sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Macau: um sorvedouro


 Isidoro Guimarães

   Poucos o recordam e até em Macau mal lhe sobrou uma rua, para os lados do velho Porto Interior, mas foi o governador Isidoro Guimarães quem, nos idos das décadas de 50 e 60 do século XIX, licenciou o jogo para sustentar o orçamento da Província de Macau, Timor e Solor.

   Face à usurpação colonial de Hong Kong pelo Reino Unido, em 1842, a cidade do Santo Nome de Deus em vias de perder seus tratos comerciais no sul da China encontrou pela mão do futuro Visconde da Praia Grande de Macau uma nova vocação.

   Da exploração pelos bandos tradicionais do submundo chinês, as tríades, até ao monopólio firmado com Stanley Ho em 1962, passando pela entrada em 2002 de competidores de Las Vegas, o jogo foi sempre - a par de contrabandos diversos, caso do auge do tráfico de ouro, após a guerra no Pacífico - a razão de ser de Macau onde à fruste administração portuguesa sucedeu a soberania de Pequim.

                                      O esplendor do jogo

   Regulamentar o jogo, velho vício chinês, encontrou logo na legislação de Isidoro Guimarães a sua justificação como fonte de receitas para projectos sociais e financiamento de infra-estruturas, e tal foi a lógica que levou das primeiras salas licenciadas no Porto Interior e na Rua da Felicidade aos esplendores dos actuais omnipresentes casinos que, superando desde 2006 as receitas de Las Vegas, contribuem para mais de 80% do orçamento da Região Administrativa Especial da República Popular da China, estabelecida em 1999.

    Hoje, como desde os anos 60 do século pretérito, os casinos são a imagem de marca de Macau e qualquer miragem de diversificação económica, fantasiada pelos últimos governadores portugueses e outra vez reiterada pelo novel hierarca da Região, Chui Sai Hon, com beneplácito do presidente chinês Hu Jintao, perde-se insane.

    Macau com pouco mais de 28 quilómetros quadrados no eixo da grande província de Guangdong, face aos primores de Hong Kong, Shenzhen, Zhuhai e Cantão, não apresenta quaisquer vantagens competitivas.

   Raramente a especificidade de Macau foi potenciada, até por falta de quadros qualificados no funcionalismo público e escassez de oferta cultural, mas, mesmo a melhor das estratégias de promoção nunca poderia escapar à míngua do que ver.

   Bastam, em regra, 24 horas para saciar um turista com o património arquitectural e culinário herdado das tradições luso-malaio-chinesas e impera a visita de curta duração visando os casinos.

   Mais de metade dos visitantes de Macau, rondando quase dois milhões de entradas por mês, é oriunda da República Popular da China, que permitiu as visitas individuais ao seus cidadãos em 2003, e todos embicam aos casinos.

   O fluxo de perdedores no jogo varia consoante as autorizações de entradas permitidas por Pequim e o volume de receitas segue de perto os altos e baixos da República Popular, sobretudo na vizinha província de Guangdong, pelo que os lucros dos casinos flutuam em função das entradas de jogadores da China.

   A propaganda sugere que três mil milhões de apostadores asiáticos rondam por ali sôfregos por casinos num arco de cinco horas de voo, mas basta o mercado chinês que, subsidiariamente, é capaz de sustentar centros de jogo em Singapura, Coreia do Sul ou Camboja, para não deixar esgotar o maná de Macau.

                                           Lavar dinheiro

   E, no entanto, sobra um magno problema.

   Nem tem a ver com a apatia política de uma população de pouco mais de meio milhão pessoas, maioritamente vinda da China, sequer, ainda, com reivindicações de justificada representação política por parte de grupos minoritários, clamando contra a crescente desigualdade social.

   A representação política (de mediocridade assombrosa, conforme ilustram os debates ignaros na Assembleia Legislativa) deixa necessariamente de fora uma série de reivindicações sociais, apesar da crescente contestação ao emprego de emigrantes não-qualificados da China (cerca de 80 mil, segundo dados oficiais).

   Os abusos perenes de corrupção (de que os governadores português, por sinal, nunca se penitenciaram) atingiram o auge no caso de um antigo governante, Ao Man Long, que, na tutela das Obras Públicas e Transportes, superou ao longo de sete anos abusos velhos, apropriando-se de quase 100 milhões de euros, até ter sido condenado em 2008 a 27 anos de prisão.

   Ao Man Long e quatro familiares acabaram vítimas exemplares e solitárias de um sistema enraizado de compadrio e a prová-lo está a permanência da ex-auditora do governo, Fátima Choi, e do antigo Comissário Contra a Corrupção, Cheong U, em cargos governamentais com Chui Sai On, apesar de terem falhado em toda a linha no exercício das suas funções no executivo de Edmund Ho.

   Nada disto importa sobremaneira a um Partido Comunista que, por exemplo, ainda no ano passado, deu luz verde a 18 anos de cadeia para o antigo homem forte de Xangai, Chen Liangyu, por razões (corrupção, tráfico de influências, etc.) que qualquer residente de Macau facilmente compreenderia.

   A maior dúvida que sobra tem a ver com a forma como os dirigentes chineses irão nos próximos tempos lidar com os esquemas de lavagem de dinheiro que empresas e particulares da República Popular praticam assiduamente nos casinos de Macau quando se sabe que 90% dos grandes apostadores nos casinos são oriundos da China.

   A fuga e a fraude via Macau terão necessariamente de encontrar os seus limites.

   As autoridades de Pequim anunciaram este mês ter recuperado 1 500 milhões de dólares desviados só no último semestre por funcionários públicos e não é segredo para ninguém que parte significativa desse dinheiro seria cedo ou tarde reciclada através de Macau.

   Jogar os yuans chineses para os trocar em dólares de Hong Kong ou patacas, livremente convertíveis, é coisa que se nota em excesso e não pode durar toda a vida.

Jornal de Negócios
24 Dezembro 2009

http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=402143

Sem comentários:

Enviar um comentário