sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A angústia da Sérvia







   Uma angústia tremenda sobressai das eleições legislativas na Sérvia.
   Na cela em Haia, onde aguarda julgamento desde que se entregou ao Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia em Fevereiro de 2003, Vojislav Seselj ficou a saber que o Partido Radical a que preside voltou a recolher 28 por cento dos sufrágios e a arrebatar uma maioria impraticável.

   Tal como no rescaldo das eleições de Dezembro de 2003, os ultranacionalistas não conseguirão integrar o governo, mas, seguros do milhão e seiscentos mil votos conseguidos, estarão na linha da frente à contestação aos planos da ONU para o Kosovo.

   Essa é a intenção declarada do líder interino dos ultranacionalistas Tomislav Nikolic e a força do irredentismo de Seselj.

   O Presidente Boris Tadic, cujo Partido Democrático duplicou a votação, chegando aos 23 por cento, terá agora de levar o primeiro-ministro Vojislav Kostunica a aceitar ceder o lugar.

  Kostunica, que viu a votação do seu Partido Democrático da Sérvia estagnar nos 16 por cento, perdendo dez deputados, apesar da participação eleitoral ter subido para 62 por cento, poderá, no entanto, optar por inviabilizar uma coligação e forçar a convocação de novas eleições.

   Nos três meses que a Constituição prevê para a formação de um governo os ânimos irão exaltar-se devido à questão do Kosovo e a previsível radicalização política entra no cálculo dos diversos estados-maiores partidários.

   Nas negociações dificilmente haverá lugar para os herdeiros de Slobodan Milosevic do Partido Socialista (seis por cento dos escrutínios) e possivelmente será difícil agregar as duas formações liberais que também lograram ultrapassar a barreira dos cinco por cento para a representação parlamentar.

                                    Extradições e quimeras

   Kostunica e Tadic, incompatibilizados desde a crise que seguiu ao assassinato do primeiro-ministro Zoran Dindiz, em 2003, têm posições muito diferentes em matéria de política económica e quanto à forma como conduzir as negociações para um acordo de associação com a União Europeia.

  Kostunica opôs-se à extradição de Milosevic, em 2001, tentando, como chefe de estado, impedir o governo de Dindiz de entregar o seu antecessor à justiça internacional e mantém todas as reticências quanto à cooperação de Belgrado com o Tribunal de Haia.

  Ao contrário da orientação de centro-esquerda de Tadic, o conservador Kostunica considera ilegal uma eventual extradição do general Ratko Mladic caso o general a monte desde 1995 venha a ser capturado.

   A detenção e extradição de Mladic é, precisamente, uma das condições essenciais para Bruxelas aceitar retomar as negociações sobre um acordo de estabilização e associação interrompidas há oito meses por alegada falta de cooperação das autoridades de Belgrado nos pífios esforços para a captura do antigo líder militar sérvio da Bósnia que até 2002 viveu sob protecção oficial na Sérvia.

    A responsabilidade pela sorte doutros dirigentes sérvios nas guerras da Bósnia, como Radovan Karadzic, já nem sequer é assacada pela União Europeia às autoridades de Belgrado, mas a questão da detenção e julgamento na Haia dos acusados de crimes de guerra e contra a humanidade impede qualquer avanço numa eventual cooperação entre a União Europeia e a Sérvia.

   Só a intenção estratégica por parte da União Europeia de evitar o isolamento de Belgrado pode levar a curto prazo a um retomar das negociações tal como aconteceu em Novembro do ano passado quando os Estados Unidos, o Reino Unido e a Holanda levantaram as objecções à participação de Belgrado na Parceria para a Paz da NATO.

                            Coligações desejadas e improváveis

   Uma coligação dita pró-europeia, chefiada por Bozidar Djelic em representação dos democratas de Tadic, com a anuência de Kostunica e englobando potencialmente elementos dos pequenos partidos liberais – Partido Liberal Democrata, de Cedomir Jovanovic, e o G17 Mais, de Mladan Dinkic –, além de representantes parlamentares das minorias étnicas, seria a solução ideal do ponto de vista da União Europeia.

   Contudo, mais do que as divergências sobre orientações fiscais ou económicas são as matérias políticas e os conflitos de personalidades a não augurar grandes hipóteses de sucesso para a formação de uma coligação abrangente que possa dar continuidade ao esforço que garantiu taxas de crescimento económico de 6 por cento nos últimos três anos.

   A margem de manobra é diminuta porque, fechada a válvula de escape da emigração, o crescimento recente foi insuficiente para absorver cerca de 30 por cento de desempregados e retomar os níveis de produção e consumo de início da década de 90.

   Uma coligação capaz de negociar com Bruxelas é, também, a única via para melhorar as relações com os estados vizinhos e voltar, designadamente, a ganhar, mediante negociações com Podgorica, direitos de acesso directo ao Adriático, perdido depois da secessão do Montenegro em Junho do ano passado.

   À excepção do Partido Radical que reivindica contraditoriamente direitos históricos sobre o Kosovo a par da anexação territorial de regiões da Croácia e da Bósnia-Herzegovina povoadas por sérvios as demais forças políticas abdicaram, sob o choque das guerras e da secessão do Montenegro, da quimera da Grande Sérvia.

   O machado de guerra só é brandido aparentemente pelo Partido Radical que com outras forças políticas poderá liderar uma frente ultranacionalista mobilizando um terço dos seis milhões de sérvios, numa população da república que ronda os 7,5 milhões de habitantes.

                           A independência inelutável do Kosovo

   A possibilidade de independência do Kosovo é aceite apenas pelo Partido Liberal Democrata de Cedomir Jovanovic que após obter 5,3 dos votos conta com 14 deputados no novo parlamento, enquanto os demais propõem graus diversos de autonomia para a província de maioria albanesa que garantam a persistência dos vínculos administrativos e a soberania de Belgrado.

   Na próxima sexta-feira, serão conhecidos os termos do plano do enviado especial da ONU Martti Ahtisaari para o estatuto da província onde cerca de dois milhões de albaneses esperam pela independência a prazo para desespero dos 80 mil sérvios que ainda residem no chamado baluarte histórico da Sérvia onde, em 1389, o príncipe Lazar perdeu a vida frente às hostes otomanas de Murad I.

  A ter vingado o compromisso negociado pelo Grupo de Contacto – Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Rússia e Estados Unidos – a formalização das condições de independência do Kosovo partirá do pressuposto expresso publicamente de que os albaneses têm o direito de se separar de Belgrado.

   As negociações abertas em Fevereiro do ano passado entre Belgrado e Pristina, sob égide da ONU, partem do pressuposto de que a província, protectorado internacional desde 1999, seja obrigada a criar instituições de segurança e judiciais sob supervisão externa, tenha interdita a possibilidade de eventual confederação, federação ou integração com a Albânia e mantenha a integridade territorial de forma a obstar a um efeito dominó de partilha étnica na Macedónia e na Bósnia-Herzegovina.

   O exemplo da secessão do Montenegro veio, no entanto, evidenciar que a "soberania limitada" da província poderá vir a revelar-se uma mero compasso de espera para a independência a prazo, depois de obtidas garantias para as minorias não-albanesas, essencialmente os residentes sérvios, e definidos os termos de protecção e livre acesso aos santuários e templos da Igreja ortodoxa no Kosovo.

   Agim Ceku, o primeiro-ministro do Kosovo, lamentou no rescaldo das eleições sérvias que o voto a norte se tivesse quedado pelas quimeras dum passado revoluto.

  Ceku sabe bem que a estabilidade de uma das regiões mais pobres da Europa depende da presença de 17 mil militares da NATO (incluindo 297 portugueses da Brigada de Reacção Rápida) e que, apesar do empenho de Washington numa solução independentista, alguns estados da União Europeia como a Itália, a Espanha, a Grécia, o Chipre e a Roménia manifestam grandes reticências a uma eventual separação da província da Sérvia.

    A substituição do contingente da NATO por uma força liderada pela União Europeia constará provavelmente das propostas de Ahtisaari, enquanto o posterior reconhecimento de uma eventual independência do Kosovo deverá ser deixado à consideração dos estados a título individual.

    A União Europeia terá, no entanto, de adoptar uma política consensual para evitar iniciativas diplomáticas unilaterais como ocorreu em Dezembro de 1991 quando a Alemanha reconheceu as independências da Eslovénia e Croácia ao arrepio dos demais parceiros europeus.

                               Outra vez o grande irmão eslavo

   A emancipação do Kosovo é, contudo, um dado irreversível, mas a atitude de Moscovo é um dos elementos a obstar a um compromisso. Vladimir Putin reafirmou ainda no seu encontro domingo, em Sotchi, com Angela Merkel que um compromisso implica o acordo mútuo de Belgrado e Pristina, insinuando, deste modo, que a Rússia poderia vetar uma resolução do Conselho de Segurança não aceitável por Belgrado.

   Ainda assim, quanto à última variante nas declarações de Putin sobre o Kosovo como questão a implicar o respeito por "princípios únicos e universais" na resolução de conflitos étnico-nacionais os sérvios não podem, no entanto, albergar grandes esperanças.

   O Kremlin visa essencialmente cedências da União Europeia e dos Estados Unidos nos casos de apoio de Moscovo aos secessionistas da Transdnistria, na Moldova, da Abkázia e da Ossétia do Sul, na Geórgia, às reivindicações das minorias russas nos estados bálticos e aos arménios do Nagorno-Karabah.

   O precedente que a autonomia ou futura independência do Kosovo possa vir alegadamente a representar como pretexto para Moscovo reconhecer actos de secessão de minorias russas ou pró-russas no antigo espaço soviético não implica um apoio determinado do Kremlin às pretensões sérvias.

   Nesses Balcãs que extravasam História para tão diminuta Geografia, no dizer sem arrependimento de Winston Curchill, talvez a Europa não se venha a perder como em 1914, mas convém ter em conta que os riscos dos jogos diplomáticos já por demasiadas vezes se revelaram indesejáveis para todos os protagonistas.


Jornal de Negócios
24 Janeiro 2007

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