sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O voto divino entre Dilma e Serra

Pela primeira vez na história política brasileira, questões de valores religiosos e éticos estão em vias de definir uma eleição presidencial.
É certo que para a vitória de Collor de Mello contra Lula da Silva na segunda volta das presidenciais em Dezembro de 1989 muito contribuiu o forte apoio das igrejas evangélicas, mas os temas económicos e sociais sempre prevaleceram nas disputas eleitorais.

Desta feita, na primeira volta das presidenciais a questão do aborto prejudicou notoriamente Dilma Rousseff, que viu o voto evangélico de protesto religioso migrar para Marina Silva.

A armadilha do aborto
Os estudos sobre a repartição do voto indicam que a evangélica Marina quase duplicou a sua votação em relação às intenções de voto expressas nas sondagens quando a candidata do Partido dos Trabalhadores foi apanhada pela polémica sobre o aborto.

Entre os eleitores que mudaram de orientação de voto na recta final da campanha, optando por Marina, uma sondagem da Datafolha refere que apenas 7%, sobretudo entre classes de mais altos rendimentos e maior escolaridade, o fizeram devido ao escândalo de corrupção na Casa Civil do presidente envolvendo uma protegida de Dilma.

Os 19% conseguidos por Marina Silva foram, em larga margem, devidos ao voto evangélico, sendo particularmente marcante a rejeição de Dilma entre mulheres evangélicas de mais baixos rendimentos e menor escolaridade.

A relevância das posições dos candidatos em relação ao aborto e a polémica mediática redundaram, entretanto, num apoio recorde à manutenção da actual legislação que penaliza com um a três anos de prisão a prática da interrupção voluntária da gravidez excepto em casos de violação ou risco de vida para a mãe.

Em 1993, quando a Datafolha começou sondagens sobre a questão, 54% dos inquiridos declaravam apoiar a lei em vigor, mas após a primeira volta das presidenciais esse número, que passara para 68% em 2008, atingiu os 71%.

O factor evangélico
O crescimento do protestantismo no Brasil a partir dos anos 50 do século passado, com preponderância dos movimentos evangélicos, acentuou o conservadorismo e a intransigência moral numa sociedade maioritariamente católica.

As igrejas pentecostais, que juntamente com outros movimentos cristãos carismáticos acolhem mais de 20 milhões de brasileiros, caracterizam-se pelo literalismo na interpretação da Bíblia, a crença na eficácia da oração, a relevância da conversão, o proselitismo, a glossolalia (o dom das línguas ou falar em línguas alheias referido nos Actos dos Apóstolos), fé nos exorcismos e milagres.

A cura espiritual prometida pelas igrejas evangélicas e o forte empenhamento individual nos rituais de um grupo coeso ajudam a explicar a explosão das igrejas pentecostais e neopentecostais entre populações pobres e marginalizadas em sociedades em mudança acelerada, tal como sucedeu no Brasil.

O pentecostalismo, seja entendido como um factor de modernização por via do rigor ético, autodisciplina e trabalho, além da promoção da coesão familiar, ou interpretado como fenómeno regressivo através da crença passiva na recepção de dádivas divinas por via da oração e da entrega do dízimo, tornou-se num factor que, a par da doutrina católica nominalmente partilhada por cerca de 60% dos brasileiros, condicionará por muito tempo qualquer discussão de questões como o aborto, eutanásia, casamento homossexual ou pesquisas genéticas.

Proselitismo político-religioso
Os valores conservadores do eleitorado evangélico, equivalente a cerca de 25% da população, foram menosprezadas pelo Partido dos Trabalhadores, que só no final da primeira volta tentou, tardiamente, valorizar a alegada fé religiosa da sua candidata.

Dilma, renegando de suas anteriores afirmações pró-liberalização do aborto, reitera a sua fé católica e tenta agora cativar as graças dos pastores da Convenção Nacional das Assembleias de Deus, da Igreja Universal do Reino de Deus e demais denominações evangélicas.

José Serra, católico praticante em período eleitoral, tal como a adversária, tem a seu favor a coerência de sempre ter defendido posições anti-liberalização do aborto, mas não pode dar por adquirido o voto de evangélicos e católicos que rejeitam a candidatura de Dilma.

Qualquer que seja o resultado desta eleição, e Dilma continua favorita, os patronos de causas religiosas vão reforçar o seu peso na tomada de decisões políticas e condicionar as estratégias partidárias.

Daí à manipulação e patrocínio religioso de candidatos e partidos vai um passo muito curto, que esta campanha poderá contribuir para acelerar.

A descriminalização do aborto, praticado por 700 mil a 1,25 milhões de brasileiras todos os anos, sobretudo nas regiões mais pobres do Nordeste, segundo estimativas do Ministério da Saúde, estará fora de questão nas próximas legislaturas.
Jornal de Negócios
13 Outubro 2010

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