sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O MIRACULADO CONTEMPLA A IBÉRIA



    Nos anos em que fazia caminho entre boa parte da intelectualidade artística europeia a ideia de que a realidade era algo trabalhado, moldado, se não mesmo inventado, pela mente criadora, Fernando Pessoa estreava-se, em 1912, na revista “Águia”, profetizando o aparecimento de um “supra-Camões”.

   As elucubrações estéticas e esotéricas de Pessoa irão a par de uma mística épica e patriótica que tem um primeiro momento alto num poema que não chegou a ver imediatamente a luz do dia devido ao fracasso da publicação do número 3 do “Orpheu” na segunda metade de 1915.

   Com “Gládio” (E esta febre de Além, que me consome) -- datado de Julho de 1913, impresso onze anos depois na “Athena”, e, posteriormente, reintitulado “D. Fernando, Infante de Portugal” na “Mensagem” de 1934 -- Pessoa entrara já, notoriamente, pela senda de “criador de mitos” apostado numa regeneração patriótica.

    Ante a urgência de “criar grandes valores” e abolir“o dogma da personalidade” proclamada por Álvaro de Campos, a imensidão de gente que habita Pessoa e se faz escrita a partir da Primavera de 1914 para tentar escapar à prisão da “finitude infinita” -- no dizer de Eduardo Lourenço -- sustentará, entre o lúdico e o paradoxal, contraditórias teses políticas, mas permanecerá fiel a uma crença radical, algo alucinatória.

   O culto dos heróis, marcado pela leitura juvenil de Thomas Carlyle em Durban, atinge o paroxismo quando Pessoa assume, na década de 20, que ele próprio (nascido em 1888 conforme à profecia de Bandarra) se confunde com a epifania do “Encoberto” e o advento de um “Quinto Império” --“império de cultura” e sagração d`“a universalização da cultura europeia”.

   Para o poeta a política é sustentada por ideias e crenças que dão corpo a uma ordem social em que o poder organizativo deve caber a uma aristocracia do espírito e, por isso, poderá afirmar – em resposta a um inquérito do jornalista Augusto de Castro, em 1926 – que a renovação do grande mito nacional propiciará “Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião”.

                            A ESTETIZAÇÃO ABSOLUTISTA

   Os textos em que Pessoa aborda questões ibéricas revisitam esterótipos étnicos, religiosos e culturais.

   Por lá podem encontrar-se, como num albergue espanhol, ecos das cogitações do jesuíta Juan Franciso de Masdeu que na sua “Historia crítica de España...” (Madrid, 1783) asseverava: “Cada nación tiene un carácter dominante. El holandés es industrioso, el inglés sublime, el español agudo, el francés metódico, ameno el italinao e laborioso el tedesco”.

  Ángel Ganivet, que aceitara a separação entre Espanha e Portugal como “hecho irreformable” no seu “Idearium espanõl”, publicado em 1897, um ano antes da desgraça colonial madrilena, é outro caso de uma veia essencialista que vislumbra no estóico Séneca -- alegado “torero de la virtud”, segundo o Nietzsche do “Crepúsculo dos Ídolos” de 1889 – um vero espanhol.

   O essencialismo e o profetismo na definição do ser das nações é o fulcro das meditações pessoanas que têm diversos equivalentes Europa fora.

   O mito da Moscóvia como sucessora de Constantinopla e “Terceira Roma” desde a sua formulação, no início do século XVI, pelo monge Filofai de Pskov, perpassando por mitologias autocráticas e revolucionárias russas e suscitando incessantes polémicas entre eslavófilos e ocidentalistas, é um caso exemplar no outro extremo do continente.

  Nessa textura imagética o mito não será estranho ao simbolista Viatcheslav Ivanov (1866-1949) que oporá ao Ocidente uma Rússia herdeira de Bizâncio e da Grécia, filha das tribos Citas, “sedenta / da liberdade / que desconheceis” (“Estrelas-Guia”, 1903) e irá vincar o poder assombroso do russo, única língua viva a preservar a tensão mítica entre Apolo e Dionísio.



  A estreia em Paris, em Maio de 1913, d`“A Sagração da Primavera” de Igor Stravinski, coreografada por Diaguilev, é, por sua vez, um sinal indelével dos tempos convulsivos que calharem em sorte a Pessoa.

   O vitalismo pagão do bailado é uma onda de choque -- tal como quatro anos antes o “Manifesto del futurismo” de Filippo Marinetti (“Noi vogliamo glorificare la guerra - sola igiene del mondo...) -- e, neste momento, quando a guerra se faz próxima, a estetização da política e as tendências predominantes advogando absolutismos exclusivistas de classe, raça, religião e nacionalidade, inquinam certos modernismos.

  Algo se vai sabendo em Lisboa das polémicas vienenses sobre sexualidade e alienação e teme-se a irracionalidade das massas teorizada na “Psicologia das multidões” (1895) por Gustave Le Bon.

  A rebelião de Maio de 1915 contra o general Pimenta de Castro, provocando cerca de 200 mortos em Lisboa, foi para Pessoa mais um sinal da degradação do regime republicano e pouco faltava para rondar um bolchevismo prestes a impor-se na Rússia.

   O conservadorismo revolucionário alastrava, António Ferro iria viajar à volta das ditaduras e, ao longe e tarde de mais para que Pessoa o conhecesse, um Emil Cioran, levando às últimas consequências extremismos nacionalistas, acabaria por legar e repudiar um manifesto fascista, “A Transfiguração da Roménia” (1936), em que aspirava a uma pátria “que tenha a população da China e o destino da França”.

                                   A SAGRAÇÃO

   Pessoa viveu o passamento da Belle Époque, o transe da guerra e das ditaduras e, apesar de integrar uma geração formada na ressaca do Ultimato de 1890 e pelo republicanismo anticlerical, ao abordar a Ibéria ignora polémicas ancestrais.

   Nada lhe dizem um Oliveira Martins --- que acabara defendendo a aliança de Braganças e Borbóns para salvaguardar a posição de Lisboa e Madrid no mundo e os impérios coloniais --- e as velhas tendências socialistas federalistas que deram fama a Henriques Nogueira na primeira metade do século XIX.



   Desprezando as razões de Afonso Costa e Bernardino Machado para a entrada na Guerra em Março de 1916, Pessoa integra nas suas análises algumas questões conjunturais, como, por exemplo, o domínio de Marrocos, o fracasso de sete anos de ditadura de Primo de Rivera -- que culminara na sua demissão em Janeiro de 1930 -- por não ter sido “uma personalidade proeminente” como Mussolini ou Salazar, e o risco de desagregação do estado dominado por Castela ante a iminência da restauração republicana.

   Aquém de um Sidónio Pais (“Nele uma hora encarnou el-rei / D. Sebastião”), Primo de Rivera merecerá a Pessoa, ainda assim, um poema em Novembro de 1931, sete meses depois da proclamação da II República (“Relembremos na hora / Em que em ti chora / O que não ouves em ti, / Aquelle que foi / O heroe em si / Do que em ti se perdeu de heroe.”)

   Fanado um primeiro enlevo pelo saudosismo de Teixeira de Pascoaes, desenquadrado dos ritualismos da “Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira”, avesso ao integralismo de António Sardinha, o conservador mitificador Pessoa queda-se solitário e, essencialmente, incompreendido e impublicado.

   Nestas meditações Pessoa hipostasia alegados caracteres de pátrias diversas, configura “alianças civilizacionais”, aventa sínteses de almas nacionais, destaca a idiossincracia peninsular derivada de um “fundo romano-grego-árabe semita”, afere o cunho de países criadores de civilização e das línguas imperiais e define objectivos como o “domínio espirtual das américas ibéricas”.

   Uma suma contradição Pessoa deixou em aberto para eventual assombro de castelhanos, galegos, catalões ou vascos.

   O imperialismo cultural supremo, a “hegemonia intelectual da Ibéria”, implica o “Advento do Encoberto” e a assunção plena da “alma portuguesa” obriga a subsumir em si a totalidade da Ibéria.

  E, no entanto, é bem possível que, talvez, essa contradição pouco contasse para o Pessoa que sagrou D. Sebastião:

Que importa o areal, a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu sonhei que eterno dura,
É Esse que regressarei.”
(“Mensagem”)

Revista Ler
Março 2013, Nº 122
Dossier sobre "Ibéria - Introdução a um Imperialismo futuro", Ática, 2012

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