sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Adeus a Ataturk

A improvável adesão da Turquia à União Europeia foi questão menor no referendo constitucional ganho pelo partido islamita do primeiro-ministro Recep Erdogan.
Esta mera constatação deveria alertar a diplomacia europeia para os riscos crescentes de alienar um parceiro estratégico nos Balcãs e no Médio Oriente.

O arrastar das negociações de adesão desde 2005 potenciaram a tendência de Ancara para enveredar por uma estratégia regional autónoma, incluindo até passos em falso na companhia do Brasil, em relação à questão nuclear iraniana.

A diplomacia turca tem vindo a reforçar a cooperação com parceiros históricos na sua área regional (estados turcófonos do Cáucaso e Ásia Central, Balcãs, países islâmicos do Levante em detrimento da aliança com Israel, e inclusivamente o Irão, além da vizinha Rússia), independentemente dos vínculos económicos com a União Europeia e da presença de emigrantes turcos na Europa Ocidental.

Esta dinâmica, compreensível e iniciada antes da chegada do Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdogan ao poder em 1992, tende, no entanto, a cavar um fosso cada vez maior entre a União Europeia e a Turquia para além do conflito cipriota.

Um modelo islamita

Sobressai agora a forte possibilidade da Turquia tentar enveredar por um modelo próprio alheio ao legado de regimes autoritários (alemão, italiano, soviético) que inspiraram Mustafa Kemal Ataturk nos anos vinte e trinta e acabaram por definir o estado secularista e controlador de instituições religiosas que sucedeu ao Império Otomano.

A actual preponderância islamita implica não apenas a subordinação dos militares ao poder civil, mas abre ainda caminho à maioria parlamentar para alterar o tradicional viés judicial secularista através de nomeações para o Supremo Tribunal, o Tribunal Constitucional e a Procuradoria.

Os poderes de militares e do poder judicial para obstarem a alegadas ameaças extremistas de partidos islamitas e separatistas curdos, recorrendo a processos frequentemente ditatoriais, foram postos em causa.

Parte significativa da opinião pública turca teme que o desaparecimento de um contrapeso secularista abra caminho a uma islamização perniciosa e os opositores da eventual adesão turca à União Europeia, sobretudo na Alemanha e França, sublinham este possibilidade.

Para os tempos mais próximos, considerando a forte possibilidade de Erdogan arrebatar nova maioria em 2011, não se vislumbra a eventualidade de uma alternância de poder.

Um país dividido

A votação confirmou as divisões turcas: Istambul registou 55 % de votos a favor e 45% contra (no resultado nacional o Não quedou-se por 42 %) e o Sim venceu nos círculos mais conservadores de Ancara e na Anatólia.

Nas áreas mais desenvolvidas e com melhores níveis educacionais das costas do Mediterrâneo prevaleceu a rejeição das propostas de reforma constitucional.

Nas regiões de maioria curda do Sudeste e Sul, onde a participação eleitoral é sempre mais baixa, a reforma constitucional foi aprovada por cerca de 90% do eleitores. No reverso da medalha a abstenção, resultante em grande parte do apelo ao boicote dos partidos separatistas e autonomistas, chegou aos 65% em Dyarbakir e os 59 % em Bat-man.

Sobram défices democráticos após o referendo. Uma melhoria nos direitos civis (defesa da privacidade, protecção à infância, fim da imunidade de golpistas militares, em especial) tem um contraponto negativo na exigência de 10% dos votos expressos para representação parlamentar, tida como recurso para obviar à participação de partidos curdos (cerca de 20% da população).

Subsistem, também, discriminações contra a minoria religiosa alevi, outros 15 % a 20 % dos turcos, que são insustentáveis.

Para um regime democrático na Turquia é essencial eliminar discriminações religiosas e chegar a um acordo político com os partidos curdos, respeitando um regime de autonomia regional de que aliás existem muitos exemplos na Europa e em especial em Espanha.

Um regime novo

A guerrilha curda do Partido dos Trabalhadores Curdos continuará a ser dificilmente comparável ao fracasso do terrorismo da ETA devido à discriminação institucional dos curdos e às implicações regionais (Iraque, Irão), mas sem um acordo político qualquer Governo em Ancara quedará em falso face aos demais países europeus.

O referendo e a vitória dos islamitas de Erdogan assinala, contudo, uma mudança de fundo na Turquia.

A adesão à União Europeia continua a ser apresentada como objectivo estratégico, mas, admitindo que as trocas económicas não irão sofrer mudanças de maior, a Turquia de Erdogan visa outros parceiros regionais e tem em vista um modelo político cuja viabilidade é uma incógnita: um regime islamita democrático.

Erdogan e o Partido da Justiça e Desenvolvimento a Turquia avançam no desmantelamento do modelo secularista e autoritário herdado da revolução de Kemal Ataturk e quanto mais se aproximam do seu objectivo menos precisam da caução de uma União Europeia que repudia, de facto, a integração da Turquia.
 
Jornal de Negócios
15 Setembro 2010
 

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