sábado, 25 de agosto de 2012

Missão impossível em Timor




Missão impossível em Timor
  A 27 de Janeiro de 1999, nove meses depois da queda de Suharto, o presidente Burhanuddin Habibie anunciava que os habitantes de Timor-Leste seriam consultados sobre a opção entre a manutenção do estatuto de vigésima sétima província da Indonésia ou a independência.

  A decisão do ex-vice-presidente de Suharto foi precipitada pela retirada do apoio político e diplomático da Austrália, único estado a reconhecer de jure a anexação de Timor-Leste, e surgiu como um recurso para obter legitimidade internacional e resolver de uma vez por todas o que o ministro dos negócios estrangeiros, Ali Alatas, classificara como "uma pedra no sapato" da diplomacia indonésia.

  Uma fuga para a frente que levou à celebração, a 05 de Maio, dos acordos de Nova Iorque entre Portugal e a Indonésia, determinando as modalidades de "consulta popular", a organizar pela ONU, para 08 de Agosto.

  O principal negociador de Lisboa, embaixador Fernando Neves, viria a admitir ("Política Internacional", Nº 21, Lisboa, 2000) que, apesar do risco inevitável da atribuição à Indonésia das funções de segurança durante o processo - dada a necessidade de reconhecer "os atributos da soberania" de Jacarta para não fragilizar a posição de Habibie -, Portugal optou, com a anuência dos líderes do Conselho Nacional de Resistência Timorense, por aproveitar uma "oportunidade única" de forma a não assumir o ónus de impedir "uma solução para o problema" que teria a consequência "mais que provável (da) retirada de Timor-Leste da agenda da ONU".

   As questões de segurança eram de importância vital, tanto mais que desde o início de 1999 oficiais das forças armadas e da polícia indonésias vinham a reforçar e armar grupos de milícias por todo o território, desencadeando uma vaga de violência que atingiu um clímax sangrento, em Abril, com massacres em Liquiçá e Díli.

   Os dados, num jogo viciado, estavam, no entanto, lançados e quando, no final de Maio, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, apresentou as suas propostas para a Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET), "os responsáveis pela operacionalidade das missões ficaram consternados com o calendário aparentemente irrealista", segundo admite o líder da equipa, Ian Martin.

   A própria nomeação de Ian Martin foi uma surpresa, já que este funcionário britânico da ONU participara em missões na Bósnia, no Ruanda e no Haiti, mas fôra, entre 1986 e 1992, secretário-geral da Amnistia Internacional, organização proscrita por Suharto e pelos militares que apoiavam, então, Habibie.

   Ao longo do relato circunstanciado sobre o processo de organização do recenseamento e referendo (termo evitado por via das sensibilidades políticas indonésias), da vaga de violência e da intervenção militar internacional em Setembro, Ian Martin confronta uma questão chave: teria sido possível evitar o banho de sangue e a destruição?

   Martin não esconde as divergências de análise dos funcionários da ONU, quer no terreno, quer em Nova Iorque, mas admite que o calendário estava à partida condicionado pela necessidade de concluir a consulta em Agosto de modo a que o órgão legislativo supremo da Indonésia, a Assembleia Consultiva Popular, aprovasse, em Setembro ou Outubro, a eventual anulação do decreto de integração de Timor-Leste.

   O chefe da UNAMET e Representante Especial para a Consulta Popular em Timor-Leste, chegado a Díli a 01 de Junho, confessa, no entanto, a sua perplexidade. No princípio de Julho, antes do início do recenseamento, Martin estava na posse de provas concludentes do envolvimento de militares indonésios nos actos de violência das milícias, e reconhecia ser "difícil perceber qual era a verdadeira política do governo indonésio." Restava-lhe admitir o dilema: "Embora a posição indonésia oficial fosse pressionar a ONU a manter o calendário para um processo de recenseamento e votação expeditos o que estava a acontecer no terreno era claramente um esforço para subverter esse processo."

   O recenseamento foi concluído a 06 de Agosto e o referendo, apesar de adiado, acabou por se concretizar, em condições de segurança deploráveis, na data limite de 30 de Agosto, com resultados mais do que previsíveis: votaram 98,6% dos 444.666 recenseados (dos quais 433.576 registados em Timor-Leste) e 78,5 por cento rejeitaram a proposta de autonomia no seio do Estado indonésio.

   A 04 de Setembro, às 09h00 em Díli, eram anunciados os resultados, em simultâneo com a divulgação em sessão aberta do Conselho de Segurança, em Nova Iorque.

   Martin escreve que "o anúncio do resultado foi o sinal para a eclosão da violência". A morte saiu à rua e a perseguição de pessoas e destruição atingiram tais extremos que Xanana Gusmão " à altura ainda em prisão domiciliária em Jacarta " viria a confessar a sua estupefacção ante a carnificina, admitindo mesmo, num momento de consternação extrema, ter cometido "um erro trágico" ao dar o aval para a votação.

   O facto incontornável persiste: os avisos foram ignorados pela ONU. Um plano de terra queimada, "Sapu Jagat", sob a supervisão do major-general Zacky Anwar Makarim (que até meados de Agosto foi, precisamente, um dos elementos de ligação entre as autoridades indonésias e a UNAMET), era do conhecimento confesso das chancelarias e estados-maiores militares (designadamente, da Austrália, Estados Unidos e Holanda), de funcionários da UNAMET, e fôra denunciado por bom número de jornalistas.

   Os elementos mais ponderados do CNRT, em Díli, em particular Leandro Isaac, não alimentavam quaisquer ilusões sobre a iminência de uma razia, o Bispo D. Ximenes Belo apelara ao adiamento da votação (Ian Martin ignora esses apelos no seu relato) e, ainda assim, a UNAMET (cujo pessoal estava desprovido de meios de autodefesa) não tinha planos de contingência para enfrentar o descalabro, à excepção da evacuação para Díli, Darwin ou a Indonésia de funcionários e colaboradores.

O anúncio fatídico
   A própria divulgação dos resultados ainda está envolta em controvérsia. O ex-presidente Habibie afirmou, em entrevista a 27 de Agosto deste ano ao diário "Sydney Morning Herald", ter um acordo com o secretário-geral da ONU para receber um pré-aviso de três dias do resultado de forma a poder declarar o estado de emergência na província e substituir as unidades militares em Timor-Leste por "tropas disciplinadas", sem simpatia pelos integracionistas.

   Habibie sustenta que Annan traiu o acordo, informando-o da iminência do anúncio dos resultados com apenas meia hora de antecedência. O ex-presidente considera que uma eventual substituição de tropas teria "minimizado a violência".

   A existência do acordo foi referida a jornalistas indonésios e estrangeiros, incluindo o autor desta recensão, em Setembro de 1999, por assessores e colaboradores do presidente indonésio, e, de facto, numa brochura editada pela ONU, no ano passado, em Nova Iorque, "The United Nations and East Timor - Self-determination through popular consultation", lê-se na página 39 que a "estimativa aproximada" de sete dias para concluir a contagem "foi mal interpretada no sentido de que o resultado seria anunciado uma semana" depois da votação. Quem poderia ter cometido tal erro de interpretação? A brochura é omissa e Martin também. O responsável da ONU escreve que, concluído o escrutínio na madrugada de dia 04, às 06h00, a UNAMET considerou que "a insegurança crescente pedia um anúncio do resultado o mais breve possível, resultado esse, que de qualquer forma, se podia esperar que transpirasse para o exterior."

   Ian Martin afirma, ainda, que o comandante militar indonésio, coronel Muis, pediu o adiamento da divulgação dos resultados para permitir a chegada de tropas "em princípio mais disciplinadas", mas que o chefe do grupo de contacto indonésio, com a anuência da polícia, concordou com o anúncio.

  A controvérsia é reveladora não só por as alegadas soluções de recurso de    Habibie, apesar do seu irrealismo, não poderem ser descartadas como irrelevantes, mas, também, por a UNAMET ter ignorado o pedido do comandante militar indonésio quando até essa data arriscara avançar com o processo em função do que Martin classifica de "experiência do aumento e diminuição da violência em resposta à pressão política exercida sobre as chefias" militares.

   A conclusão provisória de Martin admite que as forças armadas foram o "centro principal da coordenação e planeamento" dos actos de intimidação e violência, pelo menos ao nível das chefias provinciais, e, "muito provavelmente, acima desse nível". Para o chefe da UNAMET, oficiais superiores e o próprio comandante-em-chefe, general Wiranto, "estavam bem cientes da violência sistemática e disseminada, mas não foram capazes de adoptar medidas para lhe pôr cobro."

   Ciente que as conjunturas favoráveis que levaram à organização expedita da UNAMET e, posteriormente, à intervenção militar internacional dificilmente voltarão a prevalecer, Martin, que independentemente de qualquer erro de julgamento se comportou com uma integridade e coragem invulgares à frente de uma equipa de primeira linha, não duvida que o êxito relativo da missão se deveu, em última análise, à determinação dos "timorenses como povo".

   Este imprescindível relato do actual Representante Especial na Missão das Nações Unidas na Etiópia e Eritreia faz suas as conclusões de uma recente revisão das actividades da ONU em acções de paz e segurança: não é possível aplicar hipóteses de planeamento "na melhor das hipóteses" a situações onde os intervenientes exibiram já historicamente uma conduta "na pior das hipóteses".

  Para Ian Martin o planeamento formal da ONU, em Timor-Leste, baseou-se num cenário, "que nunca foi realista", de actuação "na melhor das hipóteses". O fracasso, ainda que relativo, foi cruel e imerecido.

"Autodeterminação em Timor-Leste", de Ian Martin, Prefácio de Xanana Gusmão, Ed. Quetzal, 286 págs., 2.900$00.


Para Ian Martin o planeamento formal da ONU, em Timor-Leste, baseou-se num cenário, "que nunca foi realista", de actuação "na melhor das hipóteses". O fracasso, ainda que relativo, foi cruel e imerecido.

"Autodeterminação em Timor-Leste", de Ian Martin, Prefácio de Xanana Gusmão, Ed. Quetzal, 286 págs., Lisboa, 2001.


Publicado em Netparque
30 Agosto 2001

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