sexta-feira, 24 de agosto de 2012

E os irlandeses serão porreiros?




   Oscar Wilde ponderou em tempos que Deus talvez tivesse sobrestimado as suas capacidades ao criar o homem.

   Agora, a tirada do talentoso dandy de Dublin deve estar a atormentar muitos políticos, diplomatas e juristas que por essa Europa fora aguardam em sobressalto o referendo da Irlanda.

   As sondagens indiciam a possibilidade de os irlandeses votarem Não e, apesar da expectativa de uma elevada participação eleitoral também deixar em aberto uma eventual vitória do Sim, já ninguém se atreve a dar por adquirido o Tratado de Lisboa.

  O Não foi ganhando terreno nas últimas semanas e, significativamente, grande número de opositores ao Tratado justificam-se com a prosaica razão de não perceberem o que significa o extenso articulado do documento assinado no Mosteiro dos Jerónimos.

   Há irlandeses que, pura e simplesmente, não percebem como é que assim se completa "o processo lançado pelo Tratado de Amesterdão e pelo Tratado de Nice no sentido de reforçar a eficiência e a legitimidade democrática da União, e bem assim a coerência da sua acção", para recordar o que se ouviu pelos Jerónimos.

   Se calhar, também, os demiurgos do Tratado de Lisboa sobrestimaram as suas capacidades.

                                          Um referendo inquinado

   O próprio primeiro-ministro irlandês Brian Cowen admitiu não ter lido todas as centenas de intrincadas emendas, protocolos e declarações anexas do acordo que refaz outros dois tratados: o de instituição da Comunidade Europeia, Roma 1957, e o da fundação da União Europeia, Maastricht 1992.

   Logo na altura em que o Tigre Celta começa a coxear o governo de Dublin, obrigado constitucionalmente a organizar um referendo, revelou-se incapaz de apresentar razões claras e distintas para a aprovação do Tratado.

   Prejuízo económico e isolamento diplomático da Irlanda em caso de reprovação do Tratado acabaram por ser os principais argumentos pelo Sim.

   As alas mais esquerdistas em colisão com conservadores católicos e nacionalistas recuperaram para o Não os espectros ameaçadores da soberania capazes de porem em causa o neutralismo, as exportações agrícolas, o código fiscal, os direitos sindicais de negociação e a proibição do aborto excepto em caso de risco de vida para a mãe.

   Um dos pontos mais baixos de um debate inquinado pela desaceleração económica e a crise imobiliária chegou na recta final da campanha quando Cowen prometeu usar o direito de veto para bloquear no Conselho Europeu qualquer liberalização do comércio internacional que possa prejudicar os interesses dos 80 mil membros da Associação dos Agricultores Irlandeses.

   A margem de manobra da União Europeia nas negociações de Genebra da Organização Mundial do Comércio ficou refém de uma promessa demagógica, demonstrando uma vez mais o risco de referendos a tratados internacionais serem contagiados por questões de conjuntura e conflitos internos.

                                 Não tem nada de porreiro, pá!

   O outro lado da questão passa, no entanto, pelo "défice democrático" das instituições europeias que se acentua sempre que governos em risco de verem rejeitados em referendo compromissos internacionais optam pela via das ratificações parlamentares igualmente legítimas, mas renegando promessas eleitorais, conforme fez em Portugal o PS em conivência política com PSD e CDS.

   Depois do descalabro da Constituição Europeia nos referendos francês e holandês de 2005 a lógica de negociação do Tratado Reformador passou por incorporar o essencial do projecto através de emendas, derrogações para o Reino Unido e a Polónia, e renunciar à terminologia constitucional.

   "Uma subtil manobra" que, conforme denunciava em ressabiada análise Valéry Giscard d`Estaing, patrono da Constituição, visava, "antes do mais, fugir à obrigação do recurso ao referendo".

   Enfim, os demiurgos a forçarem a mão por debaixo da mesa para desgosto do federalismo visionário e vanguardista de Valéry d`Estaing.

   O referendo obrigatório surge, ainda, noutras situações, conforme mostra o exemplo da direita francesa, como forma de bloquear constitucionalmente negociações institucionais e de alargamento da União Europeia.

   Mas o que está em caso em qualquer dos casos é a sistemática e sucessiva negociação de acordos políticos que não podem ser impostos na ausência de certa capacidade persuasiva que leve à formação de consensos nos eleitorados directamente implicados.

   É a incapacidade de promover consensos que gera "défices democráticos".

   Uma e outra vez é preciso ter em conta que o "défice democrático" é tão mau quanto o "défice orçamental".

   Os princípios que se aplicam nas finanças e na economia valem para a política: enquanto falhar a "consolidação democrática" não será possível promover estratégias sustentadas de integração política.

   Se o Tratado de Lisboa escapar ao sobressalto irlandês tudo continuará no porreirismo de sempre que é a via do "défice democrático".

   Caso o Tratado Reformador chumbar na Irlanda, melhor do que negociar concessões e promessas a Dublin para voltar à carga - como aconteceu após o Não irlandês ao Tratado de Nice em Junho 2001, posteriormente aprovado em Outubro de 2002 - o que mais importa é renegociar compromissos capazes de gerarem consensos aceitáveis pelos eleitorados europeus.

  E se isso não for possível conformai-vos à política dos pequenos passos.
Jornal de Negócios
11 Junho 2008

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