quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O que a Europa já perdeu

  

   Uma crescente integração político-institucional na peugada do incremento gradual e harmonioso da cooperação económica e financeira, num contexto de expansão económica sustentada, é o pressuposto perdido das estratégias das elites políticas dominantes na União Europeia.

   A bicicleta que ou avançava sem parar ou caia, na imagem celebrizada por Jacques Delors, nunca cativou os políticos britânicos mas, entre os principais estados, alentou socialistas, social-democratas e conservadores franceses e alemães a definirem o chamado "projecto europeu" como o quadro ideal para dirimirem disputas e conciliarem interesses divergentes.

  A crença num progresso pacífico e mutuamente proveitoso sobreviveu às agruras do primeiro choque petrolífero dos anos 70 que pôs fim ao boom do pós-guerra, ultrapassou as dificuldades de integração de comunidades emigrantes do sul da Europa e das antigas possessões coloniais, concretizou-se a 12 estados no "Acto Único Europeu", em vigor desde 1987, e ganhou novo fôlego com a dissolução do bloco soviético.

  O compromisso de Maastricht, em 1992, condicionou ambições federalistas ao escrutínio dos governos nacionais e no âmbito de um mercado único de capitais, bens, serviços e pessoas, enquadrou a moeda única em termos aceitáveis para Berlim, ainda que desde a introdução do euro cedo fossem violados os limites de dívida e défice orçamental.

Choque e estupefacção

   Em países com menor capacidade concorrencial, caso de Portugal ou Grécia, a moeda única propiciou condições favoráveis ao endividamento público e privado sem contrapartida em aumentos de produtividade ou criação de núcleos empresariais competitivos nos sectores primários, secundários ou terciários, enquanto permitia à maior economia da eurozona, a Alemanha, consolidar quotas de exportação de bens e capitais.

   Na sequência do tumulto financeiro de 2007-2008 a insustentabilidade de uma união monetária sem coordenação de políticas orçamentais e fiscais (caso do IRC de 12,5% da Irlanda contestado por Paris) ficou às claras à medida que uma crise de dívida soberana e de balança de pagamentos começou por assolar Atenas e rapidamente alastrou por toda a zona euro.

   O défice democrático da União Europeia revelou-se de imediato um óbice de maior a par da ortodoxia do Banco Central Europeu em privilegiar o controlo da inflação em detrimento de acções para conter, por exemplo, carências de liquidez de certos países que arriscam converter-se em crises de solvência.

   Todas as soluções aventadas por via intergovernamental ou através da Comissão Europeia começaram por tender a ignorar os parlamentos nacionais e o Parlamento Europeu, mas bastaram as regras de unanimidade para bloquear ou atrasar planos de resgate e de criação de fundos de financiamento de emergência.

O europeísmo esclarecido

   Os vanguardismos federalistas tiveram um dos seus momentos mais altos nas propostas elaboradas entre 2002 e 2003 pela "Convenção Europeia", presidida por Valéry Giscard d´Estaing, mas apesar do seu fracasso o "europeísmo esclarecido", o avatar tecnocrático de salão de "despotismos esclarecidos" doutros séculos, ainda viceja.

   Partilhas e cedências de soberania em matéria de políticas financeiras, económicas, orçamentais e fiscais a favor de entidades supranacionais, aparentam no calor do momento reunir consenso em torno de um núcleo duro sob tutela da actual coligação liberal-conservadora berlinense.

  Todos esses projectos salvíficos acabarão por esbarrar contra sólidas objecções constitucionais e irão chocar com a mais do que provável contestação dos eleitores-contribuintes em grande número de países, incluindo a Alemanha.

  A disfuncionalidade das hierarquias decisórias consagradas em 2007 no Tratado de Lisboa foi, entretanto, acentuando-se nos últimos dois anos com a instituição de sucessivos comités e comissões "ad hoc", enquanto Berlim negociava de facto com Paris as decisões políticas de fundo.

   Os 17 da eurozona tomaram decisões tarde e a más horas à revelia da União a 27 e nada disso passou despercebido no vasto mundo que fez do euro a segunda moeda de referência a seguir ao dólar.

Sem credibilidade, nem norte

   Opções de consequências mal medidas, como a aventada discriminação de investidores privados na reestruturação parcial da dívida grega, abalaram, por sua vez, o mercado da dívida pública denominada em euros e, consequentemente, num contexto mais vasto, as entidades reguladoras vêem-se obrigadas a rever a ponderação que devem merecer títulos de dívida soberana nas regras de gestão de risco bancário.

   Decaiu desta forma ainda mais a reputação de uma Europa com maiúscula e a uma só voz que raramente fora actor crível na cena internacional.

   O músculo político que a União reivindicava por via das suas contribuições financeiras ou peso como parceiro comercial e fonte de investimento rapidamente minguava por via das divisões internas e a irrelevância dos 27 no Médio Oriente e no Mediterrâneo notabilizou-se como exemplo notoriamente confrangedor.

   Os interesses particulares de cada estado foram e são uma constante e, salvo algumas excepções de relevo em negociações comerciais ou em conferências sobre alterações climáticas, todos os potenciais parceiros e adversários, a começar pela China, jogam preferencialmente em acertos bilaterais para aproveitar as divergências entre os 27.

Portento de instabilidade

  Por ocasião de grandes crises a União Europeia fracassou por via de regra.

   A União Europeia dividiu-se por altura do conflito, em 2002, entre Madrid e Rabat por causa da ilhota de Perejil, não apresentou posição unificada face à invasão do Iraque em 2003, tomou rumos divergentes frente a Moscovo na gestão das importações de gás natural, tergiversou na estratégia de alargamento ante a Turquia.

  Na frente militar a NATO é notoriamente a aliança que conta no cenário europeu.

   Em 2010 a assinatura dos tratados de defesa e cooperação na área de segurança de 2010 entre Londres e Paris, partilhando inclusivamente áreas de pesquisa e monitorização de arsenais nucleares, deixou de lado veleidades de coordenação militar independente à escala Continental a partir de um putativo núcleo dinamizador da União Europeia.

  A União Europeia não existe como entidade com relevância política porque as compreensíveis divisões de interesses entre os estados membros impedem a adopção de um estratégia comum e a mobilização de recursos sob a orientação de uma autoridade legitimada.

  Um bloco de livre circulação de bens, capitais, serviços e pessoas, partilhando determinadas políticas sectoriais de repartição de recursos, certos mecanismos decisórios e instituições judiciais, consagrando direitos fundamentais, não é uma potência política.

  A crise do euro transformou a União Europeia num portento de instabilidade e retirou qualquer credibilidade às suas ambições como potência política.


Jornal de Negócios
07 Dezembro 2008

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