sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A morte e a morte de Marulanda

Marulanda (Tirofijo)



   Muitos anos depois, diante a selva e a um estremeção do fim, Pedro Marín, dito Tiro Certeiro e conhecido por Marulanda, haveria de recordar aquela tarde remota que levou seu tio Ángel a pegar em armas para vingar outra morte.

   Tiro Certeiro, prestes a sucumbir aos 78 anos, não teve sequer um vislumbre de piedade para com as suas centenas de reféns e mesmo a sorte de Ingrid Betancourt, a candidata presidencial que fizera raptar em 2002, só lhe interessava como trunfo político. 

   Marulanda, o mais velho guerrilheiro do mundo, só tinha para recordar na hora derradeira a primeira salva de outra guerra civil que começara naquele dia 9 de Abril de 1948.

   Ao princípio da tarde dessa sexta-feira, o líder liberal Jorge Gaitán sucumbira em Bogotá a três tiros que iriam lançar a Colômbia em sete anos de confrontos brutais que passaram à história como La Violencia.

   Aos 20 anos, Pedro revira-se na revolta que o tio Ángel alentou de imediato na cidade de Ceilán para vingar Gaitán e dias depois acompanharia os seus primos na fuga para as montanhas da cordilheira central, quando o exército e bandos de caciques conservadores ripostaram.

   Então, o mundo de Pedro Marín era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome, mas, depois, numa longa gesta de guerrilha rural, ele assumiria o nome de Manuel Marulanda Velez – um sindicalista comunista assassinado em 1951 – e faria frente ao regime de Gustavo Pinilla, o general que chegou ao poder em 1953 num golpe de estado que era o compromisso possível entre conservadores e liberais.

  Nas zonas rebeldes dos contrafortes dos Andes, Marulanda resistiu aos ataques do exército e às ofensivas decretadas pelos governos da Frente Nacional de conservadores e liberais que em 1958 sucedeu à ditadura de Pinilla.

  Entre 1964 e 1966 as frentes da guerrilha comunista concentradas nas áreas rurais do Centro-Oeste e do Sul dariam origem às Forças Armadas da Colômbia – Exército do Povo e Marulanda seria o líder incontestado.

                                    A narcoguerrilha

   As FARC lançaram impostos sobre tráficos de droga e os homens da selva rapidamente descambariam na exploração sem quartel da cocaína, dos raptos e extorsões numa espiral que teria o seu contraponto no vendaval de violência dos cartéis de Meddelín e Cáli e nas exacções de bandos de extrema-direita. 

   Uma trégua acordada pelas FARC com o presidente Belisario Betancurt, em 1984, levou Marulanda a apoiar a criação de uma frente política, a União Patriótica, mas confrontou-se com uma vaga de atentados da extrema-direita contra políticos da esquerda e simpatizantes da guerrilha. 

   O resto da vida de Marulanda foi negociar terreno para a sua guerrilha até descobrir mais recentemente que valia a pena traficar interesses com o venezuelano Hugo Chávez e o equatoriano Rafael Correa, para, enfim, se ir desta selva para outro mundo nos idos de Março, sem saber se a sua estirpe condenada teria uma segunda oportunidade sobre a Terra.

                                           Os herdeiros

   Ao camponês Tiro Certeiro segue-se na chefia das FARC Guillermo Sáenz, filho de intelectuais, estudante de antropologia em Bogotá, que se juntou à guerrilha em 1982 e tem agora 59 anos.

   Com o pseudónimo Alfonso Cano, tornou-se conhecido como porta-voz das FARC em negociações com o governo de Bogotá nos anos 90 e chefiava ultimamente as guerrilhas do Bloco Ocidental, uma das frentes mais flageladas pelo exército colombiano.

   Cano chega à liderança depois das FARC terem perdido desde o início do ano três dos sete membros do seu secretariado, o comandante da frente do Caribe e o principal operacional das operações de produção e tráfico de cocaína no Sudoeste da Colômbia.  

   Nas fileiras das FARC contam-se actualmente cerca de 10 mil guerrilheiros – menos de metade dos efectivos dos anos 90 – repartidos por sete blocos militares e controlando cerca de 30 por cento das áreas de cultivo de cocaína que, juntamente com receitas de raptos e extorsões, rendem à organização pelo menos 100 milhões de dólares anuais.

   As deserções têm vindo a aumentar e mais de 200 guerrilheiros entregaram-se este ano às forças governamentais que instituíram um fundo de 100 milhões de dólares para pagamentos a desertores.

   A guerrilha mantém a sua estrutura militar descentralizada e Jorge Briceño, aliás Mono Jojoy, que comanda o Bloco Oriental – o núcleo mais forte com 4.000 guerrilheiros e que tem em seu poder a maior parte dos cerca de 700 reféns das FARC – é, ainda, o comandante com mais influência no terreno, apesar de o Bloco Sul controlar o grosso do narcotráfico.

                           Desmobilizar, traficar, perseverar  
                
   O presidente Álvaro Uribe recusa a pretensão das FARC de obterem o estatuto de entidade beligerante e poderem acantonar-se numa zona desmilitarizada de 800 quilómetros quadrados no Sul da Colômbia para negociar a eventual libertação de reféns.

   Para o governo de Bogotá só é possível a desmobilização total das FARC, tendo o presidente aventado a possibilidade de ex-guerrilheiros virem a partir para França em liberdade condicional.

   Se as actuais ofensivas militares quebrarem as FARC será inevitável que, à semelhança do ocorrido com a desmobilização de mais de 30 mil homens de grupos de extrema-direita em 2006, uma parte da guerrilha se converta exclusivamente ao tráfico de droga, sobretudo nas regiões do Sul da Colômbia.

   Aos guerrilheiros que aceitem eventualmente desmobilizar, Uribe terá de oferecer garantias de segurança para que não se repitam os assassínios que entre 1984 e 1988 custaram a vida a mais de três mil militantes da União Patriótica.

   A conjuntura não é propícia neste particular e acentuará as divisões entre os líderes das FARC sobre possíveis negociações com Bogotá, sendo provável que persistam alguns núcleos de guerrilha irredutíveis.

   Os assassínios de sindicalistas (mais de 450 vítimas desde que Uribe ascendeu à presidência em 2002 e, ainda que a violência tenha diminuído no ano passado, apenas três por cento dos crimes resultaram até agora em condenações judiciais) e as recentes revelações de conivências de narcotraficantes de extrema-direita com políticos apoiantes do presidente pouca confiança podem oferecer aos líderes da guerrilha.

   A extradição para os EUA, este mês, de 15 ex-dirigentes das forças paramilitares de extrema-direita acusados de violar os termos do acordo de paz de 2003 tão-pouco sossegará os narcotraficantes das FARC.

   O modelo de penas reduzidas e garantias de não-extradição negociado com a extrema-direita é, no entanto, a oferta que Uribe tem na mesa para os herdeiros de Marulanda, morto na selva, perdedor de todas as guerras.


Jornal de Negócios
28 Maio 2008

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