sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A chama olímpica queima em Pequim

Uns Jogos Olímpicos sem mácula seriam para os dirigentes de Pequim a consagração da potência saída das reformas de Deng Xiaoping, mas a cascata de protestos que segue a tocha olímpica, potenciada pelas manifestações e motins no Tibete, está a denegrir o e
A imagem de uma China atroz, que se impôs a seguir ao Massacre de Tiannamen, em 1989, está de volta, ainda que interesses económicos, comerciais e diplomáticos inviabilizem um boicote às Olimpíadas.
Agosto em Pequim será um mês de alta tensão e as autoridades chinesas estão a braços com uma invasão de mais de 20 mil jornalistas estrangeiros que ameaça transformar em caos e escândalo o menor dos incidentes e elevar à categoria de crise catastrófica qualquer protesto ou violência.
Inseguros e brutais
A brutalidade com que foram reprimidas as manifestações tibetanas e as sucessivas detenções de dissidentes chineses derivam da insegurança persistente que atormenta os líderes de Pequim. 
Uma reacção autoritária face a críticas e contestações internas ou externas é própria de um regime que concebe a política como confronto de forças hostis num jogo de soma nula.
O agravamento das dissensões sociais e étnicas, o esgotamento do modelo de desenvolvimento económico, as crescentes disparidades regionais, a corrupção e a catástrofe ambiental levaram a liderança comunista a adoptar em 2006 um plano quinquenal para criar uma “sociedade harmoniosa”, mas os níveis de conflitualidade não cessaram de aumentar.
Cientes da inexistência de oposição política organizada capaz de afrontar o regime os hierarcas de Pequim subestimaram, no entanto, a cobertura internacional que alentaria actos de desafio dos irredentistas tibetanos e uighurs.
Pequim terá, presumivelmente, muito em breve de enfrentar também manifestações da seita Falun Gong banida em 1999.
A máquina de censura e propaganda a braços com uma vaga de protestos internacionais viu-se incapaz de evitar danos à imagem de harmonia e desenvolvimento da China e num ápice o virulento nacionalismo que é marca do regime irrompeu em cena.
O rio amarelo e o oceano azul
A República Popular define-se como um “estado unitário multinacional”, mas o regime que saiu do maoísmo investe a sua legitimidade num nacionalismo chinês em que a maioria chinesa han impõe os seus valores culturais e proeminência política.
A promoção de imagens de identidade nacional assentes nas mitologias dos han (92 por cento da população), aliena as minorias, sobretudo tibetanos e uighurs, mas é presentemente o baluarte ideológico do regime.
Pequim retomou velhas tradições confucionistas para justificar consenso e harmonia sob a liderança do Partido Comunista, apadrinhou a mitologia de uma raça chinesa descendente dum grande antepassado filho do dragão fundador de dinastias imperiais. 
Desde os finais dos anos 70 uma canção do compositor de Taiwan Hou Dejian tornou-se célebre na República Popular pela elegia do “despertar para todo o sempre” dos “Herdeiros do Dragão”, povo de “olhos negros/negro cabelo/pele amarela”.
O Imperador Amarelo, Huang Di, outro antepassado mítico que há cinco mil anos terá fundado o primeiro estado chinês, entrou igualmente para o panteão de legitimação do regime pós-maoísta como “encarnação do espírito nacional”. 
Estas metamorfoses ideológicas alimentam-se das diversas correntes nacionalistas que despontaram na China após as exacções ocidentais das Guerras do Ópio, iniciadas em 1834, que puseram em crise o império manchu, levaram à usurpação de concessões e territórios por europeus, russos, norte-americanos e japoneses, e culminaram em quatro décadas republicanas de desordem e guerra civil a que a vitória de Mao Zedong viria a por termo em 1949.
Falhado o maoísmo e surgidas as primeiras crises da era das reformas as campanhas patrióticas depois do abalo de Tiannamen abafaram as vozes críticas que nos anos 80 deploravam o chauvinismo e atraso da cultura tradicional.
O ponto mais alto da polémica nacional tivera lugar no Verão de 1988 em torno da série “Elegia do Rio” emitida pela televisão estatal.
O apelo do documentário ao abandono da “civilização do Rio Amarelo” para abraçar a modernidade e o cosmopolitismo da “civilização do oceano azul” acabou sufocado no pós-Tiannamen e as discussões passaram de novo a centrar-se na reforma e reforço do Estado como substância do poder da nação.
Unidos contra a conjura
Desde então o regime assumiu a ideia de Estado forte e economia próspera como fundamento e justificação para a “ascensão pacífica” da China a potência mundial.
O patrocínio estatal de valores patrióticos foi usado por diversas vezes para promover manifestações populares de repúdio a afrontas estrangeiras. 
A comunicação social ampliou os protestos populares de Maio de 1999, na sequência do bombardeamento pela NATO da embaixada chinesa em Belgrado, e dois anos depois os manifestantes voltaram às ruas em Abril aquando da crise entre Pequim e Washington provocada pelo choque entre um caça chinês e um avião espião norte-americano no Mar do Sul da China.
Violentos protestos escaparam ao controlo das autoridades em Março e Abril de 2005 quando centenas de milhares de manifestantes nas maiores cidades chinesas atacaram a embaixada, consulados e interesses japoneses em protesto contra a recusa de Tóquio em reconhecer e apresentar desculpas pelas atrocidades cometidas durante a guerra do Pacífico iniciada com a invasão da Manchúria em 1931.
O nacionalismo chinês é estimulado e patrocinado pelo regime, mas tem raízes bem fundas e ampla adesão popular patente no sucesso entre a população chinesa da campanha de repúdio contra o “separatismo da clique do Dalai Lama e seus acólitos”.
A propaganda desencadeada contra uma conjura internacional para manchar os Jogos Olímpicos, em conivência com separatistas ingratos tibetanos e uighurs e dissidentes traidores à pátria, foi a resposta natural de Pequim a uma crise diplomática presente nas televisões de todo o mundo.
Os Jogos de Pequim irão decorrer num clima de hostilidade e suspeita e as tendências mais chauvinistas do nacionalismo chinês vão subir ao pódio.

Jornal de Negócios
11 Abril, 2008

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