sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Táctica de choque no Kosovo

   As negociações de Viena sobre o estatuto do Kosovo começaram com um ultimato à Sérvia, a promessa de Durão Barroso de uma futura integração dos estados balcânicos na União Europeia e as considerações de Vladimir Putin sobre o precedente que a independência da província deverá constituir para a autonomia das minorias russófonas no antigo espaço soviético.

A primeira fase de uma estratégia ambiciosa promovida pelo Grupo de Contacto - Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Rússia e Estados Unidos - visa impor um compromisso até ao final deste ano sobre a formalização das condições de independência do Kosovo.
A província, protectorado internacional há sete anos, ver-se-á obrigada a criar instituições de segurança e judiciais sob supervisão externa, terá interdita a possibilidade de eventual confederação, federação ou integração com a Albânia e manterá a integridade territorial de forma a obstar a um efeito dominó de partilha étnica na Macedónia e na Bósnia-Herzegovina.
A transição para uma "soberania limitada", com entrada do novo estado na ONU dentro de dois a três anos, implicará a manutenção de tropas da NATO no Kosovo, ainda que o actual contingente de 16 500 homens possa ser reduzido e a União Europeia deva vir a assumir a formação de um corpo de polícia que absorva os antigos guerrilheiros do "Exército de Libertação do Kosovo".
A separação institucional entre Pristina e Belgrado obriga, no entanto, a um acordo prévio sobre as garantias a oferecer às minorias não-albanesas, essencialmente aos cerca de 80 mil sérvios que ainda residem na província, e de protecção e livre acesso aos santuários e templos da Igreja ortodoxa no Kosovo.
As discussões sobre as propostas de "descentralização", ou seja, de auto-administração dos enclaves sérvios, que o enviado especial das Nações Unidas, o finlandês Martti Ahtisaari, tentará harmonizar partem do pressuposto expresso publicamente de que os albaneses do Kosovo, 90 por cento dos cerca de dois milhões de habitantes, têm o direito de se separar de Belgrado.
É uma táctica de choque para preparar a opinião pública sérvia para o inevitável, tanto mais que a fragilidade da posição negocial de Belgrado é patente na perda dos apoios russo e francês e será agravada na eventualidade do referendo sobre a independência do Montenegro, previsto para Maio, se saldar pela secessão de Podgorica.
A campanha irredentista desencadeada pelo Partido Radical de extrema-direita poderia ser paradoxalmente o melhor trunfo de Belgrado para arrancar concessões não só quanto ao Kosovo, mas, também, na Bósnia-Herzegovina. Uma nova vaga nacionalista na Sérvia desestabilizará o regime saído do derrube de Slobodan Milosevic no final de 2000 e a degenerescência do estado pivot dos Balcãs não é do interesse das potências europeias e dos Estados Unidos. A retórica radical nacionalista não tem sido, contudo, contrariada pelos demais partidos e, presentemente, marca a agenda política.
Para obstar ao traumatismo que constitui para nove milhões de sérvios a perda do berço histórico e mitológico da nação - um drama a que a Rússia é particularmente sensível depois da secessão de Kiev - oferece-se no menu de negociações a cenoura da integração europeia.
Encaminhada a eventual adesão à União Europeia da Roménia e da Bulgária em 2007, Bruxelas negoceia a entrada da Croácia e da Macedónia, assina um acordo de estabilização e associação com a Albânia e negoceia no mesmo sentido com a Sérvia-Montenegro (e fá-lo-á, se necessário, eventualmente a solo com Podgarica) e a Bósnia-Herzegóvina.
A estratégia da cenoura tem de positivo o consenso de que não é possível isolar ou abandonar num limbo a faixa ocidental dos Balcãs, mas confronta-se com o impasse institucional da União e a indefinição sobre o financiamento dos programas de desenvolvimento para os países mais pobres da Europa.
Dificilmente haverá sincronismo entre os processos de autonomização e independência política e os possíveis acordos de associação ou integração na União Europeia. Reside aqui o maior risco de fracasso e de potencial radicalização nacionalista nos Balcãs.
Finalmente, a Rússia ao levantar pela voz de Putin a questão de que o compromisso a aplicar no Kosovo implica o respeito por "princípios únicos e universais" na resolução de conflitos étnico-nacionais acaba por mostrar que o empenho diplomático russo nos Balcãs, tem como contrapartida cedências no caso do apoio de Moscovo aos secessionistas da Transd_nistria, na Moldova, da Abkázia, na Geórgia, ou às reivindicações das minorias russas nos estados bálticos.
O choque das guerras da Jugoslávia foi tão grande na Europa, na Rússia e nos Estados Unidos que, por uma vez, há convergência pontual sobre a urgência de lançar um projecto compreensivo para estabilização da região dos Balcãs.
Os interesses envolvidos são altamente conflituais e para aferir das hipóteses de êxito numa longa caminhada conta-se, pelo menos, com um padrão de aferição bastante fiável.
Trata-se do plano da UNESCO para reconstrução nos próximos dois anos de monumentos danificados nas guerras e confrontos do Kosovo. O equilíbrio diplomático obrigou a seleccionar sete monumentos do património cristão-ortodoxo e seis da herança muçulmana, uma pequena parte do espólio arquitectónico do Kosovo.
Se o plano da UNESCO, com financiamento superior a oito milhões de euros, avançar sem confronto de maior entre doadores europeus e islâmicos e as comunidades albanesas e sérvias, então, haverá razão para presumir que, a médio prazo, talvez seja possível apostar numa possível pacificação dos Balcãs.



Jornal de Negócios
23 Fevereiro 2006

http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=272125

Sem comentários:

Enviar um comentário