quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A ordem normal da política russa



  Quando Putin anunciou, em Setembro, o seu retorno à presidência a nudez forte da verdade do regime autocrático rasgou o manto diáfano das fantasias modernizadoras e liberais insinuadas pelo seu mandatário Dmitri Medvedev e a Rússia agitou-se.

O desalento ante as sempre adiadas reformas da justiça, a omnipotência da Administração Central e a sua insistência em controlar sectores chave de uma economia incapaz de superar a dependência dos hidrocarbonetos, além das crescentes disparidades de rendimentos, não era ignorado pelo Kremlin.

As sondagens - em particular da instituição mais prestigiada, o "Centro-Levada" - indicavam que a votação na "Rússia Unida", o partido da administração, iria diminuir nas eleições legislativas de 4 de Dezembro.

As avaliações positivas da actuação do presidente e do primeiro-ministro já tinham caído abaixo dos 50% desde o início de 2011.

A eleição para a Duma confirmou o que sondagens e eventos públicos de escárnio e desafecto ao poder, e a Vladimir Putin muito em especial, vinham indiciando.

Bandidos, ladrões e mágicos

O parlamento mantém um cunho vincadamente iliberal, segundo os próprios padrões políticos russos, e continua a contar com apenas quatro partidos capazes de superarem a barreira dos 7% dos sufrágios.

A "Rússia Unida" perdeu a maioria para impor alterações constitucionais quedando-se pelos 49%.

A quebra de 15% da entidade partidária governamental levou os comunistas a subirem a sua votação para 19%, enquanto os chauvinistas nacionalistas do "Partido-Liberal Democrático" obtinham 12%.

A "Rússia Justa - criada em 2006 sob patrocínio do Kremlin – acentuou uma alegada linha social-democrata em confronto com o primeiro-ministro Putin, mas apoiando Medvedev, e teve como paga 13% dos sufrágios.

A eleição foi marcada por notórias irregularidades com recurso a métodos tradicionais, designadamente os consagrados "carrossel" (depósito de boletins pré-preenchidos) e "helicóptero" (voto repetido em diversas assembleias), além da clássica viciação da contagem de boletins.

Os resultados no norte do Cáucaso e em muitas circunscrições de Moscovo foram ostensivamente deturpados a favor de "Rússia Unida" por vezes com margens superiores a 20% dos sufrágios.

A nível nacional, no entanto, considerando anteriores eleições, além da diferença entre as previsões das empresas de sondagens e os inquéritos pós-votação à boca das urnas, parece crível que a viciação de resultados em prol do partido governamental tenha rondado entre os 5% a 10%.

É a ordem normal da política russa pós-perestroika e estamos muito longe da fraude generalizada e maciça a que se viu obrigado a recorrer o poder em 2006 para garantir a vitória de Boris Ieltsin na segunda volta das presidenciais contra o comunista Gennadi Ziuganov.

Sem ironia, dois dias depois da votação, o presidente da Comissão Eleitoral, Vladimir Churov, gabou-se publicamente a Medvedev de ter previsto os resultados com maior precisão do que as empresas de sondagens.

Numa tirada na tradição do melhor humor russo-soviético, o presidente retorquiu considerando que Churov fazia justiça à alcunha de "o mágico" com que fora crismado nos círculos do poder.

Um protesto minoritário

Entretanto, multiplicavam-se apelos, sobretudo via internet, para manifestações de protesto contra a "fraude eleitoral", exigindo a anulação dos resultados e nova votação.

Pela primeira vez, desde o final dos anos 90, Moscovo assistiu no passado sábado a uma mobilização significativa de contestatários, enquanto as direcções dos partidos não-governamentais que obtiveram representação parlamentar aceitavam os resultados.

Entre 25 mil a 100 mil pessoas, segundo estimativas das autoridades versus oposicionistas, clamaram contra Putin na capital sem que se tenham registado incidentes ou detenções.

Em cerca de outras 60 cidades ocorreram manifestações muito menos relevantes -- em Sankt Petersburg, por exemplo, pouco mais de 7 mil pessoas participaram nos protestos – e o número de detenções quedou-se por uma centena.

A significativa participação de jovens adultos da classe média foi a grande novidade destas manifestações o que pode ser entendido como protesto contra o uso e abuso da propaganda e manipulação administrativa e judicial por parte do poder.

O sucesso de Aleksei Navalni, um advogado libertário e nacionalista-chauvinista, ao taxar o partido de Putin como "partido de bandidos e ladrões" é um caso exemplar da influência do activismo de protesto na internet.

O controlo pelo Kremlin e seus associados políticos e empresariais dos principais meios de comunicação social, sobretudo a televisão e a rádio, é insuficiente para sufocar expressões de protesto antigovernamental num país de 143 milhões de habitantes que conta com 60 milhões de usuários da internet.

A minoria urbana de classe média desafecta ao poder pouco tem em comum com os trabalhadores de baixos rendimentos e pensionistas, uma das principais camadas de apoio a comunistas e nacionalistas alinhada com o heteróclito arco de tendências autoritárias predominantes na Rússia.

Não há folga para ambições liberais e quem confundir protestos pontuais e uma inquietação revoltosa com alternativas políticas anti-autoritárias muito terá de penar.

Ameaça de estagnação

O sistema autocrático de patrocínio político centrado em Putin não atrai jovens contestatários anarquistas ou liberais numa conjuntura em que se esbateu a memória das convulsões da "perestroika" de Gorbatchov e da tumultosa transição dos anos Ieltsin.

O efeito sedutor da normalização imposta nos anos da presidência Putin, entre 2000 e 2008, quando o crescimento económico rondou os 7% anuais e a Rússia reassumiu importância internacional, esvaneceu-se e deu lugar a constatações mais sóbrias numa altura em que o regime não oferece válvulas de escape à dissidência política e às reivindicações sociais.

Nos círculos empresariais, sempre dependentes do poder político-administrativo e enleados na corrupção institucional, admite-se o impasse a que chegou o sistema económico e a expatriação de capitais está de novo em alta prevendo-se que atinja os 70 mil milhões de dólares no final deste ano.

As previsões de crescimento para 2012 centram-se nos 4% e dificilmente a Rússia superará essas taxas sem concretizar a diversificação e modernização da sua economia.

Gás e petróleo representam 17% do PIB e 44% das receitas do estado e preços do crude abaixo de 110 dólares por barril ameaçam instabilidade imediata numa fase em que o incremento da produção implica avultados investimentos estrangeiros.

A vitória anunciada

Nas eleições presidenciais de Março Putin irá confrontar-se com o líder comunista Ziuganov, segundo candidato mais votado em 1996 contra Ieltsin, de novo vencido em 2000 por Putin, e derrotado em 2008 por Medvedev.

O social-democrata Sergei Mironov, apoiante do defunto modernismo liberal de Medvedev e opositor de Putin, afirmou, também, pretender candidatar-se.

Enquanto não surgem outros candidatos, o multimilionário Mikhail Prorokhov manifestou igualmente a sua ambição presidencial.

Em Junho Prorokhov assumiu a chefia de um partido de direita promovido pelo Kremlin, "Causa Justa", mas em Setembro desentendeu-se com os seus patronos durante o processo de escolha de candidatos às eleições legislativas.

"Causa Justa" revelou-se um fracasso, obtendo pouco mais de 390 mil votos (0,60% dos sufrágios), mas Prokhorov, com apoio de Alexei Kudrin (fiel putinista que se demitiu de ministro das finanças em Setembro por desentendimento com Medvedev), fala agora em dinamizar um partido de centro-direita.

A candidatura do excêntrico oligarca, com fortuna feita no sector dos metais preciosos, surge à medida da estratégia de Putin para enquadrar opositores de centro-direita com eventual propensão liberal.

Se, contudo, Prokhorov enveredar por uma oposição declarada ao poder é bem mais provável que venha a conhecer o destino de outros oligarcas caídos em desgraça: o exílio na melhor das hipóteses, caso de Boris Berezovski, ou a prisão, como sucedeu a Mikhail Khodorkovski.

Putin tudo fará para evitar o enxovalho de ter de se sujeitar a uma segunda volta e quem o subestimar pagará caro.


Jornal de Negócios
14 Dezembro 2011

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