sábado, 29 de dezembro de 2012

Grandes Herdeiros






   A divulgação das fotografias na internet das gémeas em lingerie foi fatal para Qi Fang que acabou demitido no princípio de Dezembro por abuso de poder e corrupção.

   O chefe da polícia de Wusu, na província de Xinjiang, noroeste da China, mantinha à custa do erário público num apartamento de luxo as duas irmãs que faziam a inveja de camaradas e meros mortais.

   A malfeitoria levou os media oficiais a condenaram lapidarmente o camarada Qi e a uma rectificação: as jovens eram de facto irmãs, mas não se tratava de gémeas.

  A inesperada precisão não se perdeu entre as dezenas de escândalos sexuais e financeiros denunciados por blogues, redes sociais e na media sob controlo do estado após o Congresso do Partido Comunista (PCC) ter consagrado em Novembro a nova liderança de Xi Jinping.

  A luta contra a corrupção foi apontada, à semelhança do que já ocorrera com o antecessor Hu Jintao, como uma prioridade por Xi na sequência de processos envolvendo altos dirigentes como o ministro dos transportes ferroviários, Liu Zhinjun, ou Bo Xilai, chefe do partido em Chongqing, membro da Comissão Política, filho de Bo Yibo, um dos grandes do pós-maoísmo.

  O ano passado terá visto agravar-se a corrupção que em 2011, segundo um relatório agora divulgado pela Academia Chinesa de Ciências Sociais, levara à demissão de 4 843 quadros com funções a nível distrital ou superior.

  Conivências pessoais, redes alargadas de patrocínio, o tradicional guangxi, expandiram-se a todos os níveis da administração controlada pelo PCC, tornando extremamente difícil a erradicação de cliques corruptas, de acordo com investigadores chineses entrevistados recentemente pelo semanário O Observador Económico, de Pequim.

  A denúncia não-oficial de casos de corrupção, a par de actos de contestação política, expandiu-se de tal forma que obrigou as autoridades a adoptaram regras mais restritas de uso da internet por parte dos 538 milhões de utentes registados oficialmente no final do primeiro semestre de 2012.

  O retrato do guangxi comunista ficou, entretanto, muito mais preciso em 2012 graças a uma série de grandes investigações de orgãos de comunicação social norte-americanos cada vez mais empenhados em decifrar os fluxos de poder na China.

  The New York Times revelou em Outubro que familiares do primeiro-ministro Wen Jiabao, que abandonará o cargo em Março após uma década de governação, acumularam activos no valor de 2,7 mil milhões USD.

   O acesso ao jornal foi bloqueado na China tal como sucedeu ao serviço noticioso da Bloomberg depois de anunciar em Junho que familiares de Xi Jinping -- excluindo mulher e filha, mas com destaque para a sua irmã Qi Qiaoqiao – eram detentores de activos no montante de 376 milhões USD e propriedades em Hong Kong avaliadas em 55,6 milhões USD.

  A fechar o ano The Wall Street Journal apurava que os 75 milionários membros do Congresso Nacional do Povo tinham aumentado as suas fortunas mais rapidamente do que os demais confrades constantes da lista dos 1 024 chineses mais ricos compilada pelo Hurun Report, de Xangai.

  A riqueza dos 75 deputados, que detinham no conjunto activos superiores a mil milhões USD, aumentou 81% entre 2007 e 2012. Por comparação os activos de milionários sem cargos políticos registaram um acréscimo médio de 47%

  A Bloomberg apresentou, por sua vez, uma exaustiva investigação das fortunas de descendentes directos e seus cônjuges dos “Oito Anciãos”, o núcleo duro que em torno de Deng Xiaoping lançou as reformas económicas do pós-maoísmo.

   Entre os herdeiros dos “Oito Imortais” -- como por irrisão e em louvor da tradição popular taoísta dos “Oito Sábios” ficaram conhecidos os patriarcas comunistas – destacavam-se Wang Ju, He Ping e Chen Yuan que chegaram a controlar empresas estatais com activos no valor de 1,6 triliões USD no final de 2011, quase 1/5 do PIB da China.

  Entre estes 103 camaradas três estão actualmente no topo do poder.
  Xi Jianping e outros dois dirigentes dos sete membros do Comité Permanente da Comissão Política são filhos de Imortais e um quarto, Wang Qishan, é casado com a filha de um Imortal.

  A ascensão da aristocracia comunista desde o início das reformas nos anos 80 processou-se através do controlo de empresas estatais e de investimentos em Hong Kong e Macau que, posteriormente, alargaram os seus interesses ao estrangeiro.

  Numa segunda fase os Grandes Herdeiros, se assim se lhes pode chamar, apostaram no sector privado, sobretudo na área financeira e tecnológica, mas sempre com a rede protectora do guangxi.

  Filhos, filhas, netas e netos dos Imortais contam-se entre os maiores ganhadores das reformas que relançaram a fortuna da China e levaram cerca de 600 milhões de pessoas a escaparem a situações de probreza.

  O custo de uma acentuada desigualdade social em que, presentemente, um por cento da população detém 41,4 da riqueza nacional, tem uma vertente política em que poder partidário, administrativo, económico e financeiro se confundem sem remissão.


Jornal de Negócios
2 Janeiro 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/joao_carlos_barradas/detalhe/grandes_herdeiros.html

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O transe da guerra




Aleppo, Agosto 2012
(Foto Nicole Tung)


  Na Síria Bashar al Assad resiste após quase três anos de protestos e combates, mas é já impossível evitar o pior que inevitavelmente irá pesar sobre levantinos e europeus.

  A guerra civil assumiu um irremediável cunho sectário, opondo comunidades tribais, étnicas e religiosas, e, assim, tornaram-se extraordinariamente difíceis compromissos políticos que preservem a integridade do estado.

  Na frente militar o regime de al Assad concentra esforços no controlo da capital, de Aleppo, a urbe mais populosa, e outras cidades estratégicas como Homs e Hama, ainda que ao custo de perder temporariamente o domínio para forças rebeldes de bairros e subúrbios nestes centros urbanos.

  A província de Lakatia na costa do Mediterrâneo surge cada vez mais como o derradeiro reduto da minoria alauíta, uma variante esotérica e heterodoxa do xiismo que nos anos 60 arrebatou o poder político e militar na antiga província do Império Otomano, posteriormente mandato francês até 1946.

  A hegemonia política alauíta (cerca de 10% da população), graças ao assentimento da oligarquia de negócios sunita e de minorias, como cristãos ou druzos, finou-se e a balança do poder pende agora para a maioria sunita que engloba 70% dos sírios.

  A rede de alianças com tribos árabes sunitas – caso dos Hadidyn, Shammar e Tay – que Hafez al Assad consolidou a partir dos anos 70 é cada vez mais frágil, sobretudo a partir do momento em que outras tribos, como os al Neim, entraram em ruptura com os alauítas.

  A virulência dos combates numa guerra essencialmente urbana, com combates pelo efectivo controlo territorial e de populações, deixa escassa margem para compromissos.

  Face à superioridade militar convencional do regime os grupos rebeldes optaram por tácticas que implicam o sacrifício de grande número de civis, além de actos terroristas, o que, contudo, não obstou ao contínuo fluxo de armamento e financiamentos por parte de estados como o Qatar, a França ou os Estados Unidos, além da vizinha Turquia.

  A brutalidade da repressão do regime do partido Ba´ath reforçou a militância islamita que predomina entre os grupos combatentes propensos, por seu turno, à prática de atrocidades exemplares.

  Soou a hora da vingança pelo massacre dos revoltosos dos Irmãos Muçulmanos em 1979 e 1982.

  Os curdos, 250 mil almas entre 22 milhões de sírios, depois de al Assad ter-lhes reconhecido no ano passado a nacionalidade síria que fora retirada em 1962, enquistaram-se, por sua vez, nas suas regiões do norte do país opondo-se a árabes e outras minorias.

  Para desconcerto e preocupação de Damasco, Ancara e dos xiitas no poder em Bagdade a minoria curda síria joga agora por sua própria conta.

  A alienação dos curdos, bem como a diminuta influência sobre as operações militares no terreno, é um dos factores a retirar credibilidade à Coligação Nacional Síria, liderada pelo sunita Mouaz al Kathib, apesar do reconhecimento concedido por Washington, a Turquia, a União Europeia e as monarquias sunitas do Golfo.

  Numa fase da guerra em que grupos sunitas islamitas predominam na liderança das acções militares conta al Assad, ignorando promessas de mediação diplomática, as milícias salafistas mostram-se, por sua vez, particularmente activas no norte e noroeste, designadamente nas províncias de Aleppo e Idlib.

  Grupos como Jahbat al Nusra, (“Frente para a Vitória do Povo Sírio”) mobilizando confrades sunitas iraquianos, afirmam-se irredutíveis na luta pela reconstituição do califado no estrito rigor dos ensinamentos do Profeta.

  Estes islamitas radicais, presentemente apresentados como herdeiros do manto da Al Qaeda e denunciados como terroristas por Washington, dispersam-se na prática por várias organizações e, pelo recurso sistemático a tácticas de terror, estão apostados em sangrar a Síria por muitos anos.

  Chegados ao Ano III da Guerra as peripécias e atrocidades que irão marcar a era pós-al Assad deixam antever uma devastação que torna a paz improvável pelos tempos mais próximos.

  Enleada em todos os conflitos do Levante a Síria atormentará países vizinhos, será palco de confrontos de influências entre potências longínquas e potentados regionais e na iminência de um conflito mais vasto do Mar Cáspio ao Golfo Pérsico marcará o ano 2013 como um factor de imensa instabilidade.

  Uma guerra longínqua pouco ou nada aparenta ter a ver com as superação da crise portuguesa e europeia, mas, por mais que a queiram ignorar, muito pesará no cálculo de custos estratégicos.

Jornal de Negócios
26 Dezembro 2012

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A ideologia das armas




   Barack Obama, confrontado com o quarto massacre doméstico da sua presidência, dificilmente assumirá algo mais do que o apoio a uma proposta democrática no Congresso para renovar a interdição de venda de armas semi-automáticas que esteve em vigor entre 1994 e 2004.

   O morticínio de Connecticut levou alguns políticos democráticos a tentarem retomar a questão do controlo de venda de armas e munições que o partido evita desde a derrota presidencial de Al Gore em 2000.

   Ganhos em áreas urbanas e suburbanas de rendimentos elevados permitiram a Obama impor-se ao voto branco conservador pró-armas em estados como o Ohio e a Virgínia, prescindindo de tentar cativar um sector do eleitorado irremediavelmente perdido para os democratas.

   Na geografia eleitoral das presidenciais os democratas conseguiram com Obama ultrapassar o óbice de derrotas de Gore e John Kerry em estados como Missouri, Arkansas ou Vírginia Ocidental que tinham sido essenciais para as vitórias de Bill Clinton em 1992 e 1996.

   Afrontar o voto branco conservador pró-armas, que tende em geral a perder peso demográfico, poderá, no entanto, custar a maioria aos democratas no Senado se em 2014 o partido perder os seus eleitos pelo Arkansas, Alasca, Montana, Virgínia Ocidental e Luisiana.

   O risco é elevado tanto mais que Obama optou por esquivar-se a polémicas sobre armas para poder concentrar-se nas questões económicas, de regulação financeira e reforma do sector da saúde.

  Cerca de 300 milhões de armas são propriedade de particulares, um recorde mundial, mas a posse de armas tem vindo a diminuir desde a década de 70 quando aproximadamente metade das famílias declarava ter armas em casa.

   Em 2010 cerca de 30% das famílias possuiam armas, segundo o National Policy Center da Universidade de Chicago.

   A concentração de armas é significativa já que ¾ dos detentores de armas possuiam 2 ou mais unidades, cabendo a maior quota do arsenal precisamente a brancos maiores de 40 anos residentes em áreas rurais.

   O direito à posse individual de armas, consagrado no Segundo Aditamento à Constituição concebida em 1791 antes da criação de um exército nacional, foi reconhecido pelo Supremo Tribunal em 2008.

  Um em cada cinco norte-americanos possui uma arma de fogo e as sondagens da Gallup indicam que a adopção de restrições à sua venda perdeu apoio, caindo de um pico de 78% em 1990 para 44% duas décadas mais tarde.

  Esta tendência vai a par da quebra na criminalidade violenta, tendo ainda de se levar em linha de conta que os Estados Unidos se encontram em 26ª posição em termos internacionais quanto a crimes mortais por armas de fogo por 100 mil habitantes, segundo estatísticas da ONU relativas a 2010.

   Os assassinatos com armas de fogo têm vindo a diminuir atingindo no ano passado os 2,8 por 100 mil habitantes, de acordo com dados do FBI, que, aliás, regista a nível nacional os mais baixos níveis de criminalidade violenta desde a II Guerra Mundial.

   No confronto ideológico o panorama é diverso e prevalece a ideologia promovida pela National Riffle Association (NRA) fundada em 1871 e actualmente com 4,3 milhões de filiados.

  Tradicionalmente apoiante das medidas de controlo federal e estadual quanto a vendas e posse de armamento, a NRA defendeu genericamente a adopção de maiores restrições na sequência dos assassinatos de John Kennedy, 1963, e Robert Kennedy e Martin Luther King, em 1968.

  A partir de meados dos anos 70 NRA assumiu, no entanto, uma filosofia libertária e anti-governamental de pendor conservador.

  A eleição em 1980 de Ronald Reagan, patrocionado pela NRA, assinalou um ponto de viragem, ocorrendo seis anos depois as primeiras revisões de legislação federal marcadas pela prevalência do direito individual de posse e porte de armas.

  As campanhas da NRA foram fundamentais para o triunfo da ideologia da posse de arma como direito inalienável do cidadão e símbolo da liberdade individual quando paradoxalmente a sua potencial base de apoio, os detentores de armas, se reduzia.

  Longo e moroso será o processo de contestação à ideologia actualmente dominante que faz tudo por ignorar uma longa tradição estadual e federal de regulamentação do fabrico, posse e porte de armas.

  A polarização político-partidária, que acentua o cunho disfuncional de certos traços do sistema norte-americano de divisão de poderes, tornará ainda mais difícil superar preconceitos ideológicos e as resistências de grupos de interesses à semelhança do que vem sucedendo com a legislação ambiental.

Jornal de Negócios

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A trituradora do Japão

Naoto Kan
   Outro primeiro-ministro japonês foi triturado em pouco mais de um mês e as reformas prometidas pelo Partido Democrático (PDJ) depois da vitória nas eleições de Agosto de 2009 esfumaram-se ante a realidade de novo impasse político.
   Naoto Kan sucedeu no início de Junho a Yukio Hatoyama, condenado a demitir-se por financiamentos políticos ilícitos e após falhar a promessa de reduzir substancialmente a presença militar norte-americana no arquipélago.

   O anterior ministro das Finanças lançou-se na campanha para renovar a maioria da coligação governamental na eleição de domingo de metade da câmara alta do parlamento de Tóquio com declarações confusas sobre a possibilidade de aumentar a taxa de IVA.

   Kan e os seus aliados do Novo Partido do Povo, de direita, acabaram por falhar a maioria de 122 mandatos e viram o Partido Liberal-Democrático (PLD) recuperar da derrota que no Verão passado pôs termo a mais de meio século de hegemonia do bloco de centro-direita.

                            Um primeiro-ministro por fios

   Com 308 deputados na câmara baixa da Dieta, 12 mandatos aquém da maioria absoluta para se impor a eventuais obstruções na Câmara de Conselheiros, o PDJ, fundado em 1998 por dissidentes do PLD, social-democratas, socialistas, sindicalistas e centristas de várias tendências, terá agora de procurar novos aliados para aprovar legislação.

   Em Setembro Kan tem, ainda, pela frente eleições internas para a liderança do PDJ e até lá o seu destino depende dos acordos que conseguir firmar com pequenos partidos nas duas câmaras do parlamento.

   Pelo caminho o sexto chefe de Governo de Tóquio em quatro anos terá de encontrar uma solução para o diferendo com Washington sobre a base aérea de Futenma, em Okinawa, a maior instalação militar norte-americana no país.

   Sem qualquer apoio em Okinawa, onde se concentram mais de metade dos 47 mil militares norte--americanos destacados para o Japão, e ante a oposição do Partido Social-Democrata, que abandonou a coligação governamental em Maio, o PDJ esforça-se por encontrar uma solução de compromisso que permita relocalizar as instalações numa área menos povoada da ilha.

   Um acordo com os Estados Unidos poderá, no entanto, revelar-se impossível de concretizar se, conforme as sondagens indicam, um candidato oposto à transferência da base vencer as eleições para governador da perfeitura de Okinawa em Novembro.

                                      Promessas perdidas

   Disciplinar a burocracia do estado e descentralizar poderes contaram-se entre as grandes promessas eleitorais do PDJ.

    Hatoyama nem teve tempo para cumprir com o compromisso de pôr cobro à prática tradicional em que facções do PLD interferiam na actividade do executivo e a burocracia definia e controlava orçamentos à revelia do parlamento.

    O PDJ afirma continuar a pretender impor a neutralidade do funcionalismo público e a sua subordinação ao governo através da nomeação de supervisores da Dieta para os principais organismo de estado, além de reforçar o papel das chefias políticas dos ministérios na elaboração e gestão do orçamento.

   A par desta centralização da decisão política à custa da burocracia de estado, o PDJ defende a descentralização de poderes, incluindo gestão orçamental, para os municípios e órgãos de governo local, mas tudo está comprometido pela incapacidade de definir uma estratégia para ultrapassar a deflação e reduzir a dívida pública.

   O PDJ está dependente de acordos políticos com partidos minoritários para avançar com reformas fiscais como as propostas para reduzir o imposto de 40% sobre lucros e um aumento da actual taxa de 5% do IVA.

                                      IVA e dívida grega

   O aumento do IVA serviria na perspectiva do PDJ, que multiplica declarações contraditórias sobre a matéria, para financiar a reforma do sistema de pensões (21,5 % da população está na faixa etária a partir dos 65 anos), aliviando a dívida pública, mas arrisca deprimir o consumo interno.

   Kan dramatizou a situação do país, agitando o espectro de uma crise à grega, ao afirmar ser insustentável manter os actuais níveis de dívida pública que se aproxima dos 200% do PIB, o maior rombo da contabilidade nacional entre as economias desenvolvidas.

   No Japão 94 % das obrigações do tesouro são subscritas por instituições nacionais e particulares, mas à medida que a população envelhece (dos actuais 127 milhões de habitantes deverá cair para 89 milhões em 2055) as taxas de aforro domésticas irão diminuir e o recurso aos mercados internacionais será inevitável.

   Admitindo que crescimento económico depois das contracções de 2008 e 2009 poderá ultrapassar os 2% este ano, o governo de Tóquio, tem ainda de conter um défice orçamental na ordem dos 7%.

   A segunda economia mundial em apuros com uma das mais baixas taxas de produtividade entre os países desenvolvidos e uma dívida pública recorde esbarrou, outra vez, num impasse político.

Jornal de Negócios
14 Julho 2010

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Há mais inquietação além do spread




   Com notória astúcia política, cultivada e apurada desde que Silvio Berlusconi o nomeou comissário europeu em 1994, Mario Monti mantém em aberto todas as hipóteses quanto às suas próximas iniciativas.

   Monti conta fazer-se imprescindível para uma solução governativa impulsionada pelo Partito Democratico do ex-comunista Pier Luigi Bersani que, antes da convocação de eleições legislativas para Fevereiro, liderava as sondagens com 30% a 38% das intenção de voto.

   Retorno à chefia de um governo de Roma ou eleição como presidente da República são hipóteses ao alcance imediato do economista lombardo que poderá ainda aspirar a outros voos quando Van Rompuy e Durão Barroso terminarem os seus mandatos no final de 2014.

   O anúncio de demissão imediamente após Berlusconi retirar apoio ao executivo demonstra que Monti, mesmo a custo da aprovação de legislação importante como as revisões do código fiscal e ordenamento administrativo, pretendeu salvaguardar-se o mais possível dos previsíveis ataques do Cavaliere a quem passou a responder taco a taco.

   O Popolo della Libertà arranca com 14% a 18% das intenções de voto e Berlusconi dificilmente congregará uma coligação de centro-direito com apoio da Lega Nord capaz de se impor aos partidos do centro-esquerda.

   A denúncia de uma política recessiva e subserviente a Berlim pode calar fundo no eleitorado, mas para Berlusconi se esquivar às responsabilidades na crise que o obrigou a ter de apoiar uma solução tecnocrática em Novembro de 2011 será preciso ultrapassar reticências e suspeitas quanto a litígios judiciais, interesses pessoais e empresariais.

   A taxa de aprovação pessoal do Cavaliere, segundo uma sondagem da demos & PI publicada dia 7, é de 21%, bem pior do que a de Matteo Renzi (62%) -- o presidente da câmara de Florença oriundo da ala esquerda da democracia-cristã batido este mês por Bersani (50% de aprovação) na eleição para a liderança da coligação Bene Comune que mobiliza socialistas, ex-comunistas e verdes – e de Monti (47%).

  O MoVimento 5 Stelle, lançado em 2009 pelo comediante Beppe Grillo, é, por seu turno, o contraponto anti-sistema de vertente anarquista e populista de democracia directa, que após sucessivos êxitos em eleições locais e regionais cativa presentemente 15% a 20% das intenções de voto.

   Iniciativas de “protesto anti-política” assumem de resto um cunho “cada vez mais radical e consistente” tendo mobilizado 4% da população e 13% dos jovens que são afectados por uma taxa de desemprego de 36,5%, segundo o balanço da situação social 2012 que o Centri Studi Investimenti Sociali acaba de divulgar.

   O instituto de Roma assinala no seu 46º relatório anual que a “degradação moral da política e a corrupção” são tidas por 43% dos inquiridos como causa principal da actual crise, bem à frente do “desperdício de recursos públicos e clientelismo” (27%) ou da “evasão fiscal” (26%).

   A “revolta” é o sentimento mais verbalizado pelos inquiridos (52%) seguido do “medo” (21%), num país em que apenas 22% dos cidadãos mostram confiança na União Europeia.

   Este sentimento difuso de nojo constrata com a apreciação globalmente positiva que investidores e decisores políticos não-italianos atribuem às reformas encetadas por Monti para a estabilização da situação financeira e reabilitação da credibilidade de Roma após os desvarios do quarto governo Berlusconi.

   Cinco trimestres de recessão que culminarão numa contracção do PIB de 2,3% do PIB este ano -- sem expectativa de inversão de tendência em 2013 quando a dívida pública alcançar os 128% -- e 11% de desemprego têm efeitos negativos no quotidiano da maioria da população, com uma quebra de 5% no consumo, apesar das vantagens que possam apresentar indicadores como o saldo orçamental primário positivo de 3,6% com que o Professore se despedirá.

   Demagogo e irresponsável bem pode Berlusconi abominar o prémio de risco como cabala política e financeira contra sua excelsa e impoluta governação, mas por toda a Itália se nota uma inquietação bem além do spread que a maior parte dos governos europeus faz por ignorar por sua conta e risco.

Jornal de Negócios

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Uma greve ilegal




   Quatro motoristas da República Popular da China são quinta-feira presentes a tribunal em Singapura por participação na primeira “greve ilegal” na cidade-estado desde 1980.

   Os imigrantes recusaram comparecer ao trabalho durante dois dias no final de Novembro num acto de protesto que envolveu motoristas chineses da SMRT, uma das duas empresas públicas de transporte de passageiros.

   Um dos grevistas foi já condenado a seis semanas de prisão e outros 29 deportados nos termos da lei que obriga a um pré-aviso de greve de 14 dias nos “sectores essenciais” (transportes públicos, saúde e bombeiros), interditando paralizações de trabalho e lock-outs nos serviços de electricidade e águas.

   Os imigrantes mantiveram-se nos seus dormitórios e faltaram ao serviço, alegando más condições de alojamento e discriminação em relação a colegas locais e a trabalhadores oriundos da Malásia.

   O protesto envolveu 171 motoristas a 26 de Novembro e 88 no segundo dia de greve, apesar dos trabalhadores arriscarem perda do visto de trabalho e deportação, pena de prisão até um ano e/ou multa de 2000 dólares de Singapura (1254 €).

   A mão-de-obra vinda da China representa 22% dos cerca de 2 mil motoristas da frota rodoviária e ferroviária da SMRT e a empresa, apesar de admitir o bem fundado de algumas das queixas dos trabalhadores, acatou a política de “tolerância zero” quanto a acções laborais ilegais definida pelo governo.

   A greve dos motoristas chineses chamou a atenção para a insustentável crise de recursos laborais no mais próspero país do Sudeste da Ásia que praticamente conhece uma situação de pleno emprego.

   Imigrantes oriundos sobretudo do Sudeste Asiático, Paquistão, Índia, Bangladesh e China asseguram a maioria da mão-de-obra não-especializada ou de baixa qualificação nos sectores industrial, da construção, transportes, limpezas e serviços domésticos.

   Os 3,3 milhões de cidadãos de Singapura convivem com cerca de 2 milhões de estrangeiros numa cidade-estado onde predomina a população de etnia chinesa (cerca de 70%), seguida de malaios (13%) e indianos (9%).

   Um terço da mão-de-obra (1,23 milhões de pessoas) é estrangeira e têm subido de tom as queixas num tom chauvinista contra a presença excessiva de imigrantes.

   Novos ricos da República Popular da China, milionários indonésios ou trabalhadores indiferenciados da Tailândia ou Filipinas são por igual criticados por indisciplina, congestão de serviços públicos, arrogância, contribuição para a especulação imobiliária.

  Os vencimentos dos imigrantes, na ausência de salário mínimo, variam em regra entre os 500 (314€) e os 2000 dólares de Singapura (1254 €), abaixo do salário médio dos cidadãos locais e residentes permanentes que em 2011 se cifrava em 3250 dólares de Singapura (2038 €).

  O Partido de Acção Popular (PAP), na governação desde 1959 e poder indisputado desde a secessão da Federação da Malásia em 1965, garante através de uma rede de patrocínio e controlo estrito de recursos a concertação entre administração pública, patronato e sindicatos (a última greve legal ocorreu em 1986).

   A representação sindical de trabalhadores imigrantes é muito limitada e as organizações laborais subordinam-se de facto às estratégias governamentais do PAP que nas eleições de Maio de 2011 obteve 60% dos votos, o seu pior resultado desde 1965, ficando mesmo assim com 81 dos 87 mandatos parlamentares.

   O autoritarismo do PAP teve êxito ao garantir a criação de um centro industrial, de serviços e financeiro de alta reputação, mas Singapura enfrenta presentemente dificuldades para suster a concorrência de novos pólos regionais e o efeito negativo da recessão da eurozona.

  A tentação para limitar o mais possível a contratação de mão-de-obra estrangeira altamente qualificada faz-se sentir, mas os efeitos ameaçam revelar-se contraproducentes.

   Uma taxa de natalidade baixíssima (1,37 nascimentos por mulher), a relutância dos cidadãos de Singapura em aceitarem trabalhos pesados e mal pagos, a ausência de ganhos de produtividade nos sectores industriais e de serviços, impossibilitam dispensar mão-de-obra imigrante seja nos escalões de qualificações mais baixos ou nos mais altos.

   O patriarca fundador da moderna Singapura, o brilhante e intolerante Lee Kuan Yew, sempre advertiu para o risco da pequena cidade-estado ser submersa pela selva e anarquia tropicais se não acatasse as directivas da meritocracia desenvolvimentista que o PAP alegadamente representa.

  Agora, Singapura começa a confrontar-se com o imperativo de integrar uma crescente mão-de-obra estrangeira que cedo ou tarde começará a pesar politicamente.

Jornal de Negócios

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Outro resgate na calha




  
    O governo comunista de Nicósia, que assegura a presidência rotativa da União Europeia, aguardar um resgate que poderá atingir os 17,5 mil milhões de euros para recapitalizar a banca, refinanciamento de dívida e cobertura do défice orçamental.

   Falhadas as tentativas de financiamento da metade grega de Chipre junto da Rússia – que em 2011 facultara 2,5 mil milhões de euros após Nicósia ter perdido o acesso aos mercados internacionais – e da China, o presidente Dimitris Christofias viu-se obrigado em Junho a requer ajuda do FMI e parceiros do euro.

   O montante do resgaste está dependente de uma auditoria em Dezembro, a cargo do fundo de investimento norte-americano Pimco, à banca e instituições financeiras que antes do perdão parcial dos credores privados a Atenas apresentavam uma exposição à divída grega, pública e privada, na ordem dos 29 mil milhões de euros.

   Aos cerca de 4,5 mil milhões de euros de prejuízos resultantes da reestruturação da dívida grega junta-se uma recessão que fez o desemprego ultrapassar os 10%, levou o défice orçamental aos 6,4% e está em vias de fazer disparar a dívida pública (71,6% do PIB no final de 2011).

   O resgate da terceira mais pequena economia da eurozona deverá ultrapassar o PIB cipriota grego, que ronda os 18 mil milhões de euros, enquanto os créditos em risco da banca local superam 152 mil milhões de euros, segundo o FMI.

   As contrapartidas pelo financiamento que deverá prolongar-se até 2016 implicam cortes na despesa pública, privatizações e, eventualmente, a cativação de parte das receitas da futura exploração off shore de jazidas de gás natural.

   A efectiva aplicação da legislação contra lavagem de dinheiro, que Chipre tinha adoptado para assegurar a adesão ao euro em 2004, terá, contudo, consequências de peso.

   Desde os anos 90 que Chipre se tornou um dos principais centros de captação de capitais russos graças a facilidades fiscais para estabelecimento de empresas.

   Um relatório deliberadamente vago que os serviços de informação alemães facultaram em Maio ao Der Spiegel estimava em cerca de 20 mil milhões de euros os depósitos de investidores da Rússia na banca cipriota e em 2000 o número de empresas russas registadas em Nicósia.

   A origem deste dinheiro é frequentemente dúbia e ao paraíso fiscal do Mediterrâneo – onde a população de origem russa é estimada em cerca de 50 mil pessoas entre menos de 800 mil habitantes -- vai parar boa parte do capital expatriado da Rússia, cerca de 350 mil milhões USD nos últimos cinco anos.

   Nos primeiros 9 meses de 2012 os principais destinos do capital russo foram a Suíça (38,6 mil milhões USD), Aústria (14,5 mil milhões USD) e Chipre (10,8 mil milhões USD), de acordo com as estatísticas oficiais de Moscovo.

   Os maiores investidores estrangeiros na Rússia foram, por sua vez, a Holanda (15,7 mil milhões USD), Chipre (11,8 mil milhões USD) e Reino Unido (10,6 mil milhões USD).

   Chipre adiantou-se à crescente concorrência na União Europeia oferecendo condições atraentes para naturalização de cidadãos oriundos de estados não-comunistários.

   Legislação adoptada em 2007 permite ao governo outorgar a nacionalidade por “serviços à República”, um privilégio de que beneficiou em 2010 o magnata do aço Aleksandr Abramov.

   Um levantamento do jornal económico Kommersant assinalava em Outubro que em quatro ou cinco meses um cidadão russo conseguia obter passaporte cipriota mediante depósito por prazo superior a cinco anos de 15 milhões USD, de acordo com um responsável da UGF Wealth Management.

   Outro fundo de investimento russo, a APEX Capital Partners, garantia por seu turno ao jornal de Moscovo a naturalização expedita mediante compra de obrigações do tesouro num montante de 10 milhões de euros e aquisição de propriedade imobiliária no valor mínimo de 500 mil euros.

   A crise bancária no Chipre está a levar, no entanto, os capitais russos a procurarem portos de abrigo alternativos.

   Entre Junho de 2011 e o final do primeiro semestre deste ano os depósitos da responsabilidade de residentes oriundos de países não-UE cairam 85 milhões de euros.

   Em Junho o banco central de Chipre contabilizava esses depósitos em 21,8 mil milhões de euros, montante que abarca a totalidade de depositantes oriundos de estados fora da UE e contradiz os dados dos serviços de informação de Berlim.

   O FMI assinalou, por exemplo, esta semana o risco que o forte aumento de depósitos estrangeiros representa para o sistema financeiro da Letónia à imagem do que sucedeu em 2008 quando o país foi abalado pela falência do banco Parex, obrigando a um resgate pela UE e FMI com um empréstimo de 7,5 mil milhões de euros.

   Na primeira metade deste ano 1,2 mil milhões de dólares deram entrada na Letónia, atingindo os depósitos de não-residentes, na maioria russos e cidadãos de outros antigos estados da URSS, 10 mil milhões USD, cerca de metade do total.

   Os efeitos do resgate do Chipre no mercado internacional de capitais ainda mal se começaram a fazer sentir-se.

Jornal de Negócios

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Israel confronta-se com a sua fragilidade






   Os parcos dividendos da ofensiva contra Gaza lançam as maiores dúvidas sobre a capacidade de Israel poder aventurar-se num ataque unilateral ao Irão sem sofrer um incomensurável desaire.

   Uma semana de bombardeamentos deixou a claro que, salvo uma inviável reocupação de Gaza temida pela própria população judia, Israel não conseguirá eliminar a ameaça dos mísseis do Hamas e de outras organizações islamitas.

   Uma trégua, implicando a suspensão do lançamento de mísseis a troco do aligeiramento do bloqueio imposto por Israel há cinco anos, não poderá obviar ao rearmamento do Hamas e demais organizações palestinianas.

   Os esforços israelitas para destruir redes de contrabando, como, por exemplo, os ataques ocorridos no Sudão, estão condenados ao fracasso dada a situação de insegurança na península do Sinai e o apoio do governo islamita do Cairo aos confrades do Hamas.

  Além da frente sul de Israel, sujeita a ser fustigada por mísseis de fraca precisão, também áreas do centro do país e mesmo Telavive e Jerusalém estão agora na mira de mísseis Fajr 5 de origem iraniana com um alcance de 75 quilómetros.

  A notória melhoria da capacidade do Hamas e da Jihad Islâmica no fabrico, montagem, armazenamento e lançamento de mísseis permitirá recuperar a curto prazo a degradação das suas capacidades ofensivas provocada pela actual investida israelita.

   Os inimigos em Gaza representam uma ameaça tão perigosa e destabilizadora quanto o Hizballah a norte, apesar da segurança relativa oferecida pelo sistema de defesa antimísseis Cúpula de Ferro.

   A constatação de Israel da impossibilidade de desalojar o Hamas fragiliza Mahmoud Abbas que aguarda o reconhecimento pela Assembleia Geral da ONU da Autoridade Palestiniana como estado observador.

   A ameaça de retaliações de Israel e dos Estados Unidos no caso de promoção do estatuto internacional palestiniano -- designadamente através do congelamento de contribuições e financiamentos à ONU e à Autoridade Palestiniana -- contribui para alienar os palestinianos da Cisjordânia que vêem os seus representantes incapazes de obter concessões.

   Nenhum avanço quanto ao estatuto de Jerusalém, o congelamento e desmantelamento de colonatos judaicos, o direito de retorno de refugiados e o controlo de recursos hídricos.

   Neste impasse aumenta o risco da Fatah perder o controlo da Cisjordânia e do ressentimento dos árabes israelitas -- 20% da população do estado hebraico -- extravassar em protestos de rua, enquanto na Jordânia se reforça as exigência dos Irmãos Muçulmanos que reclamam ao Rei Abdullah II o corte de relações com Israel.

   Na frente norte, onde a imponderabilidade da guerra civil na Síria condiciona o Hizballah e priva Israel de um inimigo fiável, o estado hebraico confronta-se com as consequências do fracasso estratégico do confronto de 2006 que consagrou os xiitas libaneses como irredutível força militar.

   A retaguarda israelita apresenta-se, portanto, muito insegura e a população judia acaba de sofrer novo choque psicológico ao ser confrontada com acrescida vulnerabilidade a ataques de mísseis.

   O risco de isolamento diplomático no caso de Israel enveredar por acções militares que resultem em significativas baixas civis entre o inimigo começa também a fazer-se sentir entre uma população que, na ausência de garantias credíveis de segurança, tenderá, no entanto, a votar em forças políticas que rejeitam qualquer compromisso territorial.

   Perdido o contrapeso estratégico que representava a Turquia o isolamento israelita no Médio Oriente é avassalador.

   A conjugação pontual de interesses contra o Irão com as monarquias sunitas do Golfo, o Arzebeijão e alguns grupos curdos não basta para Israel se lançar numa eventual acção militar com ou sem apoio prévio dos Estados Unidos.

   A extrema fragilidade da situação nas conflituosas fronteiras de Israel obriga a uma mobilização total de recursos e riscos generalizados para os civis judeus em caso de guerra com o Irão, nova ronda de confrontos em todas as frentes, e esta realidade só a pouco e pouco começa a ser compreendida.

Jornal de Negócios
21 Novembro 2012

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O adultério de Petraeus e a gestão de crises



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   A queda em desgraça do mais celebrado general das últimas guerras americanas tem um contraponto na falência das estratégias militares no Afeganistão e no Iraque, na conivência dos media com campanhas de propaganda e na degradação dos padrões éticos nas forças armadas.

   David Petraeus está no centro de um escândalo amoroso com avassaladoras ramificações políticas envolvendo o chefe do contingente norte-americano e multinacional no Afeganistão e indigitado comandante das forças da NATO na Europa, general John Allen.

   Paula Broadwell -- ex-oficial dos serviços militares de informações, investigadora de assuntos de Defesa, biógrafa e amante de Petraeus -- surge em destaque numa teia de amores e ciúmes cuja investigação degenerou numa guerra de competências e suspeitas entre o FBI, a CIA, o Pentágono, o Departamento de Justiça, a Casa Branca e o Congresso.

   O escândalo tem também como protagonista Jill Keely, voluntária dos serviços sociais na base da Flórida onde está instalado o quartel-general do Comando Central que supervisiona operações militares na Ásia Central e Médio Oriente, com ligações por esclarecer a um agente não-identificado do FBI e ao general Allen.

   As fugas de informação sobre adultério e posse não-autorizada de informação confidencial evidenciam comportamentos menos próprios numa altura em que inquéritos sobre abusos em todos os ramos das forças armadas traçam, por seu turno, um quadro inquietante das consequências da profissionalização do serviço militar e do uso crescente de empresas privadas em cenários de guerra.

   O choque entre a promoção ideológica das forças armadas como um corpo excepcional e derradeiro bastião do americanismo e liberdade e a realidade de sucessivas missões rotineiras ou brutais tem tirado lustre aos galões e às fardas.

   Petraeus tipifica as ilusões do pós-11 de Setembro e da busca de um herói redentor em guerras sem norte.

   A um dos mais brilhantes graduados de West Point, posteriormente licenciado pela Universidade de Princeton com um estudo sobre influência militar e uso da força na era pós-Vietname, coube assumir em Fevereiro de 2007 o comando das forças norte-americanos no Iraque quando a guerra civil estava ao rubro .

  Um reforço de 30 mil homens serviu para o general testar as suas teses sobre estratégia de contra-insurreição que apontavam, sobretudo, para a garantia de segurança e subsistência económica a núcleos populacionais cada vez mais amplos graças à presença constante de forças militares no terreno.

   A expulsão de sunitas na maior parte dos bairros de Bagdade, a cedência de Bassorá a milícias xiitas por parte das forças britânicas, a trégua negociada com o Exército do Mahdi do xiita Moqtad Al Sadr, a mobilização de tribos sunitas na província de Anbar contra a Al Qaeda, a não-interferência do governo central no Curdistão, vieram a conjugar-se no sentido de uma redução da violência para níveis que o Pentágono considerou “toleráveis”.

   Nenhum dos problemas criados pela intervenção ficou resolvido, mas Petraeus, aureolado “Pacificador do Iraque” graças a uma incessante campanha de autopromoção nos media, criou condições para George W. Bush puder anunciar o início da retirada norte-americana em Fevereiro de 2009 e a completar em 2011.

   Petraeus, após uma comissão como chefe do Comando Central a partir do final Outubro de 2008, foi nomeado por Barack Obama em Junho de 2010 comandante das forças no Afeganistão.

   A retórica sobre protecção de civis, cooperação acrescida com forças militares e policiais afegãs, combate à corrupção e apoio ao desenvolvimento económico, revelou-se um fracasso, mas serviu o objectivo do presidente.

  O general abandonou o Afeganistão em Julho de 2011 e deixou as forças armadas em Agosto, tendo cumprido a sua missão: dar cobertura para mais uma retirada ainda que nenhuma questão estratégica tenha sido resolvida a contento de Washington.

  Após assumir a direcção da CIA, em Setembro de 2011, Petraeus viu a sua exposição mediática reduzida ao mínimo, só voltando à ribalta devido à polémica em torno das versões oficiais contraditórias sobre o ataque terrorista ao consulado de Benghazi em Setembro deste ano.

   O teórico da contra-insurreição pela conquista da confiança de populações civis tinha-se, entretanto, transformado no patrono da militarização da CIA, do recurso ao assassínio sistemático de suspeitos estrangeiros de terrorismo através, sempre que possível, de veículos aéreos não-tripulados.

   O general que sempre apostou na promoção da imagem de estratego ímpar da sua geração, ainda que apenas tenha servido para dar cobertura a retiradas em guerras falhadas, terá agora de pagar por não passar de mais um mito de cuecas na mão.

Jornal de Negócios
14 Novembro 2012


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O precipício americano




   Quando a poeira assentar, reconfirmadas as maiorias republicana na Câmara de Representantes e democrática no Senado, os dois partidos terão de chegar a um compromisso para evitar a 1 de Janeiro cortes de despesas e aumentos de impostos superiores a 600 mil milhões de dólares.

   Se Barack Obama conseguir a reeleição para escapar ao chamado “precipício orçamental” terá de retomar negociações com democratas a aceitarem reduções em programas assistenciais, sobretudo o Medicare e Medicaid, a troco de republicanos admitirem aumentos de impostos para rendimentos superiores a 250 mil USD/ano.

   Uma vitória de Mitt Romney obrigará a um maior compasso de espera já que o novo Congresso só toma posse a 3 de Janeiro e o presidente 17 dias mais tarde.

   Uma prorrogação com efectivos retroactivos das isenções e benefícios fiscais em vigor até 31 de Dezembro serviria a Romney para fazer avançar uma lógica negocial diferente, mas visando igualmente um acordo rápido de forma a mitigar os cortes obrigatórios na despesa federal.

   O republicano insistiria em reduções no sector da Defesa abaixo dos 9,4% previstos e numa reconfiguração da carga fiscal beneficiando proporcionalmente categorias de rendimentos mais elevados e com maior capacidade de investimento.

   O impacto económico negativo dos cortes de despesa e aumentos de impostos obriga a um acordo nas grandes linhas do discutido no Verão de 2011 quanto a redução do défice orçamental em 4 triliões de dólares numa década e à adopção de medidas para evitar que dívida pública, rondando presentemente os 72% do PIB, ultrapasse os 100% em 2020.

   Perca ou ganhe Romney, que apresentou como objectivo a redução em quatro anos a despesa federal de 24% para 20% do PIB, a ala republicana mais radical insistirá na recusa genérica de aumentos de impostos.

   Os democratas mais próximos dos sectores sociais dependentes do apoio estatal, sensivelmente um terço da população, tenderão a responder com reforçadas exigências de intervenção e regulação federal dita anti-plutocrática e de estímulo à criação de emprego.

   A extrema dificuldade em chegar a compromissos políticos entre republicanos e democratas, as dissencões entre várias vertentes de poderes do sistema político augura desordem e acordos meramente parciais agravando a prazo o défice orçamental, a dívida pública e bloqueando reformas estruturais.

  Numa fase de transição demográfica em que a geração da mitologia baby boomer -- pele branca, ideologia contestatária e consumista que tanta abarca Bill Clinton como George W. Bush – caminha para a reforma imperam contraditórias percepções e valorações sociais em reacção a uma crescente desigualdade social e ante reequilíbrios étnicos inéditos.

   Acentuam-se, assim, revoltas ante perdas de estatuto e expectativas frustradas inquinando de tal forma a política norte-americana que a polarização partidária é de regra.

  As polémicas sobre integração e expulsão de residentes ilegais -- cerca de 10 a 11 milhões de imigrantes clandestinos, sendo quase 80% hispano-americanos – revelam-se, desta forma, algo de intratável à imagem do que o futuro próximo reserva para questões ambientais.

  A virulência desta disputa só é comparável à controvérsia sobre o direito ao aborto que, ainda assim, se dilui em opções individuais irredutíveis à legislação vigente independentemente dos dramas pessoais, da afirmação feminista de igualdade de direitos e dos controversos direitos dos fetos.

   Desde 2008 e depois de Obama ter evitado por um triz uma depressão o drama da desigualdade ganha, contudo, cada vez mais expressão.

   O Departamento de Censos apurou que em 2011 o Índice Gini se cifrava em 0,463, o pior registo de desigualdade social das últimas quatro décadas (0 corresponde a igualdade absoluta e 1 à posse da totalidade do rendimento por uma única pessoa).

   Em 1980 as unidades familiares mais ricas, 5% dos contribuintes, detinham 16,5% da totalidade do rendimento nacional, mas em 2011 essa percentagem subira para 22,3%.

  As famílias de rendimentos médios absorviam, por sua vez, 51,7% do rendimento disponível em 1980 e apenas 45,7% no ano passado.

  O rendimento médio em 2011 era de 50 054 USD/ano e 46,2 milhões de norte-americanos quedavam-se abaixo do limiar da pobreza, definido para uma família de quatro pessoas em 23 021 USD/ano

  Subsídios directos e indirectos obviam a deterioração ainda pior das condições de vida das classes de menores rendimentos e apesar de em 2011 46% das famílias não terem pago imposto federal sobre o rendimento 2/3 efectuaram descontos para a Segurança Social e o Medicare.

  Da degradação de infraestruturas às carências educativas, passando pela potência comercial da China, os temores e revolta quanto à perda relativa de capacidade competitiva dos Estados Unidos ganham força.

  Temerosas ante precipícios nunca vislumbrados as tribos políticas norte-americanos cerram fileiras em torno das suas certezas e o país racha ao meio.

Jornal de Negócios, 7 Novembro 2012