domingo, 26 de maio de 2013

Uma compra de emergência





   Na mesma semana em que um porta-aviões norte-americano testava com êxito a descolagem de um caça furtivo não-tripulado, o governo francês anunciava ter obtido do Pentágono autorização para a compra urgente de veículos aéreos não-tripulados num manifesto exemplo da inferioridade tecnológica militar europeia.

   A descolagem de 13 de Maio ao largo da Virgínia, a que se seguirão testes de aterragem em porta-aviões, marca um assinalável avanço técnico para dotar a Marinha dos Estados Unidos de capacidade de reconhecimento e ataque com veículos aéreos não-tripulados de longo alcance.

   O caça "X-47B", desenvolvido pela "Northrop Grumman", conta com dispositivos para escapar ou dificultar em extremo a detecção por radar – ao contrário dos "Predator" e "Reaper" em uso no Afeganistão, Paquistão e Iémen – e dispõe de uma autonomia de 2 mil milhas naúticas.

  O veículo pode ser utilizado para reconhecimento e ataque e, a confirmar-se o seu potencial operacional, permitirá reduzir a vulnerabilidade da Marinha norte-americana a mísseis anti-navios de médio alcance.

   Apesar dos óbices de uma crescente dependência de veículos aéreos não-tripulados e de robots em meio terrestre e aquático para acções de reconhecimento e combate, a superioridade tecnológica dos Estados Unidos apresenta presentemente inegáveis vantagens militares e políticas.

   Veículos "Predator" norte-americanos baseados em Niamey, no Níger, fazem reconhecimento do terreno para as tropas francesas e africanas mobilizadas para a campanha militar no Mali.

   Paris apenas dispõe no teatro de guerra de dois aparelhos "Harfang", da série entrada ao serviço em 2008 a partir de modelo israelita, com um raio de acção de mil quilómetros e velocidade máxima de 207 km/hora que, conforme reconheceu na semana passada o ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian, não dão resposta às necessidades operacionais.

   Le Drian, segundo revelou o jornal "Le Monde", obteve recentemente luz verde do Pentágono, aguardando autorização do Congresso de Washington, para compra de dois "Reaper MQ-9" para missões de reconhecimento no Mali, podendo Paris vir a adquirir até sete aparelhos num montante de 300 milhões de euros.

  Os aparelhos, fabricados pela "General Atomics", atingem uma velocidade máxima de 483 km/hora, cobrem um raio de acção de 5 925 quilómetros, sendo a altitude operacional de 15 240 metros pretendendo Paris que entrem ao serviço no Mali até final deste ano.

  O ministro francês reconheceu a urgência da aquisição, referindo que só os Estados Unidos e Israel surgem como potenciais fornecedores de veículos aéreos militares não-tripulados, e apelou à cooperação europeia na área da defesa.

   O panorama apresenta-se, no entanto, desolador.

  Projectos de desenvolvimento de veículos aéreos não-tripulados foram lançados pela "BAE" britânica e a "Dassault" francesa, por um lado, e o consórcio paneuropeu "EADS", por outro, com vista a dispor de um modelo próprio até ao final da década.

  Ao contrário da aviação civil em que a "Airbus" se revelou um rival à altura da "Boeing" a partir da década de 70, na área militar a concorrência entre empresas francesas, britânicas, alemãs, espanholas e italianas tem vindo a dificultar a concretização de projectos comuns.

  O atraso no desenvolvimento de veículos aéreos não-tripulados, tal como de caças, é sintomático da falta de meios da "Agência Europeia de Defesa" e, sobretudo, da escassa importância que os governos europeus atribuem à entidade que criaram em 2004 para cooperação das indústrias militares.

  As urgências políticas e bélicas, acentuadas pelas crises no Maghreb e noutras regiões de África para onde estados europeus se vêem obrigados a mobilizar forças militares, enquanto os Estados Unidos se reservam um papel essencialmente de apoio logístico e operacional, põem a nu a fragilidade das capacidades bélicas de países com ambições de projecção de força como a França ou a Grã-Bretanha.

   Desfasamento e atraso tecnológico reduzem a margem de manobra dos estados europeus e paradoxalmente podem até reforçar tendências do outro lado de Atlântico para um recurso desproporcionado à guerra por controlo remoto.

   Por maiores vantagens que ofereça a guerra à distância os conflitos obrigam irremediavelmente à presença militar e à negociação política no terreno.

  Que o digam as tropas franceses e nigerianas que ainda estão longe de conseguir controlar Kidal, no leste do Mali, de neutralizar grupos islamitas e negociar com milícias e partidos tuareges, bambara, fula e songhai para concretizarem uma eleição presidencial em Julho como primeiro passo para a busca de uma pacificação política.

Jornal de Negócios
22 de Maio 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/joao_carlos_barradas/detalhe/uma_compra_de_emergencia.html


quarta-feira, 15 de maio de 2013

O abuso "Bloomberg"




  Soam a falso as desculpas apresentadas pela "Bloomberg LP" depois de revogar o acesso dos jornalistas da empresa a informação confidencial de clientes dos seus serviços financeiros imediatamente após ter sido confrontada com uma queixa da "Goldman Sachs".

  A "Bloomberg" afirma ter retirado em Abril o privilégio que permitia aos jornalistas acederem a informação sobre o histórico dos terminais, incluindo funções utilizadas, solicitações de apoio técnico e respectivas transcrições, além de fluxo de mensagens, segundo o director-executivo da empresa Daniel Doctoroff. 

  Os destinatários e conteúdo das mensagens, a identificação de acções ou obrigações, por exemplo, não seriam, contudo, acessíveis aos jornalistas que podiam obter endereços de e-mail ou números de telefone dos utentes dos mais de 135 mil terminais ao que alega a "Bloomberg".

  A alteração de privilégios informáticos dos jornalistas da "Bloomberg", também partilhada por pessoal do sector de marketing e vendas, foi comunicada num memo interno na passada sexta-feira em que Doctoroff admitia o erro de permitir a repórteres o acesso parcial a dados confidenciais dos clientes.

  A queixa da "Goldman Sachs" fora noticiada nesse dia pelo tablóide "New York Post" e, segundo informações posteriores, teria sido motivada por uma repórter da "Bloomberg" inquirir junto da delegação em Hong Kong sobre o estatuto e paradeiro de determinado sócio do banco revelando ter conhecimento do histórico do seu terminal.

  Apesar da confidencialidade ser de regra no sector, rapidamente surgiram mais notícias de suspeitas de outros clientes de peso, designadamente por parte do "JPMorgan Chase", sobre os procedimentos utilizados pelos jornalistas da "Bloomberg".

   No caso do "JPMorgan Chase" os repórteres teriam, alegadamente, tido acesso a informação privilegiada ao investigarem em 2012 as perdas no montante de 2 mil milhões de dólares do corretor Bruno Iksil na delegação de Londres.

   Já em 2011 a "UBS" questionara eventual acesso irregular a dados sobre utilização de terminais por parte de jornalistas da "Bloomberg" que investigavam o corretor Kweku Adoboli por suspeita de fraude na perda de 2 mil milhões de dólares em investimentos.

   As suspeitas e apreensões dos clientes dos terminais da "Bloomberg", de bancos centrais a ministérios passando por investidores públicos e privados, resultaram numa série de pedidos de informação sobre eventuais riscos de quebra de confidencialidade.

  A divulgação acidental de mais de 10 mil mensagens trocadas entre corretores no âmbito de testes acordados com um cliente da "Bloomberg", noticiada esta terça-feira pelo "Financial Times", apesar de não ter relação directa com os privilégios informáticos que a empresa concedia aos seus jornalistas, veio turvar ainda mais as águas.

  A "Bloomberg" começou a oferecer informação económico-financeira em 1982, conta presentemente com mais de 15 mil funcionários, e a sua quota de mercado ronda os 30%, tendo facturado 7,9 mil milhões de dólares em 2012.

  Ao contrário de concorrentes como a "Thomson Reuters" ou a "Dow Jones", a "Bloomberg" depois de ter iniciado serviços noticiosos em 1990 optou por permitir o acesso de jornalistas a informação privilegiada gerada pelos serviços financeiros e de negócios, a principal fonte de receitas da empresa.

  Matthew Winkler, editor-chefe da "Bloomberg News", veio a público admitir tratar-se de um "erro indesculpável", mas o mal está feito e os mais de 2400 jornalistas da empresa, que produzem informação de altíssima qualidade, vão pagar pelos abusos em que foram coniventes.

  A investigação sobre a gigantesca rede de negócios urdida pela elite comunista chinesa ("Revolution to Riches") que a "Bloomberg News" divulgou no final do ano passado é um exemplo de jornalismo de primeira água que contou com todas as vantagens do acesso a muito informação propiciada pelos terminais dos serviços económico-financeiros.

  Inquéritos que estão a ser levados a cabo em todo o mundo sobre a forma como jornalistas da "Bloomberg" obtiveram determinadas informações irão confirmar pontualmente as óbvias facilidades de que gozaram ao acederem a dados tidos por confidenciais.

  A integridade dos dados e a confidencialidade sobre a utilização que os clientes fazem dos serviços da "Bloomberg" foram postos em causa pela própria empresa.

  Gestores, responsáveis dos diversos serviços da "Bloomberg" e os jornalistas da casa foram todos coniventes nestes actos de abuso.


Jornal de Negócios
15 de Maio 2013
http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/o_abuso_bloomberg.html

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Massacres em catadupa





   A entrada em combate na Síria das milícias xiitas do "Hizballah" libanês ao lado das forças de Bashar al Assad acaba de marcar o momento em que o conflito étnico-religioso entrou numa fase irreversível de guerra total.

  Os militantes do "Hizballah" desde o fim-de-semana que lutam com as forças governamentais em Al Qusair, uma cidade a menos de 20 quilómetros da fronteira libanesa nas mãos de combatentes sunitas nominalmente fiéis ao "Exército Livre da Síria".

  A luta por Al Qusair visa o controlo do acesso à fronteira nordeste do Líbano e a Tartus e Latakia, províncias costeiras onde predomina a minoria alauíta de al Assad e palco de recentes massacres de alegados opositores sunitas.

  O alastrar das violências a Tartus e Latakia é sinal de que os alauítas -- grupo étnico-religioso seguidor de uma variante esotérica do xiismo, representando cerca de 10% da população -- pretendem garantir um bastião seguro no caso do clã al Assad perder o controlo da capital e de Aleppo, a maior cidade do país.

   O "Hizballah", aliado político de Damasco e Teerão, tem vindo a denunciar os massacres de que têm sido alvo xiitas e alauítas em Al Qusair e ao intervir nos combates assume uma clara solidariedade étnico-religiosa que ultrapassa a tradicional aliança política com Damasco e Teerão.

   O risco do "Hizballah" se envolver irremediavelmente na guerra civil síria arrasta, por sua vez, a maioria da comunidade xiita libanesa para nova situação de confronto com os seus conterrâneos sunitas, druzos e cristãos.

   No terceiro ano de guerra a radicalização acentua-se igualmente entre os sunitas -- mais de 70% da população --, alienando cristãos, druzos, ismaelitas e curdos, comunidades que cada vez mais alimentam o fluxo de refugiados em busca da ajuda dos correlegionários nos países vizinhos.

                                     O temor das minorias

   As minorias mostram-se temerosas do peso esmagador das facções islamitas ligadas aos "Irmãos Muçulmanos" e da crescente influência de organizações salafistas jihadistas como a "Jahabat al Nusra" ("Frente para a Vitória do Povo Sírio") capazes de virem a replicar as violências ocorridas no vizinho Iraque.

  O sistema de patrocínio imposto pelos alauítas a partir dos anos 60 e envolvendo as minorias e parte da burguesia sunita, além de tribos de filiação sunita como os Hadidyn ou os Shammar, foi destruído pela guerra.

   Só os curdos podem considerar uma remota possibilidade de autonomia territorial no nordeste da Síria, apesar de a comunidade estar profundamente dividida entre o "Partido da União Democrática", ligado ao "Partido dos Trabalhadores do Curdistão" -- inimigo número um de Ancara -- e o "Conselho Nacional Curdo", uma coligação apoiada pelo governo regional do Curdistão iraquiano.

   No campo sunita as centenas de milícias nominalmente agregadas no "Exército Livre da Síria" não acatam de facto orientações políticas da heteróclita "Coligação Nacional Síria", presidida a prazo pelo sunita Mouaz Al Kathib, o que retira eficácia ao apoio diplomático e militar de norte-americanos, britânicos, franceses ou turcos.

   O fracasso de uma frente unitária, multiétnica e plurireligiosa da oposição é agravado pelo apoio financeiro do Qatar e da Arábia Saudita a grupos islamitas com o objectivo de derrubar al Assad e fazer claudicar o único aliado regional do Irão.

                                  Veleidades estrangeiras

  Os ataques israelitas revelam, por sua vez, a limitadíssima capacidade de influência externa numa guerra civil que se arrastará até à capitulação ou extermínio dos alauítas às mãos de milícias sunitas.

   Depois, será a vez das facções vencedoras medirem forças e, consciente de que terá de aproveitar esta oportunidade em que a desagregação do estado sírio impede uma retaliação convencional, Telavive limita-se a precaver enquanto possível a transferência de armamento sírio e iraniano para o "Hizballah".

  Israel terá, contudo, de conter as suas intervenções militares e limitá-las a casos extremos de transferências de armas convencionais ou químicas para o "Hizballah" ou grupos terroristas de forma a evitar que o conflito alastre a partir da fronteira sul do Líbano.

   As polémicas sobre eventual recurso pontual a armas químicas por parte de forças governamentais ou grupos rebeldes irão prosseguir dada a impossibilidade de inspecção conclusiva no terreno por especialistas da ONU.

   Os diferendos estratégicos entre Washington, Moscovo, Pequim e Nova Delhi condicionarão, ainda, uma eventual intervenção militar para salvaguarda dos arsenais de armas químicas que implicará inicialmente o envio para grande número de localidades na Síria de dezenas de milhares de soldados (75 mil homens, num cenário posto a circular pelo Pentágono) e centenas de especialistas.

  Capitulação por exaustão e acantonamento nas montanhas da costa do Mediterrâneo ante ameaça de extermínio e remoção forçada de populações é o destino dos alauítas.

  Refúgio junto de comunidades congéneres nos países vizinhos ou aceitação de estatuto subordinado ou automonia muito limitada é o que se vislumbra para as minorias ante a expectativa de uma vitória sunita que obrigará a um acerto de contas entre jihadistas, salafistas, islamitas conservadores e as quase extintas facções secularistas árabes.


Jornal de Negócios
8 de Maio 2013
http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/joao_carlos_barradas/detalhe/massacres_em_catadupa.html