sábado, 25 de agosto de 2012

O euro em Ítaca




 A recusa de países com significativas reservas em divisas em financiarem fundos especiais de sustentação e resgates na eurozona, além do reconhecimento público da possibilidade de desagregação da união monetária europeia, tornaram óbvios os impasses políticos da crise.

Até à Itália ter entrado na área de alto risco, a zona euro, considerada como um todo, com um nível de endividamento público sustentável e saldos positivos da balança comercial, dispunha de suficientes reservas financeiras para fazer frente a uma crise de dívida soberana e de balança de pagamentos confinada a economias periféricas.

Sem concessões políticas de fundo, caso do reconhecimento da China como economia de mercado ou de renegociação de direitos de voto no FMI, e na ausência da aceitação explícita de transferências financeiras entre os estados da eurozona, nenhum dos parceiros da União Europeia no G 20 se mostrou disponível para alavancar directamente o "Fundo Europeu de Estabilidade Financeira".

Um travão em Frankfurt
Os tratados confinam o Banco Central Europeu à função essencial de controlo da inflação, interditam a concessão de crédito aos estados ou o recurso à emissão de moeda, e, desde logo, a Alemanha apoia os governadores de Frankfurt que resistem a passar das relutantes compras no mercado secundário de obrigações a uma intervenção que possa levar a instituição a prestamista de facto de última instância.

A chanceler alemã já renegou alguns dogmas conservadores ao deixar cair, por exemplo, a opção pela energia nuclear ou ao aceitar a adopção de um salário mínimo nacional, mas é excessivo esperar que possa liderar um processo que acarretará necessariamente transferências financeiras para estados insolventes ou em risco de insolvência na eurozona.

Imperativos legais e o temor à hiperinflação do início dos anos vinte, que marcou a história política na Alemanha ocidental do pós-guerra e se tornou na ortodoxia dos excedentes comerciais e marco estável, representam um constrangimento dificilmente ultrapassável para a actual coligação governamental em Berlim ante um eleitorado renitente a suportar desvarios alheios.

O risco e a moral

O "risco moral" de sustentar estados e governos prevaricadores reincidentes é, igualmente, uma limitação séria dada a ausência de consensos mínimos, nomeadamente na Grécia ou na Itália, quanto a políticas de reequilíbrio orçamental.

Em contraponto a recapitalização da banca comercial por perdas por investimento nas dívidas públicas e privadas dos países à beira da bancarrota representa, por sua vez, outra forma de "risco moral" dificilmente aceitável para grande número de contribuintes-eleitores.

A insistência em cortes drásticos a curtíssimo prazo na despesa pública e na redução do consumo privado, a par de reformas para aumento de produtividade e competitividade internacionais, que geram recessão e inviabilizam um crescimento económico capaz suportar sequer o pagamento do serviço de dívida cria, por sua vez, condições para contestação generalizada nos países insolventes.

Soluções de recurso de monetarização da dívida soberana por parte do BCE para reduzir taxas de juro ou contorcionismos legais à revelia da letra e espírito dos tratados europeus vão sendo aventadas.

Óbice maior é esbarrarem contra os interesses e direito de participação em processos decisórios quanto a questões de comum valia por parte dos dez países da União que não integram o euro, mas participam a outros níveis em sistemas de cooperação inter-europeia.

Imperfeito como nos filmes

A tensão crescente entre regimes de controlo e integração económica-financeira de pendor federalista na eurozona, frequentemente à revelia do Parlamento Europeu e de parlamentos nacionais, e direitos soberanos dos estados que não legitimaram transferências de poderes tem vindo a acentuar um défice democrático tão insustentável quanto os piores défices orçamentais e cúmulos de dívidas.

O euro como união monetária imperfeita não aguentou a sua primeira grande crise, ainda que continue presente no quotidiano e seja a segunda moeda de reserva mundial a seguir ao dólar.

O euro resiste, mas a quimera de integração e equalização fiscal, financeira, económica e política que lhe era subjacente faz morta e arrefece.

Para que o euro venha a subsistir serão necessárias reformas institucionais que presentemente não contam com apoio nos eleitorados de boa parte dos 27 estados da UE.

Resta confiar que a inventiva dos desesperados venha a sustentar um ente monetário que, mantendo a denominação euro, possa, de metamorfose em metamorfose, assumir as características necessárias a uma moeda única resultante de compromissos entre interesses díspares.

Imperfeito, mas capaz de obstar a males piores, talvez o euro continue a circular em Ítaca.

Lá, em Ítaca, um sempre fiel Argos, uma impoluta Penélope, nunca falharam ao retorno de Ulisses.
Jornal de Negócios
09 Novembro 2011
http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=517829

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