quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Uns cêntimos de soberania

  

  Adiar a reestruturação da dívida de Atenas para obviar a perdas de credores privados e bancos centrais, evitar a falência da maior parte da banca grega e a descredibilização do euro tem sido a opção seguida pela União Europeia e o Banco Central Europeu, com aval do FMI, mas esta estratégia não resolve os problemas de solvência do país.

   As soluções de recurso para novos financiamentos de emergência à Grécia na ordem dos 60 mil milhões de euros para os próximos dois anos por parte de Bruxelas e do FMI levantam, entretanto, sérios problemas quanto aos direitos soberanos dos estados da UE.

   O governo de George Papandreou apresentou como contrapartida à continuação e aumento da ajuda externa a obtenção nos próximos quatro anos de cerca de 50 mil milhões de euros em privatizações, além de cortes orçamentais e receitas fiscais adicionais de 6 mil milhões de euros no final deste ano e de outros 22 mil milhões de euros até 2015.

Sem consenso, nem mandato

   As oposições à direita e esquerda dos socialistas recusaram, por sua vez, apoiar tal compromisso que, segundo o governo, permitiria reduzir o défice orçamental (10,5% do PIB em 2010) para 7,5% este ano.

   Para os conservadores da "Nova Democracia", comunistas e frentes radicais de extrema-esquerda e extrema-direita representadas no parlamento as propostas de Papandreou acentuarão a recessão e ultrapassam o mandato da actual maioria que expira no Outono de 2013.

   O impasse político e avaliações negativas do cumprimento dos termos do acordo que disponibilizou 110 mil milhões de euros em Maio de 2010 obrigaram, por seu turno, o FMI a admitir bloquear a sua contribuição para a prestação de 12 mil milhões de euros programada para o final de Junho.

   Um compromisso quanto a novos planos de empréstimo tornou-se assim inevitável e a participação de representantes dos credores numa agência de tutela do processo de privatizações surge como questão central.

   Incorrecções e omissões no cadastro de bens imóveis a alienar foram um dos primeiros argumentos aventados para a criação de uma agência de privatização com representantes estrangeiros na gerência e supervisão técnica, mas, na realidade, as reticências quanto à idoneidade dos agentes do estado grego sobrelevam todas as demais preocupações.

   O direito de veto destes representantes estrangeiros obriga a uma autorização do parlamento de Atenas, onde o PASOK tem uma maioria de seis deputados, que reconheça a restrição dos direitos do estado soberano grego.

   As estimativas do BCE, UE e FMI quanto aos bens móveis e imóveis propriedade do estado grego passíveis de eventual privatização não são ainda públicas, mas poderão oscilar entre 300 mil a 500 mil milhões de euros, de acordo com fugas de informação diversas.

   Reservar a totalidade ou parte dos activos alvo de privatização como garantia a credores (privados, institucionais e bancos centrais) é matéria já em discussão.

À espera de um estoiro

   A urgência na obtenção de financiamentos, falhado o objectivo de retorno da Grécia aos mercados financeiros em 2012, é, no entanto, apenas mais um momento numa crise de dívida soberana em que sucessivos resgates confirmaram ser politicamente impossível proceder a transferências a fundo perdido para Atenas.

   Admitir cortes no montante da dívida (ronda presentemente os 327 mil milhões de euros e, segundo a "Comissão Europeia", atingirá 158% do PIB este ano) é anátema para o BCE e opção com potencial efeito de contágio letal para países como Portugal ou a Espanha.

   A Grécia sofreu uma contracção do PIB de 4,5% em 2010 e não alimenta expectativas de crescimento que permitam reduzir a dívida.

   A insolvência de Atenas é crível, provável e agravada pela ausência de consensos políticos e sociais no país.

   Os maiores credores entre a banca alemã - presentemente com uma exposição à dívida grega de 19 mil milhões de euros - e francesa (na posse de 15 mil milhões em títulos helénicos) terão de se preparar para assumir perdas.
  Manter na eurozona um estado que ameaça declarar bancarrota tornou-se um desafio imediato de equilibrismo político e financeiro.

Direitos em causa

   A perda temporária de direitos soberanos por parte de estados endividados não é novidade, mas no caso da UE estas cedências surgem no âmbito de discussões inconclusivas sobre unificação de política económica e financeira essencial à sustentabilidade do euro.

   As condições de acesso a partir de 2013 ao "Mecanismo Europeu de Estabilidade" ainda não estão claramente definidas apesar do compromisso entre Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, em Outubro do ano passado, que excluiu a imposição automática de sanções a estados com défices orçamentais acima dos 3% do PIB.

   Os chefes de estado e governo dos 27 acordaram, então, que a suspensão do direito de voto a países "em violação grave dos princípios base da União Económica e Monetária" fosse prerrogativa do "Conselho Europeu", sob proposta da "Comissão", no caso de não ocorrer a oposição de uma maioria qualificada.

   Tal compromisso aguarda definição legal, mas a insolvência grega, as dificuldades com o resgate da Irlanda e o eventual incumprimento de alguns dos objectivos definidos para Portugal, acentuam tendências para transferência de poderes para a esfera executiva na UE à custa dos parlamentos nacionais e do "Parlamento Europeu".

Jornal de Negócios
01 Junho 2011

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Um camaleão do Peru



   Uma queda sem paralelo de 12,5% da bolsa de Lima e a intervenção do banco central para travar a maior desvalorização em dois anos da moeda nacional, o sol, marcaram na segunda-feira a eleição de Ollanta Humala para presidente do Peru.

  Humala arrebatou mais de 7 milhões de eleitores, triunfou em 19 das 24 províncias, e com 52% dos votos impôs-se a Keiko Fujimori, após quase meio ano de campanha.

Aos 48 anos, o presidente que trocou as camisas vermelhas pelos tons azul-celeste, é um enigma camaleónico.

Dos golpes ao lulismo
   No final de 2000 o então tenente-coronel Ollanta e seu irmão Antauro lançaram um golpe contra Alberto Fujimori e foram expulsos do exército.

   A queda em desgraça do presidente valeu-lhes, no entanto, uma amnistia do Congresso em Dezembro.

   Antauro voltou a sublevar-se em Janeiro de 2005 contra Alejandro Toledo, o sucessor eleito de Fujimori, e veio a ser condenado a 25 anos de prisão.

   Humala, adido militar em Seul, tinha acabado de passar compulsivamente à reserva e esquivou-se então a condenar o golpismo do irmão e a renegar a doutrina racista e nacionalista de seu pai Isaac que o inspirava desde a infância.

   O patriarca Isaac, mestiço hispano-quechua, condena o Chile como maior inimigo histórico do Peru e é apologista da supremacia indigenista da chamada raça "cobriza" a quem caberia retomar o domínio do país usurpado aos incas pelos conquistadores espanhóis.

   O venezuelano Hugo Chávez veio juntar-se à galeria de heróis de Humala quando o ex-militar concorreu às presidenciais em 2006 para ser derrotado na segunda volta por Alan García.

A redenção de García
   O primeiro mandato presidencial de García, entre 1985 e 1990, deixara o país à beira da ruína e à mercê de todas as violências, com destaque letal para a guerrilha maoísta do "Sendero Luminoso".

   García viria, contudo, a reabilitar-se na segunda passagem pela presidência e consolidou durante os últimos cinco anos as reformas iniciadas por Toledo.

   Na última década o Peru brilhou na América Latina com um crescimento económico anual médio rondando os 5%.

   A exploração mineira (o Peru é o segundo maior produtor mundial de prata e cobre e o sexto de ouro) foi o sustentáculo da expansão económica, contribuindo para 60% das receitas das exportações.

A SIDA, o cancro e o fascismo

   Para as presidenciais deste ano Humala surgiria inicialmente como o candidato de todos os radicalismos nacionalistas e estatizantes de matriz esquerdista, mas, a pouco e pouco, modelou o discurso à imagem de uma alegada social-democracia ponderada ao estilo de Lula da Silva.

   Na primeira volta em Abril a disputa entre três candidatos moderados acabou por abrir caminho ao triunfo de Humala com 32% dos votos seguido de Keiko Fujimori com 24%.

   A votação da filha do ex-presidente que cumpre desde 2007 três penas de prisão, designadamente uma sentença de 25 anos por responsabilidade política em matanças de opositores, foi uma das grandes surpresas das presidenciais em Abril.

   As eleições legislativas desse mês deixaram, por sua vez, o partido "Gana Peru" de Humala com 47 deputados, a "Fuerza 2011" de Keiko com 37, e o "Perú Posible" de Toledo, candidato presidencial derrotado, com 21 lugares entre os 130 mandatos no Congresso de Lima.

   Um confronto entre Ollanta e Keiko era tido como um pesadelo improvável nos círculos liberais antes da votação de Abril.

   O escritor Mario Vargas Llosa, candidato batido por Alberto Fujimori em 1990, declarava que se os seus compatriotas cometessem tal insensatez ver-se-iam ante uma opção entre a sida e o cancro.

   Vargas Llosa viria, no entanto, a atalhar caminho e proclamar o seu apoio a Humala para "vencer o fascismo e salvar a democracia", enquanto Toledo e os seus alinhavam com o antigo rival.

A herança fatal de Keiko
   Keiko viu-se apoiada pela Igreja Católica, a maior parte da burguesia e círculos empresariais, e todos os temerosos de uma recaída esquerdizante 36 anos depois do regime do general Juan Velazco Alvarado, inspirador de alguns militares revolucionários em Portugal no pós-25 de Abril.

   Os conselheiros brasileiros do "Partido do Trabalhadores" enviados para Lima conseguiram, por seu turno, suavizar a imagem de Humala e nem o contributo do antigo "mayor" de Nova Iorque Rudy Giuliani, apresentado como assessor para o combate à criminalidade, ou do economista liberal Hernando Soto valeu a Keiko.

   A jovem de 36 anos e licenciada em gestão de empresas nos Estados Unidos começou por se apresentar como uma candidata exemplar do dinamismo que sucessivas gerações de descendentes de imigrantes japoneses trouxeram ao Peru.

   A campanha de Keiko veio a soçobrar por surgir demasiado ligada aos abusos da década da presidência Fujimori, apesar de paradoxalmente contar com apoios de liberais desprezados pelo antigo chefe de estado.

   A presença de antigos colaboradores de Alberto Fujimori, em especial de responsáveis pelos programas de esterilização forçada de mais de 250 mil mulheres nos anos 90, foi fatal para Keiko que só se conseguiu impor em províncias da costa norte, na capital e na vizinha Callao.

Crescimento e desigualdade    Humala apresentou sucessivos programas económicos cada vez mais moderados, abandonou as referências a uma revisão constitucional para alargar poderes presidenciais e calou-se sobre projectos de nacionalização de aeroportos ou controlo das exportações de gás natural.

   Sobrou a taxação a 40% dos lucros das empresas de mineração para financiar um aumento do salário mínimo e pensões sociais, enquanto o candidato prometia manter o modelo de desenvolvimento económico capitalista assente nas exportações.

   A acentuada desigualdade social do Peru fez a balança pender para Humala que somou apoios nas regiões andinas e da selva do Amazonas, além das classes urbanas de menores rendimentos.

   O rendimento per capita bruto aumentou 82% nos últimos cinco anos para cerca de 5200 dólares, mas perto de 30% da população peruana ainda subsiste na pobreza.

   À maior parte das zonas rurais, onde vive cerca de 20% da população e se concentram os 12 milhões de peruanos em situação de pobreza extrema, de pouco têm valido os proventos das exportações de minérios.

   Degradação ecológica e desperdício por parte das instituições estatais, em particular os governos regionais e locais que recebem 50% dos impostos sobre os lucros da mineração, têm provocado graves confrontos e alienado as populações.

   Humala, segundo de sete filhos de um mestiço quechua de Ayacucho e de uma senhora de Lima de ascendência italiana, acabou por se revelar capaz de mobilizar o voto de quem ainda aguarda pelos despojos da expansão económica.

   A alegada conversão de Humala a uma esquerda moderada à imagem de Lula, mas sem ostracizar os estados da "Alianza Bolivariana" e capaz de dialogar com os presidentes de direita do Chile ou da Colômbia, serviu-lhe, ainda, para captar os votos dos liberais temerosos de um retorno aos abusos da era Fujimori.

   A capacidade camaleónica de se adaptar às cores mais propícias valeu a presidência a Humala, mas daqui para a frente terá de tomar opções que numa sociedade polarizada como a peruana não admitem meias-tintas.




Jornal de Negócios
08 Junho 2011

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Obama Blues

 

   Seja por incúria ou comiseração, Dinesh D'Souza tem recebido pouca atenção num Portugal atormentado pelas negociações de um precário Orçamento de Estado que, ao que tudo indica, nem terá oportunidade de ser rectificado.

   É pena, porque o ideólogo conservador, de origem goesa, presidente do King's College de Nova Iorque, serve como um bom guia quanto às alucinações dos sectores mais extremistas da direita norte-americana.

  Prova D'Souza que a Casa Branca está nas mãos de um presidente que só visa realizar as quimeras de seu pai, identificado como típico apóstolo anticolonista de tribos ingratas - os Luo, neste caso, que juraram pela perdição do Ocidente.

Um anticolonialista sinistro
   As ideias do progenitor queniano, economista lincenciado por Harvard e propenso aos excessos de bebida, poligamia e violência contra as mulheres que passaram pela sua vida até morrer em Nairobi, alcoolizado, naturalmente, num desastre de automóvel em 1982, definem as opções do presidente.

   Barack Hussein, veementemente "antibusiness", é pior do que um socialista ao estilo europeu, apostado no igualitarismo e redistribuição de rendimentos por via governamental, porque herdou a mundividência anticolonialista do pai, no dizer de D'Souza.

   "A América não passa de uma potência apostada no domínio global e na rapina", assim asseverava Obama pai; e o filho, na senda do economista Luo, pretende por isso colocar sob tutela governamental as empresas, taxar justos proventos das classes empreendedoras e, obviamente, ceder às exigências de radicais islamitas.

   D'Souza, cujo opus magnun sobre "The Roots of Obama's Rage" está prestes a esclarecer o vasto mundo acerca das maquinações sinistras de Obama, não é apenas um demagogo.

   Tal como os representantes do Tea Party D'Souza expressa a desorientação que grassa particularmente entre brancos que se identificam com a classe média e vêem postas em causa expectativas de segurança e promoção sociais num mundo em que a posição hegemónica dos Estados Unidos entrou em declínio.

Chá amargo

   O populismo do movimento Tea Party em guerra contra um governo alegadamente ominpotente e omnipresente, apostado na rapina fiscal, e promotor de direitos ilegítimos de grupos raciais abusadores, negros e hispânicos, sobretudo, impôs-se na campanha política e marcou o tom abusivo e radical de muitos ataques aos democratas, que retorquiram da mesma forma.

   A mobilização eleitoral promovida pelo Tea Party contou certamente para a vitória republicana na eleição de terça-feira.

   O futuro do movimento e a putativa candidatura presidencial de Sarah Palin dependerão muito dos resultados que conseguir em alguns estados - nomeadamente a Flórida, Nevada, Colorado, Alasca, Delaware - onde os seus candidatos entraram em competição com republicanos moderados, favorecendo as hipóteses dos democratas.

   Na véspera da votação, as sondagens indicavam que Obama irá perder a maioria na Câmara de Representantes, mantendo, eventualmente, o controlo do Senado.

Gingrich e o compromisso
   A dimensão da derrota, incluindo as legislaturas e governos estaduais, definirá os termos da negociação política e da estratégia de reeleição de Obama.

   A penalização sofrida pelos democratas será possivelmente bem maior do que o tradicional refluxo que afecta o partido governamental nas eleições intercalares, e a que recentemente só escapou George W. Bush, no rescaldo do 11 de Setembro de 2001.

   Uma economia que saiu da recessão com um crescimento rondando os 2%, insuficiente para criar postos de trabalho que absorvam os 9,6% da mão-de-obra desempregada, e a persistente crise do mercado imobiliário condenavam os democratas a um mau resultado.

   Três das prioridades da Casa Branca - reforma de saúde, regulação financeira e estímulos à economia - foram, igualmente, mal recebidas pelo eleitorado.

   Uma reorientação centrista, à imagem da encetada por Bill Clinton para conseguir a reeleição em 1996, poderá não conseguir evitar que Obama tenha de recorrer a sucessivos vetos para bloquear iniciativas legislativas republicanas

  Até ao final do ano, quando expiram os cortes fiscais adoptados por Bush em 2001 e 2003, republicanos e democratas terão de chegar a consenso sobre política fiscal.

   O modo como correrem as negociações definirá o clima político para os próximos dois anos: confronto sistemático entre a Câmara de Representantes e a Casa Branca, na linha adoptada pela liderança republicana de Newt Gingrich em 1994, ou compromissos pragmáticos, designadamente nas áreas de saúde, educação e energia.

   Caso se confirme o pior cenário para os democratas - a perda de oito mandatos no Senado e de mais de 60 lugares na Câmara de Representantes - será grande a tentação entre os republicanos para encurralar Obama no recurso sistemático ao veto.

   D'Souza e Sarah Palin, nesse cenário, marcarão cada vez mais o tom da ofensiva ideológica à direita, por maior que seja o risco de que o seu radicalismo possa vir a revelar-se letal para a candidatura presidencial republicana de 2012.


Jornal de Negócios
03 Novembro 2010

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(Resultados:
Senado - Democratas 51, Republicanos 47, Independentes 2
Câmara de Representantes - Democratas 193, Republicanos 242
Nota de Agosto de 2012)               

Um recomeço modesto em Moscovo




   O compromisso assumido por Barack Obama e Dmitri Medvedev de reduzir em cerca de um terço os arsenais nucleares dos Estados Unidos e da Rússia permite retomar as negociações sobre armamentos estratégicos, mas pouco avança em relação ao acordo estabelecido entre Vladimir Putin e George Bush há sete anos.

   Nessa altura, Moscovo e Washington tinham acordado limitar o número de ogivas a máximos de 2 200 a 1 700 unidades até 2012, (presentemente, os Estados Unidos dispõem de 2 202 ogivas e a Rússia conta com 2 787, segundo a estimativa do Bulletin of Atomic Scientists) e 1 600 meios de transporte (mísseis balísticos intercontinentais em terra, submarinos e bombardeiros).

   Obama e Medvedev firmaram agora um compromisso político para substituir o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START) de 1991, que expira em Dezembro, por um novo acordo, que reduzirá o número de ogivas para patamares entre as 1 500 e as 1 675 unidades e restringirá os meios de transporte entre os 500 e 1 000 num prazo de sete anos após a assinatura do tratado.

                                           Negociação apressada
  
   O acordo deverá incluir processos de verificação e controlo dos arsenais e implica cinco meses de negociações difíceis sobre qual o estatuto de alguns meios de transporte norte-americanos como as frotas de bombardeiros B-1 e os dispositivos de radar e baterias de defesa anti-mísseis na Polónia e na República Checa.

   Se vingar o novo compromisso, Obama poderá tentar convencer o Senado a ratificar o Tratado de Interdição Total de Testes Nucleares de 1996 e encetar conversações com as demais potências nucleares sobre a criação de um banco internacional de fornecimento de combustíveis para indústria nuclear civil, limitando a produção de matérias físseis, no âmbito das negociações do próximo ano para reforço das provisões do Tratado de Não-Proliferação Nuclear de 1968.
  
   O desenvolvimento de programas de defesa anti-balística com componente espacial, uma das principais preocupações de Moscovo e também Pequim, não foi publicamente abordado nas conversações desta semana, mas terá de ser considerado nas negociações que, na óptica de Medvedev, englobam de facto sistemas ofensivos e defensivos.

   A cooperação entre norte-americanos e russos para contenção da Coreia do Norte e do programa militar nuclear do Irão será outro ponto de convergência possível, mas a influência de Moscovo em Teerão é bastante limitada.

   Os sucessivos atrasos na entrada em funcionamento da central nuclear de Bushehr e no fornecimento de mísseis anti-aéreos S 300 a Teerão demonstram as reticências da Rússia, mas estão longe de implicar a adesão russa às sanções punitivas consideradas por Washington.

   O reconhecimento das divergências quanto à adiada adesão da Geórgia e da Ucrânia à NATO, das propostas russas para criação de novos mecanismos de segurança europeus e acerca dos projectos de construção de gasodutos do Cáspio para fornecimentos à Europa confirma que Washington admite a impossibilidade prática de se opor efectivamente às pretensões russas de criar uma esfera de influência privilegiada no Cáucaso e na Ásia Central.

                                     Parceria limitada


  O reconhecimento do estatuto de grande potência é quanto basta a Moscovo nesta fase e as facilidades concedidas aos Estados Unidos para o esforço de guerra no Afeganistão representam uma concessão praticamente sem custos, mas a limitação da cooperação com Washington a questões de segurança é um indício da fragilidade das relações entre os dois países.

   O investimento norte-americano na Rússia não ultrapassa os 3,4% do investimento directo estrangeiro e as trocas comerciais quedam-se pelos 36,1 mil milhões de dólares, o equivalente ao comércio entre os Estados Unidos e a Polónia.

   Em Moscovo Obama e Medvedev deram os primeiros passos para desbloquear um impasse numa negociação estratégica para reduzir arsenais nucleares e que poderá, inclusivamente, contribuir para reduzir riscos de proliferação, mas a cooperação entre a Rússia e os Estados Unidos mantém-se, de facto, confinada a questões de segurança.

Jornal de Negócios
08 Julho 2009

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O que a Europa já perdeu

  

   Uma crescente integração político-institucional na peugada do incremento gradual e harmonioso da cooperação económica e financeira, num contexto de expansão económica sustentada, é o pressuposto perdido das estratégias das elites políticas dominantes na União Europeia.

   A bicicleta que ou avançava sem parar ou caia, na imagem celebrizada por Jacques Delors, nunca cativou os políticos britânicos mas, entre os principais estados, alentou socialistas, social-democratas e conservadores franceses e alemães a definirem o chamado "projecto europeu" como o quadro ideal para dirimirem disputas e conciliarem interesses divergentes.

  A crença num progresso pacífico e mutuamente proveitoso sobreviveu às agruras do primeiro choque petrolífero dos anos 70 que pôs fim ao boom do pós-guerra, ultrapassou as dificuldades de integração de comunidades emigrantes do sul da Europa e das antigas possessões coloniais, concretizou-se a 12 estados no "Acto Único Europeu", em vigor desde 1987, e ganhou novo fôlego com a dissolução do bloco soviético.

  O compromisso de Maastricht, em 1992, condicionou ambições federalistas ao escrutínio dos governos nacionais e no âmbito de um mercado único de capitais, bens, serviços e pessoas, enquadrou a moeda única em termos aceitáveis para Berlim, ainda que desde a introdução do euro cedo fossem violados os limites de dívida e défice orçamental.

Choque e estupefacção

   Em países com menor capacidade concorrencial, caso de Portugal ou Grécia, a moeda única propiciou condições favoráveis ao endividamento público e privado sem contrapartida em aumentos de produtividade ou criação de núcleos empresariais competitivos nos sectores primários, secundários ou terciários, enquanto permitia à maior economia da eurozona, a Alemanha, consolidar quotas de exportação de bens e capitais.

   Na sequência do tumulto financeiro de 2007-2008 a insustentabilidade de uma união monetária sem coordenação de políticas orçamentais e fiscais (caso do IRC de 12,5% da Irlanda contestado por Paris) ficou às claras à medida que uma crise de dívida soberana e de balança de pagamentos começou por assolar Atenas e rapidamente alastrou por toda a zona euro.

   O défice democrático da União Europeia revelou-se de imediato um óbice de maior a par da ortodoxia do Banco Central Europeu em privilegiar o controlo da inflação em detrimento de acções para conter, por exemplo, carências de liquidez de certos países que arriscam converter-se em crises de solvência.

   Todas as soluções aventadas por via intergovernamental ou através da Comissão Europeia começaram por tender a ignorar os parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu, mas bastaram as regras de unanimidade para bloquear ou atrasar planos de resgate e de criação de fundos de financiamento de emergência.

O europeísmo esclarecido

   Os vanguardismos federalistas tiveram um dos seus momentos mais altos nas propostas elaboradas entre 2002 e 2003 pela "Convenção Europeia", presidida por Valéry Giscard d´Estaing, mas apesar do seu fracasso o "europeísmo esclarecido", o avatar tecnocrático de salão de "despotismos esclarecidos" doutros séculos, ainda viceja.

   Partilhas e cedências de soberania em matéria de políticas financeiras, económicas, orçamentais e fiscais a favor de entidades supranacionais, aparentam no calor do momento reunir consenso em torno de um núcleo duro sob tutela da actual coligação liberal-conservadora berlinense.

  Todos esses projectos salvíficos acabarão por esbarrar contra sólidas objecções constitucionais e irão chocar com a mais do que provável contestação dos eleitores-contribuintes em grande número de países, incluindo a Alemanha.

  A disfuncionalidade das hierarquias decisórias consagradas em 2007 no Tratado de Lisboa foi, entretanto, acentuando-se nos últimos dois anos com a instituição de sucessivos comités e comissões "ad hoc", enquanto Berlim negociava de facto com Paris as decisões políticas de fundo.

   Os 17 da eurozona tomaram decisões tarde e a más horas à revelia da União a 27 e nada disso passou despercebido no vasto mundo que fez do euro a segunda moeda de referência a seguir ao dólar.

Sem credibilidade, nem norte

   Opções de consequências mal medidas, como a aventada discriminação de investidores privados na reestruturação parcial da dívida grega, abalaram, por sua vez, o mercado da dívida pública denominada em euros e, consequentemente, num contexto mais vasto, as entidades reguladoras vêem-se obrigadas a rever a ponderação que devem merecer títulos de dívida soberana nas regras de gestão de risco bancário.

   Decaiu desta forma ainda mais a reputação de uma Europa com maiúscula e a uma só voz que raramente fora actor crível na cena internacional.

   O músculo político que a União reivindicava por via das suas contribuições financeiras ou peso como parceiro comercial e fonte de investimento rapidamente minguava por via das divisões internas e a irrelevância dos 27 no Médio Oriente e no Mediterrâneo notabilizou-se como exemplo notoriamente confrangedor.

   Os interesses particulares de cada estado foram e são uma constante e, salvo algumas excepções de relevo em negociações comerciais ou em conferências sobre alterações climáticas, todos os potenciais parceiros e adversários, a começar pela China, jogam preferencialmente em acertos bilaterais para aproveitar as divergências entre os 27.

Portento de instabilidade

  Por ocasião de grandes crises a União Europeia fracassou por via de regra.

   A União Europeia dividiu-se por altura do conflito, em 2002, entre Madrid e Rabat por causa da ilhota de Perejil, não apresentou posição unificada face à invasão do Iraque em 2003, tomou rumos divergentes frente a Moscovo na gestão das importações de gás natural, tergiversou na estratégia de alargamento ante a Turquia.

  Na frente militar a NATO é notoriamente a aliança que conta no cenário europeu.

   Em 2010 a assinatura dos tratados de defesa e cooperação na área de segurança de 2010 entre Londres e Paris, partilhando inclusivamente áreas de pesquisa e monitorização de arsenais nucleares, deixou de lado veleidades de coordenação militar independente à escala Continental a partir de um putativo núcleo dinamizador da União Europeia.

  A União Europeia não existe como entidade com relevância política porque as compreensíveis divisões de interesses entre os estados membros impedem a adopção de um estratégia comum e a mobilização de recursos sob a orientação de uma autoridade legitimada.

  Um bloco de livre circulação de bens, capitais, serviços e pessoas, partilhando determinadas políticas sectoriais de repartição de recursos, certos mecanismos decisórios e instituições judiciais, consagrando direitos fundamentais, não é uma potência política.

  A crise do euro transformou a União Europeia num portento de instabilidade e retirou qualquer credibilidade às suas ambições como potência política.


Jornal de Negócios
07 Dezembro 2008

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Outro Agosto no Cáucaso

 

  Um ano volvido Mikhail Saakashvili subsiste como presidente desacreditado da Geórgia, a Ossétia do Sul e a Abkázia estão sob tutela de Moscovo, enquanto a União Europeia e a NATO se conformaram à imposição pela força da doutrina dos interesses privilegiados da Rússia no Cáucaso.

  Da guerra de Agosto sobrou o putativo estado independente da Ossétia do Sul, de facto cada vez mais dependente da república da Ossétia do Norte e a caminho da integração na Federação Russa, e uma Abkázia dita soberana que oferece a sua costa do Mar Negro a Moscovo a troco da segurança contra o revanchismo georgiano.

   Os nacionalistas de Tbilissi tinham falhado nas guerras que se arrastaram entre 1989 e 1992 a imposição do domínio georgiano em grande parte das duas regiões, mas foi o aventureirismo de Saakashvili a consumar a sua perda irremediável.

Um imperativo estratégico
   Ao atacar a Ossétia do Sul, conforme insinuara desde a sua eleição em 2004, Saakashvili perdeu-se num crescendo de provocações de parte a parte e forneceu o pretexto com que Moscovo contava para uma intervenção militar.

   Vladimir Putin e Dmitri Medvedev tiveram a sua oportunidade para refazer a contento de Moscovo as fronteiras do Cáucaso Meridional e marcar o momento em que inverteram a tendência de refluxo estratégico da Rússia.

   A Rússia reforçou ainda subsidiariamente a pressão sobre o reticente  Arzebeijão em conflito com uma Arménia pró-russa, mas tentando normalizar relações com a Turquia, por causa do estatuto do enclave de Nagorno Karabach (situado em território azeri e controlado pelos arménios desde 1994).

   A entrada formal na esfera de influência russa da Ossétia do Sul - separada de facto desde 1992 de Tbilissi - e da Abkázia, que com os seus 250 mil habitantes seguira o mesmo caminho em 1993, pôs termo a qualquer veleidade de integração da Geórgia na NATO.

  Para a Geórgia sobrou um litígio de fronteiras que perdurará por longo tempo, a reclamação de indemnizações ou direito de retorno para 250 mil georgianos desalojados das duas regiões nas guerras do início dos anos 90 e a sorte ingrata de mais de 20 mil portadores de passaportes de Tbilissi perdidos entre 55 mil ossetas.

  Nenhum compromisso será viável a curto prazo e a memória dos irredentismos nacionais e étnicos perdurará por décadas como já ficara patente noutro exemplo do início dos anos 90, quando Tbilissi recusou o retorno dos sobreviventes e descendentes dos 120 mil turcos georgianos da região da Meskhetia deportados por Stalin para a Ásia Central em 1944.

  Mais a norte, Razam Kadirov está longe de tornar respeitável a Tchetchénia, nas vizinhas repúblicas da Ingushétia e do Daguestão organizações radicais islamitas num cenário de corrupção e violência ameaçam o flanco sul da Rússia, mas a soberania de Moscovo não sofre contestação internacional.

  A sumária guerra de Agosto deixou, ainda, um aviso para a Moldova em "conflito congelado" com os separatistas russos da Transdnistria, além de uma séria advertência para Kiev sob a eventual ameaça de contestação ou secessão por parte da maioria russófona das regiões orientais da Ucrânia e na península da Crimeia partilhada por ucranianos, russos e tártaros.

Dos gasodutos às esferas de influência



   Dos idos de Agosto o pretexto dos passaportes russos concedidos a ossetas serviu para reiterar, também, a declaração por Moscovo do direito de intervenção em defesa dos 25 milhões de russos residentes nos estados que se tornaram independentes após a desagregação da União Soviética.

  No Báltico, estónios, letões e lituanos, integrados na NATO e na União Europeia, podem tomar as declarações do Kremlin como bravata e meio de pressão, mas da Ucrânia ao Cazaquistão tornou-se mais presente o risco de possíveis conflitos por via do estatuto das minorias russas.

   Na União Europeia, na Turquia, no Irão e nos Estados Unidos, a guerra de Agosto foi sobretudo encarada sob o prisma dos gasodutos.
 
   Moscovo ganhou mais trunfos para a concretização do "South Stream" no Mar Negro à custa do "Nabuco", via Arzebeijão, Geórgia e Turquia, cujo consórcio formalizado em Julho está longe de ter garantidos abastecimentos do Iraque e do Mar Cáspio.

   As rotas dos gasodutos no Cáucaso e no Mar Negro foram efectivamente um dos factores essenciais na guerra de Agosto e a persistente dependência russa das exportações de hidrocarbonetos (tendo por reverso, a falta de alternativas imediatas da União Europeia que recebe da Rússia 40 % do gás natural que consome) é sinal da fragilidade estrutural das pretensões do Kremlin.

   Com uma economia pouco diversificada, assente nos hidrocarbonetos, e uma demografia em curva descendente acelerada, maior é, no entanto, a necessidade para o Kremlin de fazer valer a sua doutrina de interesses privilegiados.

   Impor o reconhecimento de áreas de influência privilegiada e conter a expansão da NATO que, na sequência da unificação alemã de 1990, já conseguira absorver em 2004 os três estados bálticos anexados pela União Soviética após o pacto Stalin-Hitler de 1939 além de países membros do antigo Pacto de Varsóvia, eram os objectivos essenciais do Kremlin quando ripostou à aguardada investida militar de Saakashvili.

   A intervenção russa na Ossétia do Sul contra a Geórgia foi, igualmente, justificada pelo imperativo de responder à declaração de independência do Kosovo em Fevereiro de 2008 que tinha levado o então presidente Putin a exigir "princípios únicos e universais" na resolução de conflitos étnico-nacionais.  

  Em Agosto de 2008 Moscovo cumpriu ameaças por muito tempo ignoradas.

  O Kremlin pôs a claro os limites da capacidade do bloco ocidental em defesa de potenciais aliados no Cáucaso e pôs em xeque uma Ucrânia dividida face a uma eventual adesão à NATO.

   A primeira guerra do presidente Medvedev foi a melhor guerra de sempre de Vladimir Putin.

   Todos, da China aos Estados Unidos, tomaram nota; muitos, da Ásia Central ao Mar Negro, refizeram cálculos sobre as relações de força.

  A Rússia ganhou uma guerra para se dar ao respeito, mas não fez sequer nem mais um amigo.

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Uma questão de esferas de influência

 
  Primeiro, foi o chefe do Pentágono, Robert Gates, a dizer à Comissão das Forças Armadas da Câmara dos Representantes, que os perigos se acumulam pois não há ideia do que poderá ocorrer "na Rússia e China, na Coreia do Norte, no Irão e noutros países".
   Logo a seguir, quando há uma semana a imprensa de Moscovo denunciava as declarações alegadamente provocatórias do secretário da Defesa de Washington, veio o general Yuri Baluievski, chefe do estado-maior das forças armadas russas, afirmar que Moscovo enfrenta ameaças mais graves do que os perigos da Guerra Fria. A cooperação com o Ocidente não reforçou a segurança militar da Rússia, sintetizou Baluievski.

   Vladimir Putin, por sua vez, chegou a Munique e proclamou que o uso e abuso da força militar pelos Estados Unidos faz perigar a segurança mundial e que a expansão da NATO até às fronteiras da Rússia contribui em larga medida para "a diminuição da confiança mútua".

   Gates depreciou as considerações de Putin e replicou que já bastara uma Guerra Fria e, então, muito diplomaticamente, foi a vez do ministro da Defesa russo, Serguei Ivanov, retorquir que "de um ponto de vista puramente militar a Rússia há muito renunciou ao estatuto de superpotência".

   Ivanov frisou, ainda, que o orçamento militar de Moscovo representa apenas quatro por cento dos gastos dos Estados Unidos que, fez notar, duplicam os dispêndios do auge da Guerra Fria.

                                Uma potência ameaçada

   Acumulam-se queixas, culpas e desculpas, mas é evidente para quem acompanha os debates em Moscovo que o diagnóstico das chefias militares russas é bastante claro: a maior ameaça à segurança e soberania do país advém da crescente influência dos Estados Unidos nas antigas áreas de controlo soviético e da expansão da NATO.

   O general Baluievski tem vindo, ainda, a sublinhar em diversas ocasiões que, mais do que riscos terroristas e separatistas, a "propaganda hostil" (as intromissões da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa no antigo espaço político soviético, por exemplo, nas objecções de Putin) é uma das ameaças mais significativas à segurança e soberania da Rússia.

   Retórica excluída cumpre dizer que os recentes aumentos de despesas militares ma Rússia (rondando os 180 mil milhões de euros nos próximos 8 anos) visam recuperar certa capacidade de projecção militar no exterior, mas concentram-se, essencialmente, na capacidade de dissuasão estratégica nuclear.
  
  Resmas de papel sobre os planos de construção de um novo porta-aviões, a agregar ao único em serviço face a doze unidades norte-americanas, ou acerca do moroso reforço de efectivos profissionais no corpo de 1,1 milhões de homens das forças armadas, para não falar da reconversão do sistema de satélites militares, não escondem a impossibilidade assumida pelo estado-maior russo de competir em paridade com o potencial dos Estados Unidos.
 
   Por maioria de razão todos os estrategos russos continuam a assumir como fiável a lógica MAD (da celebrada capacidade de destruição mútua assegurada) num contexto bipolar Moscovo-Washington, mas não escondem também o seu nervosismo quanto à proliferação de focos independentes de projecção militar nuclear.

                                 Quem pode impor o quê a quem?

   Putin acusa os Estados Unidos de desrespeito pelos acordos de 1999 de limitação de forças convencionais na Europa, invocando, além disso, os projectos de recolocação de radares e defesas anti-mísseis na Polónia e República Checa, além das Ilhas Aleutas, no extremo norte do Pacífico.

   Quando Putin se insurge contra a recusa de negociações por parte de Washington sobre a militarização do espaço, temos o caso do líder que afirma não recuar, nem ceder, mas que tão pouco tem capacidade própria para se assumir como foco de resistência ou pólo de novas alianças porque o sustentáculo económico de toda a estratégia está dependente das exportações de hidrocarbonetos que financiam cerca de 30 por cento do orçamento do estado.
  
   A exasperação do Kremlin tem vindo a aumentar pois apesar de na cimeira de Julho, em São Petersburgo, do G8 ter ficado assente a próxima adesão da Rússia à Organização Mundial do Comércio, Washington continua a referir a necessidade do Congresso proceder à anulação da emenda Jackson-Vanik, que desde 1974 limita as relações comerciais com Moscovo, para protelar a entrada russa.

   O crescimento propiciado pelas receitas das exportações de hidrocarbonetos não tem sido acompanhado de diversificação económica e aumentos de produtividade significativos e o PIB da Rússia ainda não atingiu os níveis do final do período soviético, enquanto o irreversível declínio demográfico acelera num contexto de crescentes disparidades sociais.

    O tempo escasseia, portanto, para Moscovo concretizar a ambição estratégica de tutelar a sua zona de influência continental que continua, por sua vez, a ser posta em causa pelos planos de expansão da NATO e o apoio político concedido por Washington e as principais potências europeias a moldovos, ucranianos e georgianos nos seus conflitos territoriais e de soberania com a Rússia.

  A constatação de que a cooperação com o Ocidente tem limites e que o estatuto de potência continental da Rússia não é de facto reconhecido por Washington explicam a crueza das declarações de Putin em Munique.

   Na versão desapiedada de Lenine a política resumia-se ao Kto Kovo: Quem pode impor o quê a quem.

   Na exasperação de Putin não sobressai o retorno à política de confronto da Guerra Fria, antes a constatação de que a Rússia não se consegue impor e ser respeitada como parceiro estratégico com direitos incontornáveis sobre a perdida esfera de influência soviética.

   O estrangeiro próximo, como os russos denominam os estados que assumiram a independência depois do colapso da União Soviética, está cada vez mais distante e a perda de influência estratégica da Rússia é um risco cada vez mais presente.

Jornal de Negócios
14 Fevereiro 2007

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A guerra não é a guerra



  
   Os israelitas, alarmados ante a ameaça de fornecimento de sistemas anti-mísseis russos ao Irão e à Síria, foram os primeiros a entender os sinais e, sem grandes alardes, o ministério da Defesa de Telavive interditou a venda de armamento ofensivo à Geórgia para não comprometer as relações com a Rússia.

   O aviso de Moscovo fora dado a 20 de Abril quando um caça russo abateu na Abkázia um avião de reconhecimento georgiano não-tripulado, de fabrico israelita, e Telavive, fiel ao princípio de que para bom entendedor meia palavra basta, decidiu imediatamente suspender as vendas de material aeronáutico a Tbilissi.

Moscovo negou responsabilidade pelo incidente, ocorrido duas semanas após alemães e franceses se terem oposto na cimeira da NATO em Bucareste à proposta de Washington para iniciar o processo formal de adesão da Geórgia e da Ucrânia, mas os israelitas compreenderam que os contratos militares com Tbilissi não justificavam arriscar a hostilidade da Rússia.

Esferas de influência

As divisões na NATO quanto à eventual integração da Geórgia, a advertência de Moscovo de que a declaração unilateral de independência do Kosovo e o projecto norte-americano de defesa anti-mísseis na República Checa e na Polónia teriam consequências globais justificavam as cautelas de Telavive ante a iminência de um acto de força por parte da Rússia contra o aliado mais exposto de Washington.

Após meses de atentados e confrontos, envolvendo russos, georgianos, separatistas ossetas e abkazes, falhada uma proposta alemã para relançamento das negociações sobre o estatuto da Abkázia, o presidente georgiano aventurou-se numa acção militar para capturar a Ossétia do Sul.

A retaliação do Kremlin em larga escala era inevitável, quanto mais não fosse para evitar o agravamento das instáveis situações nas repúblicas russas do Daguestão, Ingushétia e Tchetchénia, e justificava-se para impor a ordem moscovita no Cáucaso, evitando, por extensão, um reacender do conflito entre a Arménia e o Azerbeijão que pusesse em causa os interesses da Rússia.

Vladimir Putin, cujas declarações taxativas são habitualmente subestimadas, acusou a Geórgia de genocídio, assumiu as consequências inevitáveis do conflito e impôs a lei da força.

Na União Europeia manifestaram-se as divisões tradicionais face à Rússia, mas também ninguém se atreveu a dizer publicamente que as intervenções televisivas do presidente da Geórgia apelando à ajuda ocidental flanqueado com a bandeira comunitária entravam na área do desaforo.

Em Washington ponderaram-se os riscos de sustentar um aliado que ignora as relações de força no Cáucaso e os interesses globais dos Estados Unidos.

Um perdedor na Geórgia

Mikhail Saakashvili, segundo Putin, desencadeou "uma aventura sangrenta", visando implicar outros países e, sobretudo a NATO, num acto de agressão que, afinal, resultaria fatalmente num "golpe mortal na integridade territorial da própria Geórgia".

Putin falou, deixando o presidente Dmitri Medvedev claramente em segundo plano, e os objectivos estratégicos de Moscovo ficaram claros.

A assunção plena da tutela sobre entidades separatistas na Ossétia do Sul e na Abkázia, além do enclave da Transdnistria na Moldova, visa obrigar a renegociar qualquer acordo de redefinição de fronteiras na Europa, incluindo o Kosovo, em termos de esferas de influência.

O alargamento da NATO à Geórgia e à Ucrânia é inegociável e as controvérsias com a Ucrânia sobre o arrendamento (acordado até 2017) da base naval de Sevastopol e, inclusivamente, o estatuto da península da Crimeia, maioritariamente russa, estão de novo em aberto.

O retorno em força da Rússia numa acção militar, tão fulgurante quanto o recurso recorrente às chantagens sobre fornecimentos de hidrocarbonetos, tem sobretudo a ver com a redefinição de áreas de influência.

A contenção das aspirações anti-russas, criadas pelas revoluções ucranianas e georgianas, levam, presentemente, à tentativa de conter a integração de estados fora do controlo de Moscovo numa esfera pró-Nato, e, cumulativamente, implicam a criação de dificuldades à estruturação de linhas de abastecimento de hidrocarbonetos alternativas às detidas por empresas russas.

Para a Rússia, além do interesse em desqualificar o projecto Nabuco, sustentado pela produção do Mar Cáspio e que atravessará a Geórgia rumo à Turquia, será ainda mais importante tentar controlar os fornecimentos de hidrocarbonetos que irão abastecer a China a partir da Ásia Central, mas nesta questão Moscovo dificilmente conseguirá impor a sua vontade.

Pior que um tártaro

Criar condições para derrubar Saakashvili e reverter a orientação pró-ocidental da Geórgia é apenas um dos desideratos de Moscovo que considera as antigas repúblicas soviéticas agregadas na Comunidade de Estados Independentes como estados-clientes.

Dar-se ao respeito perdido nos anos de Gorbatchov e Ielstin é o intento essencial de Moscovo e, enquanto isso não entrar na lógica estratégica de americanos e europeus, já bem apreendida por chineses e indianos, teremos conflitos sempre aquém da guerra e muito perto do risco de grande guerra.

Para os europeus, divididos entre o irredentismo anti-russo dos estados bálticos, dos checos e da Polónia e a contenção de franceses, alemães ou italianos, a margem de manobra é escassa. Os abastecimentos russos que representam 40% do gás natural consumido na União são impossíveis de substituir e, assim, os apelos ao respeito pela integridade territorial da Geórgia não passam de uma quimera.

Para qualquer administração de Washington enquadrar questões mais imediatas de Teerão a Pyongyang será sempre mais valioso do que trunfos no Cáucaso, mas a acomodação dos interesses de Moscovo revela-se cada vez mais problemática.

Face à potência russa tudo o resto está em aberto porque é uma questão de relações de força e Moscovo encara intrusões na sua alegada área de influência como afrontas estratégicas.

Há um provérbio russo que diz: "Pior que um tártaro só um hóspede não convidado". Vem dos tempos em que a Rússia esteve sob domínio mongol do século XIII ao século XV.

Todos são tártaros invasores, hóspedes não convidados na grande casa da Rússia e das suas comunidades espalhadas pelo chamado "estrangeiro próximo"; ninguém mostra respeito suficiente pelos vastos e justos interesses de Moscovo. É esta obsessão que sustenta a lógica estratégica no Kremlin.




Jornal de Negócios
13 Agosto 2008

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É Putin e acabou-se!




   A modernização da economia e a emancipação da sociedade russa obrigam ao desmantelamento do sistema autocrático do putinismo.

   Para obstar aos indícios mais penosos de erosão política que as eleições legislativas de Dezembro deixaram a claro Vladimir Putin lançou mão de programas e promessas que obrigam a um incremento das despesas do estado dificilmente sustentável.

Aumentos do funcionalismo público e de subsídios sociais, manutenção das idades de reforma nos 60 anos para homens e 55 para mulheres, implicam um reforço anual do orçamento equivalente, segundo estimativa oficial, a 2% do PIB, montante que poderá chegar a 3% no final do mandato presidencial em 2018.

O reequipamento das forças armadas representa custos adicionais da mesma ordem de grandeza e um orçamento equilibrado (défice de 1% do PIB é previsão para 2012 depois de 2011 terminar com superavit de 0,8%) precisa de petróleo a 117 dólares o barril.

A despesa pública representa 39,1% do PIB e tenderá a aumentar, mas as condições económico-financeiras do putinismo deixam a desejar.

Não há Rússia sem senão
A dívida pública equivale a 11% do PIB, a balança de pagamentos apresenta excedente de 101 mil milhões de dólares, os fundos soberanos contam com 150 mil milhões de dólares, 2011 acabou com a mais baixa taxa de inflação do pós-comunismo (6,1%) e em Janeiro deste ano o desemprego cifrava-se em 6,6%.

Depois da bancarrota de 1998 a economia cresceu a uma média anual de 7% para se afundar 7,8% na sequência da crise financeira de 2008.

Desde 2009 o ritmo de crescimento abrandou e as estimativas oficiais apontam para médias futuras na ordem dos 4%, idênticas às registadas em 2010 e 2011.

O excedente da balança comercial (20,5 mil milhões de dólares em 2011) deriva das exportações de petróleo, gás natural e metais, como níquel ou paládio, que correspondem a mais de 80% das vendas.

A União Europeia absorve cerca de metade das exportações e os hidrocarbonetos (2/3 do total das vendas) equivalem a perto de 1/5 do PIB e 44% das receitas do estado, sendo inviável uma rápida reestruturação destes padrões.

O PNB per capita, ajustado por Paridade de Poder de Compra, atingiu, de acordo com o "Banco Mundial", 19 190 dólares no final de 2010, mas este estatuto de país de rendimento médio elevado é contrabalançado por acentuadas assimetrias regionais e padrões de distribuição de riqueza muito desiguais que colocam a Rússia a par da Venezuela.

À dependência do petróleo e a baixos índices de produtividade laboral (44% dos registados na Alemanha) junta-se a contracção demográfica que levará, segundo previsões oficiais, a que a população entre os 15 e os 65 anos venha a cair de

102,2 milhões em 2010 para 91,1 milhões em 2030, considerando um acréscimo via imigração de 4,5 milhões de habitantes.

A política comanda a economia
A Rússia apresenta óbices e barreiras anormalmente elevados em matéria de investimento, comércio e criação de empresas.

O peso do estado sobressai ainda no escasso número de pessoas activas a título individual ou em empresas com menos de 100 efectivos: 21% da mão-de-obra.

A persistente saída de capitais (84,2 mil milhões de dólares em 2011) redunda, por sua vez, numa fraca taxa de investimento interno privado.

As estruturas empresariais e as práticas predatórias administrativas - saídas dos confrontos entre grupos de interesses criados nas privatizações da era Ieltsin e agentes do processo de reafirmação da predominância do estado liderada por Putin - redundaram num sistema em que garantias legais pouco contam.

Uma corrupção ao nível da Nigéria, na referência da "Transparency International", torna a Rússia pouco propícia ao investimento e inovação empresariais e o contributo que a adesão à "Organização Mundial de Comércio" traga para uma melhoria das condições de concorrência não alterará o essencial.

O nó da questão
Um dos slogans mais contundentes da campanha do Kremlin asseverava: "Vota Putin e acabou-se".

O putinismo - sujeito à legitimação eleitoral e aos riscos da contestação das classes médias emergentes das grandes cidades - é, essencialmente, um sistema em que o poder, num regime presidencialista e centralista, se arroga a prerrogativa de controlar todas as alavancas da administração, os sectores essenciais da economia e justiça.

A modernização da economia e a emancipação da sociedade russa obrigam ao desmantelamento do sistema autocrático do putinismo.



Jornal de Negócios
07 Março, 2012

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A ordem normal da política russa



  Quando Putin anunciou, em Setembro, o seu retorno à presidência a nudez forte da verdade do regime autocrático rasgou o manto diáfano das fantasias modernizadoras e liberais insinuadas pelo seu mandatário Dmitri Medvedev e a Rússia agitou-se.

O desalento ante as sempre adiadas reformas da justiça, a omnipotência da Administração Central e a sua insistência em controlar sectores chave de uma economia incapaz de superar a dependência dos hidrocarbonetos, além das crescentes disparidades de rendimentos, não era ignorado pelo Kremlin.

As sondagens - em particular da instituição mais prestigiada, o "Centro-Levada" - indicavam que a votação na "Rússia Unida", o partido da administração, iria diminuir nas eleições legislativas de 4 de Dezembro.

As avaliações positivas da actuação do presidente e do primeiro-ministro já tinham caído abaixo dos 50% desde o início de 2011.

A eleição para a Duma confirmou o que sondagens e eventos públicos de escárnio e desafecto ao poder, e a Vladimir Putin muito em especial, vinham indiciando.

Bandidos, ladrões e mágicos

O parlamento mantém um cunho vincadamente iliberal, segundo os próprios padrões políticos russos, e continua a contar com apenas quatro partidos capazes de superarem a barreira dos 7% dos sufrágios.

A "Rússia Unida" perdeu a maioria para impor alterações constitucionais quedando-se pelos 49%.

A quebra de 15% da entidade partidária governamental levou os comunistas a subirem a sua votação para 19%, enquanto os chauvinistas nacionalistas do "Partido-Liberal Democrático" obtinham 12%.

A "Rússia Justa - criada em 2006 sob patrocínio do Kremlin – acentuou uma alegada linha social-democrata em confronto com o primeiro-ministro Putin, mas apoiando Medvedev, e teve como paga 13% dos sufrágios.

A eleição foi marcada por notórias irregularidades com recurso a métodos tradicionais, designadamente os consagrados "carrossel" (depósito de boletins pré-preenchidos) e "helicóptero" (voto repetido em diversas assembleias), além da clássica viciação da contagem de boletins.

Os resultados no norte do Cáucaso e em muitas circunscrições de Moscovo foram ostensivamente deturpados a favor de "Rússia Unida" por vezes com margens superiores a 20% dos sufrágios.

A nível nacional, no entanto, considerando anteriores eleições, além da diferença entre as previsões das empresas de sondagens e os inquéritos pós-votação à boca das urnas, parece crível que a viciação de resultados em prol do partido governamental tenha rondado entre os 5% a 10%.

É a ordem normal da política russa pós-perestroika e estamos muito longe da fraude generalizada e maciça a que se viu obrigado a recorrer o poder em 2006 para garantir a vitória de Boris Ieltsin na segunda volta das presidenciais contra o comunista Gennadi Ziuganov.

Sem ironia, dois dias depois da votação, o presidente da Comissão Eleitoral, Vladimir Churov, gabou-se publicamente a Medvedev de ter previsto os resultados com maior precisão do que as empresas de sondagens.

Numa tirada na tradição do melhor humor russo-soviético, o presidente retorquiu considerando que Churov fazia justiça à alcunha de "o mágico" com que fora crismado nos círculos do poder.

Um protesto minoritário

Entretanto, multiplicavam-se apelos, sobretudo via internet, para manifestações de protesto contra a "fraude eleitoral", exigindo a anulação dos resultados e nova votação.

Pela primeira vez, desde o final dos anos 90, Moscovo assistiu no passado sábado a uma mobilização significativa de contestatários, enquanto as direcções dos partidos não-governamentais que obtiveram representação parlamentar aceitavam os resultados.

Entre 25 mil a 100 mil pessoas, segundo estimativas das autoridades versus oposicionistas, clamaram contra Putin na capital sem que se tenham registado incidentes ou detenções.

Em cerca de outras 60 cidades ocorreram manifestações muito menos relevantes -- em Sankt Petersburg, por exemplo, pouco mais de 7 mil pessoas participaram nos protestos – e o número de detenções quedou-se por uma centena.

A significativa participação de jovens adultos da classe média foi a grande novidade destas manifestações o que pode ser entendido como protesto contra o uso e abuso da propaganda e manipulação administrativa e judicial por parte do poder.

O sucesso de Aleksei Navalni, um advogado libertário e nacionalista-chauvinista, ao taxar o partido de Putin como "partido de bandidos e ladrões" é um caso exemplar da influência do activismo de protesto na internet.

O controlo pelo Kremlin e seus associados políticos e empresariais dos principais meios de comunicação social, sobretudo a televisão e a rádio, é insuficiente para sufocar expressões de protesto antigovernamental num país de 143 milhões de habitantes que conta com 60 milhões de usuários da internet.

A minoria urbana de classe média desafecta ao poder pouco tem em comum com os trabalhadores de baixos rendimentos e pensionistas, uma das principais camadas de apoio a comunistas e nacionalistas alinhada com o heteróclito arco de tendências autoritárias predominantes na Rússia.

Não há folga para ambições liberais e quem confundir protestos pontuais e uma inquietação revoltosa com alternativas políticas anti-autoritárias muito terá de penar.

Ameaça de estagnação

O sistema autocrático de patrocínio político centrado em Putin não atrai jovens contestatários anarquistas ou liberais numa conjuntura em que se esbateu a memória das convulsões da "perestroika" de Gorbatchov e da tumultosa transição dos anos Ieltsin.

O efeito sedutor da normalização imposta nos anos da presidência Putin, entre 2000 e 2008, quando o crescimento económico rondou os 7% anuais e a Rússia reassumiu importância internacional, esvaneceu-se e deu lugar a constatações mais sóbrias numa altura em que o regime não oferece válvulas de escape à dissidência política e às reivindicações sociais.

Nos círculos empresariais, sempre dependentes do poder político-administrativo e enleados na corrupção institucional, admite-se o impasse a que chegou o sistema económico e a expatriação de capitais está de novo em alta prevendo-se que atinja os 70 mil milhões de dólares no final deste ano.

As previsões de crescimento para 2012 centram-se nos 4% e dificilmente a Rússia superará essas taxas sem concretizar a diversificação e modernização da sua economia.

Gás e petróleo representam 17% do PIB e 44% das receitas do estado e preços do crude abaixo de 110 dólares por barril ameaçam instabilidade imediata numa fase em que o incremento da produção implica avultados investimentos estrangeiros.

A vitória anunciada

Nas eleições presidenciais de Março Putin irá confrontar-se com o líder comunista Ziuganov, segundo candidato mais votado em 1996 contra Ieltsin, de novo vencido em 2000 por Putin, e derrotado em 2008 por Medvedev.

O social-democrata Sergei Mironov, apoiante do defunto modernismo liberal de Medvedev e opositor de Putin, afirmou, também, pretender candidatar-se.

Enquanto não surgem outros candidatos, o multimilionário Mikhail Prorokhov manifestou igualmente a sua ambição presidencial.

Em Junho Prorokhov assumiu a chefia de um partido de direita promovido pelo Kremlin, "Causa Justa", mas em Setembro desentendeu-se com os seus patronos durante o processo de escolha de candidatos às eleições legislativas.

"Causa Justa" revelou-se um fracasso, obtendo pouco mais de 390 mil votos (0,60% dos sufrágios), mas Prokhorov, com apoio de Alexei Kudrin (fiel putinista que se demitiu de ministro das finanças em Setembro por desentendimento com Medvedev), fala agora em dinamizar um partido de centro-direita.

A candidatura do excêntrico oligarca, com fortuna feita no sector dos metais preciosos, surge à medida da estratégia de Putin para enquadrar opositores de centro-direita com eventual propensão liberal.

Se, contudo, Prokhorov enveredar por uma oposição declarada ao poder é bem mais provável que venha a conhecer o destino de outros oligarcas caídos em desgraça: o exílio na melhor das hipóteses, caso de Boris Berezovski, ou a prisão, como sucedeu a Mikhail Khodorkovski.

Putin tudo fará para evitar o enxovalho de ter de se sujeitar a uma segunda volta e quem o subestimar pagará caro.


Jornal de Negócios
14 Dezembro 2011

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Putin senhor de todas as Rússias

   Aleksei Kudrin



   A demissão do responsável pelas finanças de Moscovo na última década foi a primeira consequência do anúncio oficial do retorno do homem forte da Rússia à presidência e sinal da instabilidade do sistema autocrático centrado em Vladimir Putin.

   Aleksei Kudrin há mais de um ano que assumia publicamente significativas divergências políticas com o presidente Dmitri Medvedev, evitando, no entanto, criticar directamente o chefe do governo.

A atitude do ministro das Finanças - tal como Medvedev um dos quadros de São Petersburgo que fizeram carreira com Putin na capital na segunda metade dos anos 90 - reflectia a sua ambição em assumir a direcção do governo.

O desafio de Kudrin

Kudrin, ministro das Finanças desde Maio de 2000, conseguiu estabilizar as finanças russas num contexto de alta dos preços dos hidrocarbonetos e da estatização ou subordinação ao Kremlin dos grupos económicos constituídos na década de 90.

A boa gestão de Kudrin permitiu a Moscovo aguentar a crise financeira de 2008 E recuperar da quebra de 7,8% do PIB em 2009, retomando um crescimento de 4% no ano seguinte.

Com credenciais e prestígio internacional suficientes para aspirar à chefia do governo Kudrin, um dos mais próximos associados de Putin, viu-se preterido a favor de Medvedev.

O imediato desafio público de Kudrin a um presidente a prazo só poderia resolver-se pelo pedido forçado de demissão com a anuência de Putin.

A partir de agora o confronto pessoal entre dois elementos da elite do poder, por sinal ambos com perfil académico e técnico diferente de outros rivais ligados aos sectores de segurança e militares, vai depender dos interesses de Putin.

Kudrin poderá ser recuperado para algum cargo da Administração Pública ou no sector das grandes empresas da órbita do estado ou acabar relegado para a oposição não-tolerada como sucedeu a Mikhail Kasionov depois de ter sido demitido da chefia do governo por Putin no início de 2004.

O interregno
No interregno de Medvedev a constituição foi imediatamente alterada em 2008 após Putin o ter nomeado sucessor no Kremlin.

Futuros mandatos presidenciais, mantendo a restrição de uma única reeleição, foram alargados de quatro para seis anos.

Medvedev não arriscou criar uma rede própria de poder durante os quatro anos que lhe couberam em sorte no Kremlin e a sua situação sempre foi bem diferente da de Putin quanto Boris Ieltsin nomeou o ex-oficial do KGB primeiro-ministro em 1999 e putativo sucessor.

O primeiro presidente da Rússia ao definir os termos da sucessão pretendia assegurar a segurança pessoal e financeira da sua família e de alguns colaboradores mais próximos, compromisso que foi respeitado por Putin até à morte de Ieltsin em 2007.

Putin, por sua vez, ao escolher Medvedev visava apenas evitar o recurso a uma revisão constitucional ao estilo de autocratas como Nursultan Nazarbaiev, chefe de Estado da ex-república soviética do Cazaquistão desde 1991, que fez aprovar uma emenda em Maio de 2007 permitindo-lhe optar pela reeleição sem quaisquer limitações de mandatos.

Como chefe do governo, Putin manteve o seu estilo abrasivo em contraste com o tom mais polido e diplomático de Medvedev que discursava repetidamente sobre a prevalência da lei num sistema político em modernização e a diversificação da economia.

Da guerra com a Geórgia em 2008 aos conflitos com a Ucrânia ou divergências com Washington, passando pela exclusão do sistema político de todos os rivais (exceptuando a presença irrelevante dos comunistas de Gennadi Ziuganov ou dos ultra-nacionalistas de Vladimir Jirinovski) as diferenças de tom entre "Batman" e "Robin", conforme os crismou um diplomata norte-americano em telegrama inspirado entretanto vindo a público, nunca chegaram, contudo, a assumir relevância.

Incertezas e turbulência
Kudrin justificou as suas críticas à estratégia de Medvedev (que tem a aprovação de Putin) argumentando, designadamente, ser errado aumentar as despesas militares, que deverão subir dos actuais 1,3% do PIB para 3% em 2014, ou adiar o processo de aumento gradual até ao final da década da idade da reforma masculina para os 62 anos e os 60 anos no caso das mulheres. Os constrangimentos da economia russa, agravados pela contracção demográfica, irão acentuar-se nos próximos anos, tendo Kudrin previsto um défice da balança de transacções correntes a partir por volta de 2014 que poderá tornar-se difícil de controlar devido às políticas de expansão da despesa pública.

O sector do gás e petróleo representa 17% do PIB e 44% das receitas do estado e preços do crude abaixo de 110 dólares por barril ameaçam instabilidade imediata numa fase em que o incremento da produção implica avultados investimentos estrangeiros.

Ao aproximar-se outro período de turbulência e incerteza mais vincada se torna a necessidade de unicidade do poder na Rússia e, por isso, Putin voltará ao Kremlin.

A unicidade do poder
O sistema de patrocínio político, que enquadra os principais sectores de actividade económica e sustenta as elites, define o putinismo.

Apesar das últimas sondagens do "Instituto Levada", a mais prestigiada instituição de estudos de opinião pública da Rússia, indicarem que 66% da população se declara insatisfeita com a orientação económica e política do país, Putin continua a apresentar taxas de aprovação superiores a 50%.

A eleição de Putin em Março é um dado adquirido por piores que sejam os resultados da "Rússia Unida" nas legislativas de Dezembro em que "o partido oficial do Kremlin" se limita a apresentar como candidatos representantes da administração pública.

O simples facto do cargo formal mais alto do estado ter de ser assumido a partir de Maio directamente pelo próprio Putin é revelador de que o regime do sucessor de Ieltsin não consegue escapar a uma personalização e centralização extremas do poder.

Presentemente, o sistema político russo não oferece oportunidades de contestação legal e é uma incógnita saber quanto tempo poderá continuar a acumular pressões sem oferecer algum tipo de escape.




Jornal de Negócios
28 Setembro 2011

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A floresta de Putin



   As florestas e as turfeiras ardem em boa parte da Rússia europeia e, na angustiada busca de responsáveis que convulsiona o país, o Kremlin não se sai bem.
 
   Na pior onda de calor de que há registo na Rússia nos últimos 130 anos, as temperaturas estão bastante acima da média em zonas que vão do Leste da Sibéria para Sudoeste, atingindo valores recorde nas regiões a Norte e Noroeste do Mar Cáspio.

Os extremos próprios de um clima continental fazem-se sentir este Verão com particular intensidade nas províncias de Nijni-Novgorod, Moscovo e Voronej, mas os fogos florestais, que no início da semana fustigavam 17 das 83 unidades administativas da Federação, além do irremediável alarme e pânico sociais que causaram, ameaçam vir a ter repercussões políticas.

Apesar de três anos de seca nas regiões meridionais e na bacia do Volga, o risco de incêndios, que alastraram numa área superior a 7.400 quilómetros quadrados, foi menosprezado.

Bases militares foram destruídas; instalações nucleares e refinarias ainda se encontram em risco; e a perda de património e de vidas por efeito directo dos incêndios, além da sobremortalidade provocada pelo calor, é significativa.

Os prejuízos directos da vaga de incêndios, numa estimativa preliminar divulgada na terça-feira pelo diário "Kommersant", ultrapassam 11 mil milhões de euros, cerca de 1% do PIB.

Seca e fogos
A calamidade é menor do que os fogos de 1972, que tornaram a URSS definitivamente dependente de importações de cereais - e nem tem comparação com os grandes incêndios de 1915, no final da era imperial, que fustigaram 1,6 milhões de quilómetros quadrados -, mas agravou as consequências da seca.

As exportações de cereais russas foram suspensas de 15 de Agosto até ao final do ano, apesar da medida poder ser revista em função dos resultadas das colheitas de Outono.

É, no entanto, improvável que tal aconteça, pois, em 2009, a Rússia, com um consumo interno de 75 milhões de toneladas métricas de cereais, produziu 97,1 milhões de toneladas, mas para este ano a última previsão do Ministério da Agricultura aponta para uma colheita entre 60 a 65 milhões de toneladas, sendo as actuais reservas de 24 milhões de toneladas.

Até os media controlados pelo Estado não conseguem sufocar um número crescente de críticas ao governo. Geógrafos, silvicultores, economistas e ecologistas expressam uma opinião unânime: o Estado demitiu-se das suas responsabilidades.

O colapso da prevenção
O sistema soviético de vigilância florestal entrou em colapso no final dos anos 80, quando silvicultores e guardas-florestais sucumbiram à crise.

A maior parte do corpo de 70 mil guardas-florestais passou a subsistir ou fazer fortuna à custa do abate de árvores nas áreas sob sua supervisão.

A corrupção generalizada levou à adopção de medidas radicais para reconverter o sector industrial, mas à custa da preservação dos 800 milhões de hectares de florestas que cobrem 47% da superfície da Federação Russa.

Nenhum ministério ou departamento federal tem actualmente a tutela efectiva da protecção das florestas, e um código adoptado em 2007 atribuiu tal responsabilidade aos governos regionais e a concessionários de explorações florestais.

O desaparecimento de um sistema federal de protecção, incluindo o corpo de guardas-florestais reduzido a 12 mil vigilantes com esporádica presença no terreno, prejudicou sobretudo as regiões europeias, que contam com um quarto da cobertura florestal do país e onde as actividades industriais do sector têm menos importância do que na Sibéria e no Extremo-Oriente.

Nas regiões de exploração florestal intensiva siberianas e do Extremo-Oriente, apesar do abate ilegal e do contrabando, os interesses privados e das autoridades locais permitiram a manutenção de recursos mínimos para prevenção de fogos.

Os sistemas de vigilância e controlo de fogos claudicam por falta de pessoal (existem apenas 51 mil efectivos do corpo de bombeiros em permanência diária, segundo dados oficiais), monitorização (a cobertura área e via satélite é mínima e sujeita a concorrência comercial) e equipamento (o Ministério para as Situações de Emergência conta somente com quatro aviões anfíbios de grande capacidade para combate a fogos, os Beriev Be-200).

A perversão das trufas
O regime putinista, ao centralizar o poder político, designadamente através da nomeação dos governadores regionais, acabou por desarticular instituições inter-regionais ou federais que pudessem vir a revelar-se como contrapesos ao Kremlin.

À excepção de algumas indústrias estratégicas, sobretudo de hidrocarbonetos e militares, os poderes económicos acabaram por ficar muito mais dispersos e a capacidade de coordenação central na área de protecção de recursos naturais diminuiu significativamente.

As turfeiras que ardem nos arredores de Moscovo são um exemplo acabado de uma política agrícola e florestal perversa que começou no tzarismo, passou pelas agruras do sovietismo, degradou-se ainda mais durante a perestroika e acabou em ruína, no putinismo.

Os níveis freáticos de pauis e pântanos reduziram-se drasticamente desde o século XIX, pondo em risco ecossistemas mais vastos.

A secagem de zonas húmidas palustres não teve, na maior parte dos casos, aproveitamento agrícola ou industrial.

Criaram-se, assim, vastas zonas secas e ao abandono, e a exploração das turfeiras é actualmente residual, sem que tenham sido salvaguardados os sistemas tradicionais de controlo de fogos.

O cheiro da turfa a arder sopra nos Verões no centro da Rússia e não poupa o Kremlin de Vladimir Putin e Dmitri Medvedev.
Jornal de Negócios
11 Agosto 2010

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A União Europeia tem de dizer não a Putin

 

   A União Europeia parece ter abandonado irremediavelmente qualquer tentativa de concertar uma estratégia comum face à cada vez mais problemática relação com a Rússia.

   Temida em Varsóvia ou Tallin, parceira assumido em Berlim ou Roma, a Rússia acaba por se impor no desconcerto europeu como um imenso risco cujo único sentido é ser contido de concessão em concessão.
A cimeira entre a União e a Rússia de Sochi, em Maio, deixara a claro a necessidade de os 25 acertarem previamente possíveis estratégias comuns frente a Moscovo, mas, sem que isso tenha sido alcançado e por razões alheias ao bom senso diplomático, a presidência finlandesa convidou Vladimir Putin para a cimeira informal de chefes de estado e governo da União Europeia da próxima sexta-feira que será dominada pela política energética.
Putin chegará a Lahti disposto a escutar um a um os blocos de interesses importantes da União para, em síntese, concluir que todas questões são negociáveis. De facto, irá obliterar a verdade no puro virtuosismo dialéctico de quem se formou nessa grandiosa virtude da análise das contradições alheias.

Viragem estratégica

Desde a cimeira de Maio o Kremlin tem vindo a aumentar as pressões no sentido de consolidar o monopólio estatal no sector do gás natural e petróleo, alterando a anterior estratégia de alargar a entrada minoritária de capitais estrangeiros nas principais empresas de hidrocarbonetos.
Seja mera estratégia negocial a prazo para um aumento da participação da Gazprom ou resultado dos conflitos de interesses das diversas facções que competem pelo poder político-económico junto do Kremlin, facto é que a Shell tem suspenso o seu projecto de 22 mil milhões de dólares para exploração de petróleo e gás na Sacalina por alegadas violações de garantias de protecção ambiental.
A Gazprom, por sua vez, optou por explorar em exclusivo as jazidas de gás de Shtokman, no mar de Barents, deixando de fora as ofertas de investimento das companhias norte-americanas Conoco e Chevron, da Statoil e da Norsk Hydro norueguesas e da francesa Total.
Numa decisão ao arrepio da proclamada estratégia de diversificação de clientes, a Gazprom optou, igualmente, por desistir do transporte de gás liquefeito de Shtokman, a terceira maior jazida do mundo, para os Estados Unidos, preferindo canalizar a produção para os mercados europeus.
Tudo aponta, portanto, no sentido do Kremlin visar um significativo aumento de vendas de gás natural à Europa Ocidental que deverão atingir este ano 151 mil milhões de metros cúbicos, mais 6 mil milhões do que em 2005.
Moscovo pretende, assim, ampliar a breve prazo a sua actual quota de 25 por cento no abastecimento graças à liberalização do sector energético na União Europeia e à diminuição da produção europeia que, incluindo a Noruega, assegura, presentemente, 61 por cento do consumo.
Tal nível de dependência energética é insustentável a prazo e compromete qualquer política de apoio por parte da União Europeia a governos que pretendam, eventualmente, reorientar os seus sistemas de alianças no sentido de uma maior cooperação com Bruxelas.
Moscovo escapa não só a qualquer retaliação pela sua política xenófoba contra os residentes georgianos em consequência do confronto com o governo de Mikhaïl Saakachvili, como, ainda, se vê em condições para impor os seus interesses nos conflitos da Abkazia, da Ossétia do Sul, ou da Transdniestria.

Assassínios e corrupção

Os assassinatos políticos e de ordem económica estão de novo em alta e lançam grandes dúvidas sobre os níveis de conivência ou incompetência das autoridades, apesar de estarem aquém da sangria que marcou os anos 90.
Do atentado que, em Setembro, custou a vida a Andrei Kozlov, vice-presidente do Banco Central, à execução sumária, na segunda-feira, do director comercial da agência noticiosa ITAR-TASS, Anatoli Voronin, passando pela sorte de Anna Politovskaia – que se foi juntar aos doze casos de jornalistas cujos assassínios estão por desvendar desde a chegada de Putin à presidência em 2000 –, e, juntando, também, este mês, o tiro certeiro contra Enver Ziganshin, engenheiro-chefe da exploração de gás da British Petroleum, nas jazidas de gás natural de Kovikta, na Sibéria Oriental, as formas de intimidação violenta estão de volta.
A inclemência russa (por sinal, largamente partilhada pela população russa rendida à tentação nacionalista promovida pelo Kremlin) no norte do Cáucaso passa, em regra, em claro nos círculos decisórios europeus apesar de o relator especial da ONU para a tortura, Manfred Nowak, acabar de ter sido obrigado a cancelar o que seria o primeiro inquérito internacional desde o reinício da guerra na Tchetchénia em 1999, à semelhança do impasse que em se encontra a Cruz Vermelha desde 2004.
A "ditadura da lei" imposta por Putin para recuperar o controlo centralizado no Kremlin das principais instâncias de poder político e económico, após uma década de dissolução de poderes e vampirização oligárquica dos recursos económicos, atingiu, no entanto, os seus limites.

O primeiro limite é de ordem estrutural.

Apesar o investimento estrangeiro ter, segundo o primeiro-ministro Mikhail Fradkov, atingido os 23,4 mil milhões de dólares no primeiro semestre deste ano (mais 41 por cento do que em igual período de 2005), tal volume (com retorno de capitais russos incluído) é ainda insuficiente para a modernização de infraestruturas, particularmente nos sectores chaves do gás natural e do petróleo.
A dependência das receitas do sector de hidrocarbonetos, altamente dependentes das cotações de mercado, suscita, em segundo lugar, sintomas ineludíveis de depressão dos sectores manufactureiros e de sobreavaliação do rublo.
Acresce que a "ditadura da lei" redunda em termos comparativos internacionais num balanço pouco elogioso. As estimativas do Banco Mundial colocam a Rússia no 151º posto num total de 208 países em matéria de eficácia governamental e de entidades reguladoras, estabilidade política, independência judicial e corrupção.
Finalmente, a questão social expressa-se em estatísticas elementares como as que indicam que, apesar de nos últimos oito anos a população abaixo do nível de subsistência (estimado em 2 dólares/dia) ter diminuído para metade, um em cada 5 russos ainda subsiste em situação de pobreza absoluta.
A Rússia é uma potência em declínio a médio prazo por muito bem sucedidas que venham a ser os apelos de Putin para a adopção urgente de políticas capazes de conterem o colapso demográfico iniciado no período soviético, nos anos sessenta, com o aumento da mortalidade.
Até 2008 a Rússia continuará a perder 600 mil pessoas por ano e as projecções apontam para que a população se reduza dos actuais 143,4 milhões para 101,5 milhões em 2050, comprometendo o actual modelo de desenvolvimento.

Que fazer?

A União Europeia não tem forma de confrontar directamente o putinismo por via da sua dependência energética, mas pode, eventualmente, colocar em causa outras esferas de cooperação.
O pacto definido em 2003, em São Petersburgo, em matéria dos chamados Espaços Comuns nas áreas da economia, de liberdade, segurança e justiça, de segurança externa e, finalmente, de pesquisa, educação e cultura, acaba por limitar os objectivos da Política Europeia de Vizinhança, sobretudo no sul do Cáucaso e o seu eventual alargamento à Ásia Central.
A alegada "promoção da liberdade e democracia" visada pela Política Europeia de Vizinhança é contestada por Moscovo que a considera uma ingerência na sua área de influência.
Vladimir Chizhov, o embaixador russo na UE, sublinha reiteradamente a necessidade de prover a interesses pragmáticos comuns a Moscovo e aos 25, descartando a imposição de modelos alegadamente estereotipados de democracia. Numa entrevista recente Chizhov afirmou, concretizando tal raciocínio, ao comparar a situação da Suécia e do Turquemenistão, que para um observador exterior os suecos "podem parecer mais felizes, mas se inquirirmos junto da população do Turquemenistão os turcomenos podem considerar-se mais feliz".
Cumpre, assim, para garantir margem de manobra diplomática, incorporar na revisão da Parceria Estratégica que começará em Novembro cláusulas relativas ao respeito pelos direitos humanos que, à semelhança do que foi conseguido em Helsínquia em 1975, venham a permitir maior margem de manobra diplomática e garantias de actuação para organizações não-governamentais.

A palavra final reside apenas nisto: a Rússia não é, presentemente, parceiro político.

É possível acordar com Moscovo acções de interesse comum ou, pelo menos, de não hostilização, mas alimentar a quimera de que o putinismo seja parceiro numa estratégia de cooperação sem fazer finca-pé nas questões de respeito pelas regras democráticas e dos direitos humanos é um risco insustentável e uma afronta aos princípios que deveriam sustentar a União Europeia.



Jornal de Negócios
19 Outubro 2006

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Um Brasil demasiado corrupto

  Lula da Silva e Erenice Guerra

   Algo de muito errado se passa no Palácio do Planalto quando, pela segunda vez, a chefia da Casa Civil de Lula da Silva se vê envolvida num escândalo de corrupção, peculato, tráfico de influências e nepotismo.
 
   A demissão de Erenice Guerra, a secretária-executiva da Casa Civil de Dilma Roussef que sucedeu à eleita de Lula quando a candidata do Partido dos Trabalhadores (PT) se lançou na campanha presidencial, mancha com uma imensa suspeita a administração brasileira.

As acusações contra Erenice por alegada cobertura a uma rede de tráfico de influências controlada por seus familiares provocou ainda a demissão do director de operações dos Correios e o escândalo alastra.

As investigações da imprensa brasileira com destaque para a revista "Veja", o "Estado de São Paulo" e a "Folha de São Paulo", apresentam dados mais do que suficientes para encarar com o maior cepticismo as proclamações de inocência dos acusados.

A Casa Vil

A denúncia de uma rede de esquemas de tráfico de influências envolvendo a Casa Civil, empresas privadas e estatais vem juntar-se a outras revelações sobre uso indevido de meios do estado para fins partidários, financiamentos ilegais e publicação de dados fiscais sigilosos para comprometer adversários políticos.

A julgar pelo que se vai sabendo, estamos de novo ante um conjunto de actos interligados de corrupção a partir da Casa Civil tal como sucedeu com o escândalo do "Mensalão" que canalizava fundos ilícitos para comprar votos no Congresso Nacional.

Os múltiplos esquemas do Mensalão que começaram a ser denunciados no final de Setembro de 2004 obrigaram à demissão em Junho de 2005 do primeiro chefe da Casa Civil de Lula, José Dirceu, que após regressar à Câmara de Deputados viu o seu mandato cassado no final do ano com efeito até 2015.

Desta feita a corrupção na Casa Civil aparenta ter sobretudo contornos de enriquecimento pessoal ilícito um pouco à imagem das artimanhas do empresário Paulo Farias e de Collor de Melo que redundou na destituição do presidente no final de 1992.

A Casa Civil tornou-se uma Casa Vil, no dizer de alguns críticos implacáveis de Lula.

Rouba mas faz

Lula da Silva negou sempre ter conhecimento de quaisquer irregularidades na Casa Civil de Dirceu e conseguiu a reeleição em 2006.

Dilma Roussef vai pelo mesmo caminho, acusando os adversários políticos de cabalas e afirmando desconhecer eventuais ilícitos da sua protegida Erenice que a acompanhou no governo desde 2003.

Além dos pormenores obscenos de trocas de dinheiro vivo por comissões no próprio Palácio do Planalto a nova vaga de escândalos levanta uma questão fundamental.

Dois dos braços-direitos de Lula, dando de momento de barato o alegado desconhecimento de ilícitos por parte de Dilma, surgem claramente envolvidos em redes criminosas.

No regime presidencialista brasileiro o chefe da Casa Civil é o assessor principal para coordenação do governo, o fiel da constitucionalidade e legalidade dos actos do chefe de estado e o supervisor da actuação dos órgãos e entidades da administração federal.

A corrupção ao mais alto nível ante o putativo desconhecimento do presidente indicia uma propensão das lideranças do PT para se apoderarem dos recursos do estado de forma a garantirem a sua predominância política.

As recentes reacções de Lula e Dilma, acusando a imprensa de "ódio, intolerância e mentira", fazem temer que se trate de uma pecha que se irá agravar depois da eleição da candidata do PT.

Do lendário político paulista Ademar de Barros, que do final dos anos 30 até ser demitido pela ditatura militar do general Castelo Branco em 1966 fez carreira numa lufa-lufa de casos de corrupção, dizia-se: "rouba mas faz".

Ao PT de Lula e Dilma aplica-se perfeitamente este contra-senso.

A adopção em Junho do projecto de lei de iniciativa popular "ficha limpa", interditando por oito anos candidaturas de políticos com sentenças transitadas em julgado por crimes graves, acaba por perder muito do seu significado, ante a incapacidade dos tribunais brasileiros para deslindarem os escândalos envolvendo a presidência.

No "Índice de Percepção de Corrupção" da Transparency International para 2009 o Brasil surge em 75.º lugar num total de 180 países. Com o que se passa pela Casa Civil de Lula não é de crer que tão cedo a imagem do Brasil venha a melhorar no que toca a transparência administrativa.

O presidente sombra

A popularidade de Lula basta para garantir a eleição de Dilma. A vitória de Dilma sobre o antigo governador paulista José Serra, batido por Lula em 2002, está assegurada restando apenas a dúvida sobre a possibilidade de uma segunda volta.

O PT e seus aliados poderão até vir a controlar a Câmara de Deputados e conseguir uma maioria no Senado através das volúveis alianças pessoais e partidárias que caracterizam o sistema político brasileiro para promoverem uma revisão da Constituição.

Seguindo a prática do "dedazo" do Partido Revolucionário Institucional mexicano, o presidente nomeou o seu próprio sucessor, com a diferença de que Lula não se irá afastar da política, ao contrário da prática seguida pelos antigos chefes de estado no México.

O presidente investe assim com particular afinco em algumas das eleições para governadores estaduais já que duas votações são especialmente importantes para definir a força com que a oposição ao PT contará no início do mandato de Dilma.

Em Minas Gerais, o ex-governador Aécio Neves, do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), concorre ao Senado e o seu vice Antonio Anastasia está na corrida pelo governo estadual.

Ambos têm boas hipóteses de triunfo e Aécio poderá assim posicionar-se como forte alternativa presidencial da oposição.

Geraldo Alckmin do PSDB, derrotado por Lula em 2006, tenta voltar ao cargo de governador de S. Paulo, que ocupou entre 2001 e 2006, e leva ligeira vantagem nas sondagens contra Aloizio Mercadante do PT.

Alckmin dificilmente conseguirá impor-se a Aécio ou outros rivais como próximo candidato presidencial da oposição, mas com sua eventual vitória continuará a fugir ao PT o governo do estado mais importante do país.

Eventuais derrotas do PT nos dois estados mais populosos não compensarão outros triunfos, como a previsível vitória de Tarso Genro em Rio Grande do Sul contra a governadora Yeda Crusius do PSDB.

No estado gaúcho é o governo tucano o acusado de corrupção e espionagem de adversários políticos, incluindo escutas telefónicas.

Só após o cômputo dos resultados das eleições para governos estaduais, Câmara de Deputados e dois terços dos mandatos no Senado, além dos escrutínios locais, se poderá ter uma ideia dos equilíbrios na coligação governamental e da autonomia que Dilma terá ante Lula.

O cadastro do PT, o lado obscuro do "boom" económico e dos êxitos de política social de Lula, deixa, contudo, a suspeita de que a corrupção e manipulação de recursos do estado continuarão a ser um elemento essencial para olear a máquina administrativa e assegurar a preponderância política.
 
Jornal de Negócios
22 Setembro 2010