sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Os irredutíveis alauítas da Síria

Depois de alternar promessas de abertura política com actos de repressão Bashar al Assad enveredou irreversivelmente pelo recurso à força em defesa do regime do partido "Ba´ath".
O desafio ao poder dos Assad só tem comparação com as revoltas lideradas pelos "Irmãos Muçulmanos" entre 1979 e 1982, que culminaram no massacre de mais de uma dezena de milhares de opositores na cidade de Hama, mas as manifestações estão ainda longe de poderem provocar o derrube da ditadura síria.

Os protestos já ultrapassaram a contestação essencialmente islamita que enfrentou o pai de Bashar, obrigaram a concessões significativas -em particular a 250 mil curdos que viram reconhecida a cidadania síria de que tinham sido excluídos em 1962 -, mas pouco se fizeram sentir nas principais cidades, Allepo e Damasco, e as forças armadas e os órgãos de segurança mantêm-se fiéis ao regime.

Os hierarcas religiosas sunitas, por sua vez, condenaram as manifestações, fazendo-se eco da propaganda governamental que denuncia o perigo de confrontos sectários, ao mesmo tempo que o regime tentou apaziguar alas muçulmanas mais conservadoras ao levantar a proibição de porte do "niqab" (véu integral) nas escolas.

Ainda que a situação esteja sob controlo na maior parte do país e se note a ausência de lideranças políticas na organização dos protestos, surgem sinais de risco para a hegemonia da minoria alauíta na aliança de poder que a partir dos anos sessenta agregou outros grupos minoritários (druzos, ismaelitas, cristãos) e largos sectores da burguesia sunita.

Uma ditadura de conveniência
A posição estratégica aparente de Damasco vai-se alterando em função dos movimentos dos observadores e abundam os temores quanto à instabilidade na Síria.

Teerão visa preservar uma cooperação estratégica que data dos anos 80 e no Iraque a eventualidade de confrontos étnico-confessionais na Síria ameaça agravar os diferendos entre xiitas, sunitas e curdos.

Uma eventual desagregação política na Síria alteraria a força relativa dos aliados libaneses de Damasco, xiitas do "Hizballah" e druzos, afectando ainda a sorte dos islamitas sunitas do "Hamas" em Gaza.

Israel teme pelo fim da paz fria subsequente à guerra de 1973 e a desvalorização da cartada que poderia constituir a retirada dos Montes Golã.

A monarquia haxemita da Jordânia ameaçada por islamitas e dissensões entre a maioria de origem palestiniana e tribos beduínas nada de bom tem a esperar de um reordenamento político a norte.

Para a Turquia seria conveniente manter o acordo firmado com Damasco no final da década de 90 para contenção dos separatistas curdos, a zona de comércio livre negociada com a Síria em 2010 e alargada ao Líbano e à Jordânia, e refrear polémicas sobre a repartição dos recursos de água do Eufrates.

A União Europeia e os Estados Unidos reconhecem a impossibilidade de abertura política em Damasco e tal como a Rússia, que mantém uma base naval em Tartus, terão de considerar a eventualidade de negociar com uma Síria cada vez mais orientada por uma aliança com o Irão.

O regime que Hafez al Assad consolidou a partir de 1970 e legou 30 anos depois a Bashar acabou depois de muitas convulsões - da intervenção militar no Líbano entre 1976 e 2005, às frentes de rejeição anti-Israel, passando pelo confronto com Saddam Hussein ou a cooperação nuclear militar clandestina com Teerão - por tornar-se numa ditadura de conveniência para a maioria dos actores políticos do Médio Oriente.

O panarabismo socialista dos Assad mostrou-se suficientemente pragmático para jogar em todos os tabuleiros, o poder em Damasco parecia inamovível, e no Levante sempre foi razoável negociar com um ditador que desse garantias de acatar um acordo público ou secreto.

O enigma alauíta O clã Assad já passou por muitas refregas fratricidas como as que opuseram Hafez ao irmão Riffat obrigado a exilar-se na Europa após uma tentativa de golpe em 1983 e cunhou o primeiro exemplo árabe de uma república hereditária.

Presentemente, Bashar, seu irmão Maher, o cunhado Assef Shawekat, os primos al Majluf e al Shalish controlam todas as principais instâncias militares e de segurança.

O "Ba´ath" é o partido "líder do estado e da sociedade", nos termos da constituição, e a "Frente Nacional Progressista", criada em 1972, agrega apenas forças políticas subsidiárias e subordinadas a Bashar.

A ficção de uma coligação governamental dominada pelo "Ba´ath" permitiu cooptar para o parlamento e a administração representantes doutras correntes panarabistas, socialistas e comunistas, além de islamitas reconhecidos ao regime e homens de negócios da comunidade sunita.

O núcleo duro do poder, mesmo incorporando tradicionalmente elementos sunitas nos principais cargos do governo, é, contudo, representado pelas forças armadas e de segurança e aí a hegemonia alauíta é esmagadora.

O predomínio dos alauítas - uma variante heterodoxa e esotérica do xiismo com reconhecimento de Ali, primo e genro do profeta Maomé, como divindade e crença na transmigração das almas - resultou da opção da França em promover minorias religiosas e étnicas nos territórios da Síria e do Líbano para facilitar o controlo dos despojos do Império Otomano que partilhou com a Grã-Bretanha.

Os alauítas, cerca de 10% da população, vieram a impor-se nas forças armadas e em resultado, caso único no mundo árabe no século XX, uma minoria tida por herética e mesmo como não-muçulmana por diversas correntes sunitas arrebatou o poder político nos anos 60.

Num estado pluriétnico e multiconfessional, saído de uma partilha arbitrária de territórios na sequência da I Guerra Mundial, chegado à independência em 1946 e palco de sucessivos golpes até os generais alauítas se imporem, Hafez al Assad teve sucesso ao tornar o panarabismo do "Ba´ath" ideologia oficial como mínimo denominador comum capaz de unificar uma improvável aliança de poder.

Sem margem para reformas
A hegemonia política dos alauítas firmou-se numa coligação com outras minorias, excluindo curdos, e a oligarquia sunita de Damasco e Allepo, mas arrisca ser posta em causa se os protestos começarem a mobilizar a população sunita que constitui 74% dos 22 milhões de sírios.

A Síria passou por uma urbanização rápida, tem uma economia dominada por grupos privilegiados através de ligações políticas e sem capacidade de criação de emprego para uma população jovem (40% com menos de 15 anos) e empobrecida (1/3 no limiar da pobreza).

O regime autocrático dos Assad não tem margem para qualquer tipo de reformas que obrige a uma repartição de poderes porque isso implicaria o fim da hegemonia alauíta.

A forte componente étnico-religiosa dos conflitos na Síria não deixa outra alternativa aos alauítas senão resistir pela força.
Jornal de Negócios
28 Abril 2011
 



 

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