populações do Iraque, como, ainda, do Afeganistão.

  A presunção de que não seria necessário mobilizar grandes contingentes militares para garantir a segurança no final das hostilidades, actos inanes como a decisão do líder da Autoridade Provisória Paul Bremer de desmantelar as forças armadas iraquianas e expulsar da administração pública todos os membros do antigo partido governamental Ba`ath, selaram o destino de uma intervenção mal concebida e pior concretizada.

   Barack Obama ao concretizar a retirada militar en 2012 deixou o Iraque como aliado incerto, sem conseguir mitigar as consequências estratégicas negativas da invasão de 2003.

   A guerra acelerou dinâmicas conflituais internas nos estados do Médio Oriente saídos da partilha anglo-francesa dos despojos do Império Otomano no final da I Guerra Mundial.

   Na Síria ou no Iraque os poderes de minorias étnico-confessionais, promovidas por Paris e Londres, foram irremediavelmente postos em causa e volatilizou-se a barreira de segurança das monarquias sunitas que representava o regime de Saddam contra o Irão xiita liderado por Khomeini.

   O pacto de 1943 entre Franklin Roosevelt e o rei Saud ainda define as garantias de segurança de Washington a Riade e os Estados Unidos, apesar da sua cada vez maior autonomia energética, precisam de assegurar o livre fluxo de petróleo e gás do Médio Oriente para os mercados mundiais.

   Independemente de uma capacidade única de projecção de força, Washington perde influência política à medida que a contestação, com forte pendor islamita, derruba regimes autocráticos no Médio Oriente.

   A arrogância e inépcia de Bush, Donald Rumsfeld, Dick Cheney, Blair e demais coniventes, o despotismo torcionário de Saddam apostado num confronto insustentável, a deriva terrorista dos salafistas sunitas, a vingança xiita e curda, ficam como um exemplo dos malefícios da ignorância e da violência da história.

Jornal de Negócios
13 Fevereiro 2013

quarta-feira, 6 de março de 2013

Na órbita de Berlim



   Paliativos financeiros estão na calha para portugueses e irlandeses, mas até ao Outono resta penar porque Angela Merkel não arriscará medidas de fundo que prejudiquem a sua ambição de liderar uma terceira coligação no rescaldo das eleições de Setembro.

   Sem maioria no Bundesrat, dependente no Bundestag dos parceiros liberais temerosos de virem a ser excluídos do próximo governo, a chanceler goza de uma margem de manobra muito limitada.

    Sucessivos dislates do candidato social-democrata Peer Steinbrück têm, no entanto, favorecido Merkel que conta, sobretudo, com a ausência de alternativa à sua estratégia europeia de austeridade para obtenção de equilíbrios orçamentais sem mutualização de dívidas soberanas.

   Os social-democratas, que nunca capitalizaram os efeitos positivos das reformas introduzidas por Gerard Schröder em 2003, ainda não apresentaram planos para estímulo da procura na Alemanha, onde o aumento do rendimento real per capita desde 1998 ficou aquém do registado em países como a França ou Espanha.

   A oposição social-democrata partilha das reticências do governo de Berlim -- semelhantes às expressas na Holanda e Finlândia – quanto à assunção de passivos na recapitalização de bancos em risco através do Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira após a entrada em funções do regulador bancário da eurozona.

   Sem acordos para unificação de políticas orçamentais e fiscais, desprovida de estratégias para relançamento de economias em recessão e redução das assimetrias de produtividade, a zona euro mantém-se disfuncional.

  Por iniciativa alemã projectos de unificação financeira, fiscal, bancária e económica na eurozona assumem acentuando pendor federalista, com presumido direito de veto ou voto privilegiado dos estados mais importantes, criando uma dinâmica que afasta os 17 dos demais países da UE, com excepção da Letónia, em menor medida da Lituânia, e a partir de Julho da Croácia.

  O fracasso do euro como projecto de convergência avivou o eurocepticismo inglês e galês, temperado por forte dose de separatismo anti-britânico escocês, que se destaca como foco de tensão intra-europeia, não obstando, contudo, a uma entente cordiale com Paris em matéria de partilha de recursos de defesa.

  A Suécia e Dinamarca marcam a sua distância ante projectos federalistas de uma eurozona que consideram irremediavelmente desequilibrada dado o peso das exportações de bens e serviços alemães e os diferenciais de produtividade entre os países da moeda única.

  Em Varsóvia pondera-se uma eventual adesão ao euro desde que tal seja compatível com a auto-imagem polaca de potência por excelência no centro e leste do continente, mais influente do que checos ou eslovacos, longo do estatuto de segunda ordem de romenos e búlgaros ou da indiferença a que é votada a Hungria que se perde em derivas autoritárias.

  A adesão de estados balcânicos e, em especial da Turquia (fortemente contestada na Aústria, Alemanha e França) à UE, são prejudicadas pelas distintas dinâmicas e conflitos de um bloco que não consegue compatibilizar projectos de integração económica e financeira e pactos de cooperação social e política.

   A França perdeu importância na definição de estratégias na UE e sob governação socialista compraz-se na estagnação herdada do centro-direita, enquanto a extrema-direita é aceite por sensivelmente um quarto do eleitorado.

  Separatismos, regionalismos e nacionalismos anti-plutocráticos e anti-emigrantes fazem pontualmente mossa e condicionam a agenda política na Bélgica (Nova Aliança Flamenga), Holanda (Partido para a Liberdade) ou Finlândia (Verdadeiros Finlandeses), mas as alianças partidárias centristas, com maior ou menor predominância de esquerda ou direita, continuam a assegurar a governação.

  Os custos sociais da austeridade financeira -- sem contrapartida numa expansão do consumo na Alemanha, Aústria, Holanda ou Finlândia -- já destruiram os tradicionais e corruptos equilíbrios partidários na Grécia, levando ao crescimento da extrema-direita e da extrema-esquerda, e redundaram na irrupção fulgurante do populismo anti-sistema político em Itália.

  Na Irlanda, Espanha e Portugal a contestação anti-austeridade não gerou até agora alternativas políticas e económicas minimamente sustentáveis fora dos actuais sistemas partidários, mas as tensões nacionalistas e regionais acentuaram-se na monarquia dos Borbón.

  O financiamento e incentivos fiscais a projectos de criação de trabalho, sobretudo para jovens, é uma prioridade em todos os países em que o desemprego ultrapassa os 10%, mas, sendo a eurozona um sistema que gira em torno da Alemanha, a negociação encontra-se bloqueada.

   Entre crises inadiáveis o resgate de Nicósia e as perdas que accionistas e depositantes da banca cipriota terão de assumir é questão a resolver no final deste mês.

   A eventualidade de bancarrota do Chipre é demasiado arriscada para a eurozona e a UE deverá juntar-se a Moscovo para reunir os 17,5 mil milhões de euros necessários, praticamente equivalente ao PIB cipriota de 18 mil milhões de euros.

   Evitando que Nicósia abandone a moeda única será possível adiar por mais alguns meses nova reestruturação da dívida da Grécia, desta feita envolvendo perdas directas para credores públicos, e a espinhosa questão de transferências financeiras a fundo perdido no seio da eurozona.

   Interesses contraditórios em torno da manutenção de uma união monetária imperfeita, que atingiu custos incomportáveis na Grécia e dificilmente suportáveis noutros estados, caracterizam os confrontos políticos europeus que estão demasiado condicionados por Berlim.

Jornal de Negócios
6 Março 2013