sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Chile: um voto de continuidade




    A eleição presidencial de Michelle Bachelet, com a promessa de vir a formar um governo com igual número de mulheres e homens e renovar todo o executivo, marca a diferença significativa do Chile.

   Num país onde 70 por cento da população se declara católica, em que a legalização da interrupção voluntária da gravidez nem sequer está na agenda política e o divórcio só foi legalizado em Novembro de 2004, uma chefe de estado agnóstica e separada pode ser vista como algo de atípico.

   Contudo, o Chile, com uma forte tradição radical e secular, já tinha eleito presidentes agnósticos como Pedro Aguirre Cerda, em 1938, ou Juan António Ríos, quatro anos depois, marxistas declarados por Salvador Allende, em 1970, e a chegada ao palácio de La Moneda de Bachelet é, sobretudo, sinal de que a cultura machista na esfera política está em vias de começar a ser ultrapassada.   

   As razões de continuidade política prevalecem, assim, sobre o simbolismo da personalidade da presidente, pois Bachelet lidera a coligação de socialistas, social-democratas, liberais e democratas-cristãos que geriu a transição e adoptou um modelo económico liberal dando sequência às reformas dos últimos anos do regime de Pinochet, enquanto impunha a ruptura com o passado autoritário.

   O primeiro presidente da Concertação pela Democracia foi um democrata cristão Patrício Aylwin, eleito em 1990. Seguiu-se outro democrata-cristão, Eduardo Frei, e, finalmente, em 2000, chegou a vez do socialista e agnóstico Ricardo Lagos.

   A coligação de centro-esquerda conta, desde as eleições de Dezembro, com maioria nas duas câmaras do parlamento chileno, e apesar das perdas dos democratas-cristãos, os dirigentes da Concertação afirmam-se fiéis ao princípio da paridade na atribuição de cargos políticos.

   Bachelet tem um mandato não-renovável de apenas quatro anos, mas o seu peso político foi reforçado por ter somado mais 485 mil votos em relação ao candidato da direita, Sebastián Piñera; uma vantagem superior em quase 300 mil votos em relação à obtida por Lagos sobre Joaquin Lavín na segunda volta presidencial, em Janeiro de 2000. 

   O programa da Concertação, que conseguiu reduzir a dívida pública a 12 por cento do PIB, visa continuar a atrair o investimento directo estrangeiro (superior a 6 por cento do PIB, mais do dobro do registado em Portugal), e manter a orientação para os mercados externos (o comércio externo equivale a 70 por cento do PIB) de forma a tentar garantir uma taxa de crescimento de 6 por cento ao ano.

   Com uma taxa de crescimento económico prevista de 5,5 por cento, em 2006, as estimativas do Banco Central apontam para 6 por cento no ano seguinte sem estarem previstas grandes alterações até 2010.

   O governo chileno pretende, igualmente, alargar os acordos de livre comércio e aumentar as exportações para os seus mercados principais dos Estados Unidos, da China e do Japão.

   A alta das receitas das exportações de cobre (45 por cento das vendas ao exterior, seguindo-se as frutas, vinho e celuloses) deu um contributo importante, tendo 2005 fechado com vendas ao estrangeiro de 39,597 mil milhões de dólares, saldando-se a balança comercial por um saldo positivo superior a 8,7 mil milhões de dólares.

   Nas relações com os estados vizinhos o panorama é complexo devido a diferendos fronteiriços.

   Uma das prioridades externas passa por assegurar os fornecimentos de gás natural da Argentina.

   O governo de Santiago deseja, também, ligar-se à rede energética peruana, apesar das conflituosas relações com Lima e da possibilidade do nacionalista Ollanta Humala ser eleito presidente em Abril não augurar grande êxito a tal desígnio, e apaziguar as relações com a Bolívia de Evo Morales disposta a reavivar o diferendo sobre os territórios da costa do Pacífico perdidos por La Paz, em 1884.

   O programa da coligação reconhece as insuficiências do sistema educativo e de investigação, a fraca participação das mulheres no mercado de trabalho, que representam apenas 40 por cento da mão-de-obra, e admite como uma das principais pechas da sociedade chilena a taxa de desemprego na ordem dos 8 por cento e a persistência de uma muito desigual distribuição dos rendimentos.

   Entre 16 milhões de chilenos 18 por cento vivem em situação de pobreza, contra 29 por cento em 1990, e 20 por cento da população dispõe de 60 por cento do rendimento nacional.

   Na frente social a reforma do sistema de pensões (em que o esquema de capitalização privada exclui metade dos potenciais contribuintes) e de saúde é uma das prioridades de Bachelet que para os primeiros cem dias conta com um fundo de 300 milhões de dólares de excedente orçamental para aumentar as pensões mais baixas, de maiores de 65 anos e deficientes. 

   Para fazer frente a uma coligação que dura há 16 anos, o candidato derrotado Sebastián Piñera, depois de recolher 25 por cento dos sufrágios na primeira volta das presidenciais e de acabar por perder por uma diferença de oito pontos (superior à esperada pela incapacidade de cativar votos da direita mais radical), terá agora de se afirmar como alternativa política.

    O seu principal opositor Joaquín Lavín, vindo da direita mais conservadora, está presentemente muito fragilizado e o programa do empresário milionário Piñera revelou-se suficientemente atraente para garantir o futuro de um projecto modernizador sem resquícios de ligações à ditadura.

   A polarização da sociedade chilena é ainda bem vincada, mas o consenso que se tem vindo a formar em matéria de reformas institucionais e de política económica, bem como a erradicação da corrupção, são factores a contar na renovação da direita e no pragmatismo dos partidos do centro e da esquerda.

   O Chile prossegue numa via de progressismo liberal ao arrepio do populismo e do nacionalismo económico que assolam a Venezuela, a Bolívia e o Peru. A transição democrática está praticamente concluída.

   O Congresso é escolhido por voto universal e directo e foram abolidos os lugares de representação dos corpos das Forças Armada no Senado.

   Uma futura alternância governamental entre partidos de esquerda e direita é praticamente a única etapa que falta franquear para selar a plena democratização do Chile.

Jornal de Negócios
18 Janeiro 2006

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