quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Outro resgate na calha




  
    O governo comunista de Nicósia, que assegura a presidência rotativa da União Europeia, aguardar um resgate que poderá atingir os 17,5 mil milhões de euros para recapitalizar a banca, refinanciamento de dívida e cobertura do défice orçamental.

   Falhadas as tentativas de financiamento da metade grega de Chipre junto da Rússia – que em 2011 facultara 2,5 mil milhões de euros após Nicósia ter perdido o acesso aos mercados internacionais – e da China, o presidente Dimitris Christofias viu-se obrigado em Junho a requer ajuda do FMI e parceiros do euro.

   O montante do resgaste está dependente de uma auditoria em Dezembro, a cargo do fundo de investimento norte-americano Pimco, à banca e instituições financeiras que antes do perdão parcial dos credores privados a Atenas apresentavam uma exposição à divída grega, pública e privada, na ordem dos 29 mil milhões de euros.

   Aos cerca de 4,5 mil milhões de euros de prejuízos resultantes da reestruturação da dívida grega junta-se uma recessão que fez o desemprego ultrapassar os 10%, levou o défice orçamental aos 6,4% e está em vias de fazer disparar a dívida pública (71,6% do PIB no final de 2011).

   O resgate da terceira mais pequena economia da eurozona deverá ultrapassar o PIB cipriota grego, que ronda os 18 mil milhões de euros, enquanto os créditos em risco da banca local superam 152 mil milhões de euros, segundo o FMI.

   As contrapartidas pelo financiamento que deverá prolongar-se até 2016 implicam cortes na despesa pública, privatizações e, eventualmente, a cativação de parte das receitas da futura exploração off shore de jazidas de gás natural.

   A efectiva aplicação da legislação contra lavagem de dinheiro, que Chipre tinha adoptado para assegurar a adesão ao euro em 2004, terá, contudo, consequências de peso.

   Desde os anos 90 que Chipre se tornou um dos principais centros de captação de capitais russos graças a facilidades fiscais para estabelecimento de empresas.

   Um relatório deliberadamente vago que os serviços de informação alemães facultaram em Maio ao Der Spiegel estimava em cerca de 20 mil milhões de euros os depósitos de investidores da Rússia na banca cipriota e em 2000 o número de empresas russas registadas em Nicósia.

   A origem deste dinheiro é frequentemente dúbia e ao paraíso fiscal do Mediterrâneo – onde a população de origem russa é estimada em cerca de 50 mil pessoas entre menos de 800 mil habitantes -- vai parar boa parte do capital expatriado da Rússia, cerca de 350 mil milhões USD nos últimos cinco anos.

   Nos primeiros 9 meses de 2012 os principais destinos do capital russo foram a Suíça (38,6 mil milhões USD), Aústria (14,5 mil milhões USD) e Chipre (10,8 mil milhões USD), de acordo com as estatísticas oficiais de Moscovo.

   Os maiores investidores estrangeiros na Rússia foram, por sua vez, a Holanda (15,7 mil milhões USD), Chipre (11,8 mil milhões USD) e Reino Unido (10,6 mil milhões USD).

   Chipre adiantou-se à crescente concorrência na União Europeia oferecendo condições atraentes para naturalização de cidadãos oriundos de estados não-comunistários.

   Legislação adoptada em 2007 permite ao governo outorgar a nacionalidade por “serviços à República”, um privilégio de que beneficiou em 2010 o magnata do aço Aleksandr Abramov.

   Um levantamento do jornal económico Kommersant assinalava em Outubro que em quatro ou cinco meses um cidadão russo conseguia obter passaporte cipriota mediante depósito por prazo superior a cinco anos de 15 milhões USD, de acordo com um responsável da UGF Wealth Management.

   Outro fundo de investimento russo, a APEX Capital Partners, garantia por seu turno ao jornal de Moscovo a naturalização expedita mediante compra de obrigações do tesouro num montante de 10 milhões de euros e aquisição de propriedade imobiliária no valor mínimo de 500 mil euros.

   A crise bancária no Chipre está a levar, no entanto, os capitais russos a procurarem portos de abrigo alternativos.

   Entre Junho de 2011 e o final do primeiro semestre deste ano os depósitos da responsabilidade de residentes oriundos de países não-UE cairam 85 milhões de euros.

   Em Junho o banco central de Chipre contabilizava esses depósitos em 21,8 mil milhões de euros, montante que abarca a totalidade de depositantes oriundos de estados fora da UE e contradiz os dados dos serviços de informação de Berlim.

   O FMI assinalou, por exemplo, esta semana o risco que o forte aumento de depósitos estrangeiros representa para o sistema financeiro da Letónia à imagem do que sucedeu em 2008 quando o país foi abalado pela falência do banco Parex, obrigando a um resgate pela UE e FMI com um empréstimo de 7,5 mil milhões de euros.

   Na primeira metade deste ano 1,2 mil milhões de dólares deram entrada na Letónia, atingindo os depósitos de não-residentes, na maioria russos e cidadãos de outros antigos estados da URSS, 10 mil milhões USD, cerca de metade do total.

   Os efeitos do resgate do Chipre no mercado internacional de capitais ainda mal se começaram a fazer sentir-se.

Jornal de Negócios

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Israel confronta-se com a sua fragilidade






   Os parcos dividendos da ofensiva contra Gaza lançam as maiores dúvidas sobre a capacidade de Israel poder aventurar-se num ataque unilateral ao Irão sem sofrer um incomensurável desaire.

   Uma semana de bombardeamentos deixou a claro que, salvo uma inviável reocupação de Gaza temida pela própria população judia, Israel não conseguirá eliminar a ameaça dos mísseis do Hamas e de outras organizações islamitas.

   Uma trégua, implicando a suspensão do lançamento de mísseis a troco do aligeiramento do bloqueio imposto por Israel há cinco anos, não poderá obviar ao rearmamento do Hamas e demais organizações palestinianas.

   Os esforços israelitas para destruir redes de contrabando, como, por exemplo, os ataques ocorridos no Sudão, estão condenados ao fracasso dada a situação de insegurança na península do Sinai e o apoio do governo islamita do Cairo aos confrades do Hamas.

  Além da frente sul de Israel, sujeita a ser fustigada por mísseis de fraca precisão, também áreas do centro do país e mesmo Telavive e Jerusalém estão agora na mira de mísseis Fajr 5 de origem iraniana com um alcance de 75 quilómetros.

  A notória melhoria da capacidade do Hamas e da Jihad Islâmica no fabrico, montagem, armazenamento e lançamento de mísseis permitirá recuperar a curto prazo a degradação das suas capacidades ofensivas provocada pela actual investida israelita.

   Os inimigos em Gaza representam uma ameaça tão perigosa e destabilizadora quanto o Hizballah a norte, apesar da segurança relativa oferecida pelo sistema de defesa antimísseis Cúpula de Ferro.

   A constatação de Israel da impossibilidade de desalojar o Hamas fragiliza Mahmoud Abbas que aguarda o reconhecimento pela Assembleia Geral da ONU da Autoridade Palestiniana como estado observador.

   A ameaça de retaliações de Israel e dos Estados Unidos no caso de promoção do estatuto internacional palestiniano -- designadamente através do congelamento de contribuições e financiamentos à ONU e à Autoridade Palestiniana -- contribui para alienar os palestinianos da Cisjordânia que vêem os seus representantes incapazes de obter concessões.

   Nenhum avanço quanto ao estatuto de Jerusalém, o congelamento e desmantelamento de colonatos judaicos, o direito de retorno de refugiados e o controlo de recursos hídricos.

   Neste impasse aumenta o risco da Fatah perder o controlo da Cisjordânia e do ressentimento dos árabes israelitas -- 20% da população do estado hebraico -- extravassar em protestos de rua, enquanto na Jordânia se reforça as exigência dos Irmãos Muçulmanos que reclamam ao Rei Abdullah II o corte de relações com Israel.

   Na frente norte, onde a imponderabilidade da guerra civil na Síria condiciona o Hizballah e priva Israel de um inimigo fiável, o estado hebraico confronta-se com as consequências do fracasso estratégico do confronto de 2006 que consagrou os xiitas libaneses como irredutível força militar.

   A retaguarda israelita apresenta-se, portanto, muito insegura e a população judia acaba de sofrer novo choque psicológico ao ser confrontada com acrescida vulnerabilidade a ataques de mísseis.

   O risco de isolamento diplomático no caso de Israel enveredar por acções militares que resultem em significativas baixas civis entre o inimigo começa também a fazer-se sentir entre uma população que, na ausência de garantias credíveis de segurança, tenderá, no entanto, a votar em forças políticas que rejeitam qualquer compromisso territorial.

   Perdido o contrapeso estratégico que representava a Turquia o isolamento israelita no Médio Oriente é avassalador.

   A conjugação pontual de interesses contra o Irão com as monarquias sunitas do Golfo, o Arzebeijão e alguns grupos curdos não basta para Israel se lançar numa eventual acção militar com ou sem apoio prévio dos Estados Unidos.

   A extrema fragilidade da situação nas conflituosas fronteiras de Israel obriga a uma mobilização total de recursos e riscos generalizados para os civis judeus em caso de guerra com o Irão, nova ronda de confrontos em todas as frentes, e esta realidade só a pouco e pouco começa a ser compreendida.

Jornal de Negócios
21 Novembro 2012

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O adultério de Petraeus e a gestão de crises



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   A queda em desgraça do mais celebrado general das últimas guerras americanas tem um contraponto na falência das estratégias militares no Afeganistão e no Iraque, na conivência dos media com campanhas de propaganda e na degradação dos padrões éticos nas forças armadas.

   David Petraeus está no centro de um escândalo amoroso com avassaladoras ramificações políticas envolvendo o chefe do contingente norte-americano e multinacional no Afeganistão e indigitado comandante das forças da NATO na Europa, general John Allen.

   Paula Broadwell -- ex-oficial dos serviços militares de informações, investigadora de assuntos de Defesa, biógrafa e amante de Petraeus -- surge em destaque numa teia de amores e ciúmes cuja investigação degenerou numa guerra de competências e suspeitas entre o FBI, a CIA, o Pentágono, o Departamento de Justiça, a Casa Branca e o Congresso.

   O escândalo tem também como protagonista Jill Keely, voluntária dos serviços sociais na base da Flórida onde está instalado o quartel-general do Comando Central que supervisiona operações militares na Ásia Central e Médio Oriente, com ligações por esclarecer a um agente não-identificado do FBI e ao general Allen.

   As fugas de informação sobre adultério e posse não-autorizada de informação confidencial evidenciam comportamentos menos próprios numa altura em que inquéritos sobre abusos em todos os ramos das forças armadas traçam, por seu turno, um quadro inquietante das consequências da profissionalização do serviço militar e do uso crescente de empresas privadas em cenários de guerra.

   O choque entre a promoção ideológica das forças armadas como um corpo excepcional e derradeiro bastião do americanismo e liberdade e a realidade de sucessivas missões rotineiras ou brutais tem tirado lustre aos galões e às fardas.

   Petraeus tipifica as ilusões do pós-11 de Setembro e da busca de um herói redentor em guerras sem norte.

   A um dos mais brilhantes graduados de West Point, posteriormente licenciado pela Universidade de Princeton com um estudo sobre influência militar e uso da força na era pós-Vietname, coube assumir em Fevereiro de 2007 o comando das forças norte-americanos no Iraque quando a guerra civil estava ao rubro .

  Um reforço de 30 mil homens serviu para o general testar as suas teses sobre estratégia de contra-insurreição que apontavam, sobretudo, para a garantia de segurança e subsistência económica a núcleos populacionais cada vez mais amplos graças à presença constante de forças militares no terreno.

   A expulsão de sunitas na maior parte dos bairros de Bagdade, a cedência de Bassorá a milícias xiitas por parte das forças britânicas, a trégua negociada com o Exército do Mahdi do xiita Moqtad Al Sadr, a mobilização de tribos sunitas na província de Anbar contra a Al Qaeda, a não-interferência do governo central no Curdistão, vieram a conjugar-se no sentido de uma redução da violência para níveis que o Pentágono considerou “toleráveis”.

   Nenhum dos problemas criados pela intervenção ficou resolvido, mas Petraeus, aureolado “Pacificador do Iraque” graças a uma incessante campanha de autopromoção nos media, criou condições para George W. Bush puder anunciar o início da retirada norte-americana em Fevereiro de 2009 e a completar em 2011.

   Petraeus, após uma comissão como chefe do Comando Central a partir do final Outubro de 2008, foi nomeado por Barack Obama em Junho de 2010 comandante das forças no Afeganistão.

   A retórica sobre protecção de civis, cooperação acrescida com forças militares e policiais afegãs, combate à corrupção e apoio ao desenvolvimento económico, revelou-se um fracasso, mas serviu o objectivo do presidente.

  O general abandonou o Afeganistão em Julho de 2011 e deixou as forças armadas em Agosto, tendo cumprido a sua missão: dar cobertura para mais uma retirada ainda que nenhuma questão estratégica tenha sido resolvida a contento de Washington.

  Após assumir a direcção da CIA, em Setembro de 2011, Petraeus viu a sua exposição mediática reduzida ao mínimo, só voltando à ribalta devido à polémica em torno das versões oficiais contraditórias sobre o ataque terrorista ao consulado de Benghazi em Setembro deste ano.

   O teórico da contra-insurreição pela conquista da confiança de populações civis tinha-se, entretanto, transformado no patrono da militarização da CIA, do recurso ao assassínio sistemático de suspeitos estrangeiros de terrorismo através, sempre que possível, de veículos aéreos não-tripulados.

   O general que sempre apostou na promoção da imagem de estratego ímpar da sua geração, ainda que apenas tenha servido para dar cobertura a retiradas em guerras falhadas, terá agora de pagar por não passar de mais um mito de cuecas na mão.

Jornal de Negócios
14 Novembro 2012


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O precipício americano




   Quando a poeira assentar, reconfirmadas as maiorias republicana na Câmara de Representantes e democrática no Senado, os dois partidos terão de chegar a um compromisso para evitar a 1 de Janeiro cortes de despesas e aumentos de impostos superiores a 600 mil milhões de dólares.

   Se Barack Obama conseguir a reeleição para escapar ao chamado “precipício orçamental” terá de retomar negociações com democratas a aceitarem reduções em programas assistenciais, sobretudo o Medicare e Medicaid, a troco de republicanos admitirem aumentos de impostos para rendimentos superiores a 250 mil USD/ano.

   Uma vitória de Mitt Romney obrigará a um maior compasso de espera já que o novo Congresso só toma posse a 3 de Janeiro e o presidente 17 dias mais tarde.

   Uma prorrogação com efectivos retroactivos das isenções e benefícios fiscais em vigor até 31 de Dezembro serviria a Romney para fazer avançar uma lógica negocial diferente, mas visando igualmente um acordo rápido de forma a mitigar os cortes obrigatórios na despesa federal.

   O republicano insistiria em reduções no sector da Defesa abaixo dos 9,4% previstos e numa reconfiguração da carga fiscal beneficiando proporcionalmente categorias de rendimentos mais elevados e com maior capacidade de investimento.

   O impacto económico negativo dos cortes de despesa e aumentos de impostos obriga a um acordo nas grandes linhas do discutido no Verão de 2011 quanto a redução do défice orçamental em 4 triliões de dólares numa década e à adopção de medidas para evitar que dívida pública, rondando presentemente os 72% do PIB, ultrapasse os 100% em 2020.

   Perca ou ganhe Romney, que apresentou como objectivo a redução em quatro anos a despesa federal de 24% para 20% do PIB, a ala republicana mais radical insistirá na recusa genérica de aumentos de impostos.

   Os democratas mais próximos dos sectores sociais dependentes do apoio estatal, sensivelmente um terço da população, tenderão a responder com reforçadas exigências de intervenção e regulação federal dita anti-plutocrática e de estímulo à criação de emprego.

   A extrema dificuldade em chegar a compromissos políticos entre republicanos e democratas, as dissencões entre várias vertentes de poderes do sistema político augura desordem e acordos meramente parciais agravando a prazo o défice orçamental, a dívida pública e bloqueando reformas estruturais.

  Numa fase de transição demográfica em que a geração da mitologia baby boomer -- pele branca, ideologia contestatária e consumista que tanta abarca Bill Clinton como George W. Bush – caminha para a reforma imperam contraditórias percepções e valorações sociais em reacção a uma crescente desigualdade social e ante reequilíbrios étnicos inéditos.

   Acentuam-se, assim, revoltas ante perdas de estatuto e expectativas frustradas inquinando de tal forma a política norte-americana que a polarização partidária é de regra.

  As polémicas sobre integração e expulsão de residentes ilegais -- cerca de 10 a 11 milhões de imigrantes clandestinos, sendo quase 80% hispano-americanos – revelam-se, desta forma, algo de intratável à imagem do que o futuro próximo reserva para questões ambientais.

  A virulência desta disputa só é comparável à controvérsia sobre o direito ao aborto que, ainda assim, se dilui em opções individuais irredutíveis à legislação vigente independentemente dos dramas pessoais, da afirmação feminista de igualdade de direitos e dos controversos direitos dos fetos.

   Desde 2008 e depois de Obama ter evitado por um triz uma depressão o drama da desigualdade ganha, contudo, cada vez mais expressão.

   O Departamento de Censos apurou que em 2011 o Índice Gini se cifrava em 0,463, o pior registo de desigualdade social das últimas quatro décadas (0 corresponde a igualdade absoluta e 1 à posse da totalidade do rendimento por uma única pessoa).

   Em 1980 as unidades familiares mais ricas, 5% dos contribuintes, detinham 16,5% da totalidade do rendimento nacional, mas em 2011 essa percentagem subira para 22,3%.

  As famílias de rendimentos médios absorviam, por sua vez, 51,7% do rendimento disponível em 1980 e apenas 45,7% no ano passado.

  O rendimento médio em 2011 era de 50 054 USD/ano e 46,2 milhões de norte-americanos quedavam-se abaixo do limiar da pobreza, definido para uma família de quatro pessoas em 23 021 USD/ano

  Subsídios directos e indirectos obviam a deterioração ainda pior das condições de vida das classes de menores rendimentos e apesar de em 2011 46% das famílias não terem pago imposto federal sobre o rendimento 2/3 efectuaram descontos para a Segurança Social e o Medicare.

  Da degradação de infraestruturas às carências educativas, passando pela potência comercial da China, os temores e revolta quanto à perda relativa de capacidade competitiva dos Estados Unidos ganham força.

  Temerosas ante precipícios nunca vislumbrados as tribos políticas norte-americanos cerram fileiras em torno das suas certezas e o país racha ao meio.

Jornal de Negócios, 7 Novembro 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O MIRACULADO CONTEMPLA A IBÉRIA



    Nos anos em que fazia caminho entre boa parte da intelectualidade artística europeia a ideia de que a realidade era algo trabalhado, moldado, se não mesmo inventado, pela mente criadora, Fernando Pessoa estreava-se, em 1912, na revista “Águia”, profetizando o aparecimento de um “supra-Camões”.

   As elucubrações estéticas e esotéricas de Pessoa irão a par de uma mística épica e patriótica que tem um primeiro momento alto num poema que não chegou a ver imediatamente a luz do dia devido ao fracasso da publicação do número 3 do “Orpheu” na segunda metade de 1915.

   Com “Gládio” (E esta febre de Além, que me consome) -- datado de Julho de 1913, impresso onze anos depois na “Athena”, e, posteriormente, reintitulado “D. Fernando, Infante de Portugal” na “Mensagem” de 1934 -- Pessoa entrara já, notoriamente, pela senda de “criador de mitos” apostado numa regeneração patriótica.

    Ante a urgência de “criar grandes valores” e abolir“o dogma da personalidade” proclamada por Álvaro de Campos, a imensidão de gente que habita Pessoa e se faz escrita a partir da Primavera de 1914 para tentar escapar à prisão da “finitude infinita” -- no dizer de Eduardo Lourenço -- sustentará, entre o lúdico e o paradoxal, contraditórias teses políticas, mas permanecerá fiel a uma crença radical, algo alucinatória.

   O culto dos heróis, marcado pela leitura juvenil de Thomas Carlyle em Durban, atinge o paroxismo quando Pessoa assume, na década de 20, que ele próprio (nascido em 1888 conforme à profecia de Bandarra) se confunde com a epifania do “Encoberto” e o advento de um “Quinto Império” --“império de cultura” e sagração d`“a universalização da cultura europeia”.

   Para o poeta a política é sustentada por ideias e crenças que dão corpo a uma ordem social em que o poder organizativo deve caber a uma aristocracia do espírito e, por isso, poderá afirmar – em resposta a um inquérito do jornalista Augusto de Castro, em 1926 – que a renovação do grande mito nacional propiciará “Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião”.

                            A ESTETIZAÇÃO ABSOLUTISTA

   Os textos em que Pessoa aborda questões ibéricas revisitam esterótipos étnicos, religiosos e culturais.

   Por lá podem encontrar-se, como num albergue espanhol, ecos das cogitações do jesuíta Juan Franciso de Masdeu que na sua “Historia crítica de España...” (Madrid, 1783) asseverava: “Cada nación tiene un carácter dominante. El holandés es industrioso, el inglés sublime, el español agudo, el francés metódico, ameno el italinao e laborioso el tedesco”.

  Ángel Ganivet, que aceitara a separação entre Espanha e Portugal como “hecho irreformable” no seu “Idearium espanõl”, publicado em 1897, um ano antes da desgraça colonial madrilena, é outro caso de uma veia essencialista que vislumbra no estóico Séneca -- alegado “torero de la virtud”, segundo o Nietzsche do “Crepúsculo dos Ídolos” de 1889 – um vero espanhol.

   O essencialismo e o profetismo na definição do ser das nações é o fulcro das meditações pessoanas que têm diversos equivalentes Europa fora.

   O mito da Moscóvia como sucessora de Constantinopla e “Terceira Roma” desde a sua formulação, no início do século XVI, pelo monge Filofai de Pskov, perpassando por mitologias autocráticas e revolucionárias russas e suscitando incessantes polémicas entre eslavófilos e ocidentalistas, é um caso exemplar no outro extremo do continente.

  Nessa textura imagética o mito não será estranho ao simbolista Viatcheslav Ivanov (1866-1949) que oporá ao Ocidente uma Rússia herdeira de Bizâncio e da Grécia, filha das tribos Citas, “sedenta / da liberdade / que desconheceis” (“Estrelas-Guia”, 1903) e irá vincar o poder assombroso do russo, única língua viva a preservar a tensão mítica entre Apolo e Dionísio.



  A estreia em Paris, em Maio de 1913, d`“A Sagração da Primavera” de Igor Stravinski, coreografada por Diaguilev, é, por sua vez, um sinal indelével dos tempos convulsivos que calharem em sorte a Pessoa.

   O vitalismo pagão do bailado é uma onda de choque -- tal como quatro anos antes o “Manifesto del futurismo” de Filippo Marinetti (“Noi vogliamo glorificare la guerra - sola igiene del mondo...) -- e, neste momento, quando a guerra se faz próxima, a estetização da política e as tendências predominantes advogando absolutismos exclusivistas de classe, raça, religião e nacionalidade, inquinam certos modernismos.

  Algo se vai sabendo em Lisboa das polémicas vienenses sobre sexualidade e alienação e teme-se a irracionalidade das massas teorizada na “Psicologia das multidões” (1895) por Gustave Le Bon.

  A rebelião de Maio de 1915 contra o general Pimenta de Castro, provocando cerca de 200 mortos em Lisboa, foi para Pessoa mais um sinal da degradação do regime republicano e pouco faltava para rondar um bolchevismo prestes a impor-se na Rússia.

   O conservadorismo revolucionário alastrava, António Ferro iria viajar à volta das ditaduras e, ao longe e tarde de mais para que Pessoa o conhecesse, um Emil Cioran, levando às últimas consequências extremismos nacionalistas, acabaria por legar e repudiar um manifesto fascista, “A Transfiguração da Roménia” (1936), em que aspirava a uma pátria “que tenha a população da China e o destino da França”.

                                   A SAGRAÇÃO

   Pessoa viveu o passamento da Belle Époque, o transe da guerra e das ditaduras e, apesar de integrar uma geração formada na ressaca do Ultimato de 1890 e pelo republicanismo anticlerical, ao abordar a Ibéria ignora polémicas ancestrais.

   Nada lhe dizem um Oliveira Martins --- que acabara defendendo a aliança de Braganças e Borbóns para salvaguardar a posição de Lisboa e Madrid no mundo e os impérios coloniais --- e as velhas tendências socialistas federalistas que deram fama a Henriques Nogueira na primeira metade do século XIX.



   Desprezando as razões de Afonso Costa e Bernardino Machado para a entrada na Guerra em Março de 1916, Pessoa integra nas suas análises algumas questões conjunturais, como, por exemplo, o domínio de Marrocos, o fracasso de sete anos de ditadura de Primo de Rivera -- que culminara na sua demissão em Janeiro de 1930 -- por não ter sido “uma personalidade proeminente” como Mussolini ou Salazar, e o risco de desagregação do estado dominado por Castela ante a iminência da restauração republicana.

   Aquém de um Sidónio Pais (“Nele uma hora encarnou el-rei / D. Sebastião”), Primo de Rivera merecerá a Pessoa, ainda assim, um poema em Novembro de 1931, sete meses depois da proclamação da II República (“Relembremos na hora / Em que em ti chora / O que não ouves em ti, / Aquelle que foi / O heroe em si / Do que em ti se perdeu de heroe.”)

   Fanado um primeiro enlevo pelo saudosismo de Teixeira de Pascoaes, desenquadrado dos ritualismos da “Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira”, avesso ao integralismo de António Sardinha, o conservador mitificador Pessoa queda-se solitário e, essencialmente, incompreendido e impublicado.

   Nestas meditações Pessoa hipostasia alegados caracteres de pátrias diversas, configura “alianças civilizacionais”, aventa sínteses de almas nacionais, destaca a idiossincracia peninsular derivada de um “fundo romano-grego-árabe semita”, afere o cunho de países criadores de civilização e das línguas imperiais e define objectivos como o “domínio espirtual das américas ibéricas”.

   Uma suma contradição Pessoa deixou em aberto para eventual assombro de castelhanos, galegos, catalões ou vascos.

   O imperialismo cultural supremo, a “hegemonia intelectual da Ibéria”, implica o “Advento do Encoberto” e a assunção plena da “alma portuguesa” obriga a subsumir em si a totalidade da Ibéria.

  E, no entanto, é bem possível que, talvez, essa contradição pouco contasse para o Pessoa que sagrou D. Sebastião:

Que importa o areal, a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.”
(“Mensagem”)

Revista Ler
Março 2013, Nº 122
Dossier sobre "Ibéria - Introdução a um Imperialismo futuro", Ática, 2012