quarta-feira, 24 de abril de 2013

O terrorista do lado




Boston
15 de Abril 2013
   A radicalização terrorista de jovens de origem estrangeira e aparentemente adaptados aos usos e costumes norte-americanos é motivo de grande perplexidade para a maior parte da opinião pública dos Estados Unidos.

  A violência em Boston, contudo, está longe de ser caso único envolvendo cidadãos nascidos ou naturalizados norte-americanos e convertidos ao islamismo salafista e a tácticas terroristas.

   Anwar al-Alwalaki – filhos de iemenitas e nascido no Novo México – tornou-se ideólogo da "Al Qaeda na Península Arábica" até ser abatido por um míssil no Iémen em 2011, e Nidal Malik Hassan – nado e criado por emigrantes palestinianos na Virginia – major psiquiatra e responsável pela morte de 13 pessoas na base de Fort Hood, no Texas, em 2009, tipificam a radicalização terrorista salafista.

  A ideologia dos intransigentes do retorno ao califado e ao rigorismo dos primeiros seguidores do Profeta motivou outros actos terroristas nos Estados Unidos no pós 11 de Setembro envolvendo cidadãos naturalizados como, por exemplo, as conjuras fracassadas dos irmãos de origem paquistanesa Sheheryar e Raees Qazir, detidos em Miami, em 2012.

  Os irmãos Tsarnaev enquadram-se num padrão diferente à semelhança de Suleiman Talovitch, muçulmano nascido na Bósnia-Herzegovina em 1988, naturalizado em 2005 e, por motivação incerta, assassino de cinco pessoas num centro comercial em Salt Lake City, em 2007.

  Os matadores de Boston, filhos de uma avar do Daguestão e de um tchetcheno, tiveram um percurso atormentado do Quirguistão até à chegada a Massachusetts em 2002.

  Tamerlan (homónimo de Tamerlão o imperador turco-mongol do final do século XIV-início do século XV), nascido em 1986, evidenciou dificuldades de integração e a partir de 2008 deu sinais de interesse crescente pela religião islâmica e de radicalismo de orientação salafista.

   A sua estada de seis meses no Daguestão em 2012 e as suspeitas dos serviços de informações e segurança russos de eventual conluio com separatistas tchetchenos ou grupos extremistas do norte do Cáucaso têm contornos pouco claros.

   Tamerlão foi, no entanto, notoriamente o cabecilha de um acto de punição de increús e/ou de vingança contra quem lhe frustou aspirações ao reconhecimento e glória.

  Os meses de Tamerlão pelo norte do Cáucaso – a mais corrupta e violenta região russa com uma arreigadíssima tradição de resistência a invasores estrangeiros e centenários ódios clânicos, tribais, religiosos e nacionalistas – terão contribuído para a radicalização terrorista.

  O culto tradicional da honra e da vingança, a voragem do autosacrifício salafista – factores muito marcantes entre os tchechenos e os avar na convulsiva história do Cáucaso – podem ter alimentado ideias de violência a Tamerlão num imaginário onde se misturaria a mágoa pela discriminação como muçulmano, as atrocidades no Iraque ou Afeganistão por culpas americanas, massacres na Síria ou qualquer outro motivo de despeito.

  O "post mortem" ideológico de um terrorista à solta num país onde armas e violência são desvario quotidiano, é incerto, mas, por certo, politicamente separatistas tchetchenos e salafistas caucasianos nada têm que os leve presentemente a pretender hostilizar os Estados Unidos.

  A propaganda do Kremlin e muitos analistas russos sérios e independentes reiteraram, aliás, as denúncias de complacência de Washington ante os extremismos que campeiam no flanco sul da Rússia, ainda que a pista de uma eventual cumplicidade de salafistas terroristas tchetchenos no atentado não seja crível.

  A influência de Tamerlão sobre Dzhokhar (nascido em 1993 e baptizado com o nome do líder tchetcheno Dzhokhar Dudaiev, primeiro presidente da república separatista em 1991, morto por um míssil em 1996) aparenta tratar-se de um caso clássico de preponderância levando à radicalização do mais jovem por obediência e deferência ante um mentor modelar.

  Os Tsarnaev representam, igualmente, um dos pesadelos maiores dos serviços de informação e forças de segurança: terroristas sem vínculos organizacionais e logísticos a organizações que, por putativa inspiração ou justificação, se lançam em actos de violência de cunho mais ou menos amadorístico, mas potencialmente letais.

  Em regra, só as redes comunitárias e de vizinhança estão em condições de detectar e apenas em certas situações extremas mutações comportamentais que indiciem a possibilidade de eventuais comportamentos perigosos.

  A relação de confiança entre as autoridades repressivas do estado e o comum das gentes ou líderes comunitários, sobretudo, de etnogrupos ou filiações religiosas minoritárias, é muito difícil de conseguir, pode, naturalmente, nem sempre ser isenta de motivações ínvias, e exige persistência.

  Na Grã-Bretanha e no Canadá, conforme aparenta ser o caso da detenção dos suspeitos de conspiração para um ataque na ligação ferroviária Toronto-Nova Iorque, a investigação foi propiciada por um alerta/denúncia de um responsável religioso da comunidade islâmica de Toronto.

  Custa a admitir, mas o terrorista do lado pode ser ou não oriundo de uma região onde campeiem ódios e violências, inspirar-se em extremismos religiosos, nacionalistas, raciais ou étnicos, ou aparentar ser uma rapariga ou rapaz, sobretudo um rapaz, bem comportado que, de repente, mata e destrói.

  Para o recurso à violência indiscriminada contra civis ou, por vezes, alvos militares ou administrativos, nunca faltaram pretextos, motivações e desvarios, mas a motivação ideológica na opção por tácticas terroristas é fundamental.

  Nestes tempos em que o carácter espectacular de um atentado é tanto mais amplo quanto maior a cobertura noticiosa e a difusão em redes sociais o risco do ataque solitário aumentou ainda que seja diferente da táctica terrorista de organizações nacionalistas ou religiosas com estratégias relativamente bem definidas.


Jornal de Negócios
24 de Abril 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/joao_carlos_barradas/detalhe/o_terrorista_do_lado.html

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Do euro ao ressentimento






   Os pressupostos em que assentou a União Europeia após a derrocada comunista no continente e a reunificação alemã estão a esboroar-se e a acrimónia entre alemães e gregos por indemnizações de guerra augura polémicas ainda mais virulentas.

   O euro, com que François Mitterrand pretendeu conter a Alemanha reunificada garantindo a hegemonia do duopólio político de Paris e Berlim e que Helmut Kohl impôs sem contemplações democráticas aos seus conterrâneos, degenerou num factor divisivo entre os estados da moeda única, alienando, ainda, demais parceiros comunitários.

   A actual prepoderância económica, financeira e política de Berlim vai ao arrepio dos equilíbrios do pós-guerra, sustentados militarmente pelas garantias de defesa norte-americanas ante o Pacto de Varsóvia.

   A crise de uma união monetária imperfeita e sem contraponto político gera crescentes ressentimentos que reabrem memórias dos ódios das grandes guerras europeias do século XX.

   A integração alemã no bloco ocidental passou a partir de 1948 pelo Plano Marshal, que abriu caminho para a entrada de Bona na "Comunidade Europeia do Carvão e do Aço" em 1952, e culminou no rearmamento da República Federal com a adesão à NATO em 1955, seis anos após a criação da aliança militar.

                                       Perdão à Alemanha

   O perdão de dívidas contraídas pela Alemanha após a I Guerra Mundial, inspirado por Washington, ficou consagrado no "Acordo de Londres" de 1953, reduzindo em cerca de metade para 15 mil milhões de marcos os compromissos de Bona a pagar num prazo superior a 30 anos.

   A Alemanha reunificada pagou, assim, em 3 de Outubro de 2010 a derradeira "tranche" de 94 milhões de dólares relativa a obrigações emitidas entre 1924 e 1930 e adquiridas sobretudo por investidores norte-americanos.

   Fechava-se um ciclo iniciado com a lógica punitiva do "Tratado de Versalhes" de 1919 que condenara Berlim a indemnizações rondando 269 mil milhões de marcos-ouro, o equivalente a 96 mil toneladas de ouro.

   Sucessivos incumprimentos pela República de Weimar obrigaram a um acordo em 1929 baixando a dívida de Berlim para 112 mil milhões de marcos-ouro a pagar a 59 anos.

   O acordo acabara suspenso em 1931 por incumprimento de Berlim e quando Hitler chegou ao poder em 1933 rejeitou todas as indemnizações de guerra e o pagamento das obrigações emitidas.

                                        O rancor da Grécia

   O acordo e perdão que cobriu dívidas das duas guerras foi ratificado por Atenas que, em 1946, na "Conferência de Paz de Paris" aceitara indemnizações diminutas por parte da RFA no montante de 45 milhões de dólares a valores de 1938.

   Bona pagou ainda 115 milhões de marcos (58 milhões de euros) em 1960 no âmbito de outro acordo com Atenas que, do ponto de vista da RFA, pôs termo a pedidos de indemnizações individuais de vítimas da ocupação nazi.

   Apesar disso mais processos particulares de indemnizações foram encetados, estando em apreciação no "Tribunal Internacional de Justiça" de Haia um pedido de indemnização de 37,5 milhões de euros aos herdeiros das 218 vítimas do massacre nazi de civis na cidade de Distomo em Junho de 1944.

   Os "empréstimos de guerra" compulsivos que os nazis extorquiram à Grécia durante a ocupação entre 1941 e 1944, não cobertos pelo "Acordo de Londres", são, igualmente, matéria polémica.

   A Grécia foi um dos países mais flagelados pela ocupação alemã, italiana e búlgara, tendo sofrido mais de 300 mil mortos, uma perda de 4,5% da população, percentagem só superada no conflito europeu pela própria Alemanha e Aústria, União Soviética, Letónia, Lituânia, Polónia, Hungria e Jugoslávia.

   A guerra civil de 1946-1949 colocou Atenas firmemente no bloco anti-comunista, mas as memórias da ocupação e o rancor nunca se desvaneceram completamente.

   O entendimento com Bona foi sempre questão de relação estado a estado, apesar da emigração grega para a Alemanha e o intercâmbio económico aproximarem cada vez mais os dois países.

   A queda da Junta Militar, que governara Atenas entre 1967 e 1974, não alterou substancialmente a situação.

   Conservadores e socialistas pactuaram um estado clientelar, integrando os derrotados na guerra civil, que desde a entrada da Grécia na CEE em 1981 gozou e abusou de financiamentos comunitários, escusando-se a hostilizar a Alemanha, mas ao eclodir a crise de 2009 o panorama alterou-se.

   Logo em Fevereiro de 2010 o vice-primeiro-ministro Theodoros Pangalos acusou a Alemanha de não ter devolvido o ouro roubado pelos nazis ao Banco Central da Grécia, afirmando que a questão teria de ser resolvida.

  Acusações similares foram-se sucedendo à esquerda e à direita, evocando verbas na ordem dos 160 mil milhões de euros, à medida que na Alemanha crescia a hostilidade contra o "estado vígaro ateniense" e a irresponsabilidade financeira helénica.

  O governo de Antonis Samaras, entretanto, deixou este mês vir a público um relatório que encomendara sobre dívidas de guerra alemãs em Dezembro de 2012, seis meses depois do líder conservador formar governo com apoio dos socialistas e da esquerda democrática.

  O relatório apurou alegadas responsabilidades alemãs por dívidas de guerra e indemnizações ao estado e particulares no montante de 162 mil milhões de euros, cerca de 80% do actual PIB da Grécia.

   A polémica não vai ficar por aqui, apesar de a capacidade negocial do actual executivo de Atenas ser diminuta, e alastrará pela Europa.

  Os interditos, as memórias reprimidas de conflitos, que permitiram negociar pacificamente em quase toda a Europa, com a excepção particularmente sangrenta da Jugoslávia, acordos de cooperação e integração económica e política, começam a dar lugar a polémicas reavivando velhos ódios e temores.

  Nada de bom sairá daqui.




Jornal de Negócios
17 de Abril 2013

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terça-feira, 16 de abril de 2013

Media, governo e administração em Timor-Leste


Photo: a aldeia global
Foto Carlos Narciso

Exmo. Senhor Presidente do Parlamento Nacional, Vicente      Guterres,
Exmo. Senhor Dr. Mari Alkatiri,
Exmos. Senhoras e Senhores Oradores,
Exmos. Participantes e Convidados,

  Informação é poder. Produzir informação credível, divulgá-la com eficácia junto de públicos-alvo bem definidos é uma componente essencial da política de comunicação de todos os governos. É fundamental para qualquer orgão de soberania, instituição do estado e entidade da administração pública.

  Dito isto, vou abordar sucintamente algumas questões fundamentais do que creio devam ser as prioridades da política de informação do estado timorense para o exterior.

  Não me cabe naturalmente a mim indicar quais as políticas a seguir. Isso é, obviamente, matéria soberana da República Democrática de Timor-Leste.

  Acompanho há muito as questões de Timor e sei quanto vos custou ganhar essa soberania de estado independente que naturalmente tanto prezam.

  Noutros tempos bem difíceis para Timor discuti com toda a liberdade questões ligadas à luta pela independência, à viabilidade de um estado soberano. Isso nem sempre era bem compreendido.

  Tentei relatar com o máximo rigor e objectividade eventos e processos políticos, comentei, louvando ou criticando, opções tomadas por altura de 1999, e depois de concretizada a independência.

  Muito aprendi em discussões com timorenses, indonésios, australianos e pessoas de tantas outras nacionalidade. Nessas conversas por vezes, diga-se em abono da verdade, muito nos exaltávamos por razões ideológicas, opções tácticas, ou qualquer outro apaixonante tópico.

  Em todas essas trocas de argumentos acabava inevitavelmente por sobressair a importância da política de informação.

  Creio que na resistência interna e externa os dirigentes e militantes independentistas timorenses, bem como quem os apoiava ou combatia, sempre tiveram isso presente.

  Lembro-me claramente da importância que lhe dava, por exemplo, o saudoso Padre Xico.

  Um querido amigo com quem me cruzei em Macau.

  Faço questão de o evocar em homenagem a gente conhecida ou que no anonimato tanto ajudou a criar condições para termos conversas como esta, aqui e agora.


  Francisco Maria Fernandes, um coração grande que nunca esqueceu a sua Lacló natal, era incansável e exemplar.

  Jogava com as emoções e sabia, igualmente, apresentar argumentos bem sustentados.

  Tinha atenção ao rigor, mas também acabava por confessar entre amigos que, por vezes, muito raras vezes -- dizia ele com um sorriso maroto -- e só mesmo em casos extremos, tinha exagerado ou omitido certas coisas menos felizes que podiam prejudicar o povo timorense por amor a uma causa maior.

  O padre Xico tinha fé em Deus e paixão por Timor. Era impossível o mais céptico ou irónico dos jornalistas zangar-se com ele por causa daqueles pecados de omissões e exageros que só podiam ser coisa pouca, coisa muito pouca, como ele dizia.

  Todos o respeitavam porque o Padre Xico também sabia escutar críticas, esforçava-se por compreender as dúvidas dos outros, muito meditava sobre as suas próprias dúvidas.

  E é por isso que venho aqui chamar a atenção para alguns tópicos com a mesma liberdade com que o faria se estivesse a falar com o Padre Xico.

  Primeiro, visto de fora, visto de Portugal onde trabalho, não tenho a certeza de que aquilo que penso serem as prioridades informativas da República Democrática estejam a ser devidamente concretizadas.

  Por princípio, uma vez definidas as grandes linhas da política externa, a mensagem a transmitir deve ser coerente. Não varia em função do destinatário ao sublinhar os grandes objectivos estratégicos, mas tem de ser adaptada.

  É preciso ter em conta quais os aspectos a destacar ao ter como receptor da nossa mensagem determinado destinário, ao dialogar com certos interlocutores.

  Consideremos, então, os principais alvos da política externa timorense.

  Comecemos pela Associação das Nações do Sudeste Asiático. A ASEAN, para usar o acrónimo inglês, a língua veicular da região.

  É uma entidade congregando estados com interesses, níveis de desenvolvimento e sistemas políticos bastante díspares a que Timor aspira aderir o mais depressa possível.

  Neste caso não sei se foi utilizado eficazmente o argumento de que a adesão poderá contribuir precisamente para ajudar a ultrapassar carências materiais e humanas que limitam a capacidade para uma plena integração.

  Sei que este argumento tem falhas, tenho a certeza de que não convencerá muito político em Singapura, mas ainda assim apresenta algumas virtualidades.

  Contudo, noto com preocupação que há, em geral, algum vitimismo no discurso diplomático timorense e no caso da ASEAN a culpa seria de Singapura.

  Isto é, queixam-se frequentemente de serem vítimas de pressões alheias ou prejudicados por interesses ignobéis.

  Podem ter razão por vezes, mas não esqueçam que neste mundo tudo é conflito de interesses.

  Timor também tem interesses próprios que podem colidir com os de outros estados. Não há inocentes.

  É mais eficaz em certos contextos assumir divergências de interesses ou de apreciações, sublinhando a disponibilidade para o diálogo e a busca de consensos.

  Pelo que vou percebendo da cobertura noticiosa na Malásia ou na Indonésia, por exemplo, creio que estão bem encaminhados os interesses de Timor.

  Quando concretizarem a adesão vão, contudo, precisar de ter muito cuidado para não falharem compromissos por falta de recursos humanos e materiais.

  O escrutínio dos media regionais vai acentuar-se e não sei se dispõem, por exemplo, de pessoal com domínio correcto do inglês para servir de interlocutor aos jornalistas estrangeiros.

  Tentar esconder insuficiências ou acusar os outros de paternalismo ou arrogância é contraproducente, isso vos garanto.

  Como é que vão assumir óbvias insuficiências? Como é que vão explicar a lógica da vossa estratégia de desenvolvimento social e económico no contexto da ASEAN? Conseguem avançar com calendários realistas para concretizarem certos compromissos?
É bom que tenham isso rapidamente esclarecido.

  Olhando a leste não percebo bem que importância estão a dar à relação com estados da Melanésia, da Papuásia-Nova Guiné às Fiji e Vanuatu.

  Qual é o tema principal: a cooperação e interesse mútuo em prol da estabilidade interna de cada estado? Basta pensar no que por cá se passou em 2006 ou das intervenções militares nas Fiji para perceber o delicado da questão.

  Convergências quanto a projectos de desenvolvimento sustentado e gestão de ajudas externas? É isso que está na mesa? Política ambiental?

  Naturalmente algumas vezes os compromissos e promessas timorenses na área melanésia podem entrar conflito com interesses da Austrália e da Nova Zelândia e ainda da Indonésia.

  Então, como é que hieraquizam prioridades ou ponderam superar potenciais conflitos?

  Para os dois grandes vizinhos desenvolvidos, a Austrália e a Nova Zelândia, a lógica informativa terá, também, de ser bem afinada, muito direccionada, e desde logo dou-vos conta de uma grande perplexidade pessoal.

  No contexto internacional os media australianos são a principal e melhor fonte de informação sobre Timor. Contudo, é muito frequente ouvir-se por cá que determinados órgãos de informação australianos estão ao serviço de certos interesses inconfessáveis ou bem identificados, etc., etc.

  Mesmo que achem que isso seja verdade, ignorando que esses mesmos media são em regra de alto nível e influentes, não aconselho que sigam por aí.

  Desde logo estão a evidenciar uma ideia conspirativa e manipulatória do que sejam os media.

  A seguir façam este exercício. Nomeiem um ou uma jornalista timorense de reputação internacional. Agora identifiquem os principais dez jornalistas australianos que contam por esse mundo fora.

  Se ainda não estiverem convencidos o caso complica-se.

  As grandes agências internacionais de informação usam o jornalismo australiano, seguido do indonésio, como fonte sobre Timor até porque os media timorenses são muito incipientes, virados para assuntos domésticos e expressam-se essencialmente em tétum, uma língua muito respeitável, mas sem difusão internacional.

  Isso, aliás, leva a que o estado timorense aspire a dispor de um meio com certa projecção capaz de noticiar aspectos geralmente menosprezados das realidades locais e posições políticas próprias.

  Criar uma agência noticiosa costuma ser a resposta óbvia para esse anseio.

  Há, no entanto, um risco tremendo: se essa agência se tornar num órgão sem independência, subordinado a interesses partidários e pessoais, não terá qualquer credibilidade.

  Será um desperdício de dinheiro, uma feira de vaidades, uma mancha para o bom nome de um regime democrático.

  Quem tem responsabilidades políticas ou administrativas em Timor deve evitar essas tentações nos contactos com os media, sejam eles timorenses ou estrangeiros.

  O princípio a seguir para uma boa interacção com os media é sempre igual: seja o mais rigoroso possível, omita o menos possível.

  Fuja à tentação de manipular porque frequentemente não funciona e só o deixa mal visto.

  É certo que a mentira e as omissões resultam muitas vezes no curto prazo, mas acabará por ser desmascarado.

  Não hostilize, ignore ou subestime os jornalistas que o abordam.

  Cultive em particular, ou seja, discuta abertamente com os poucos jornalistas e especialistas das mais diversas áreas, que vão seguindo com alguma continuidade e conhecimento a actualidade de Timor.

  Medite sobre o facto de certas mensagens não passarem.

  Por vezes pode não ser por deficiência de comunicação ou por esbarrar contra interesses instalados.

  Vou dar um exemplo e é natural que não gostem de ouvir isto.

  Digo-vos que, pelo menos na Europa, ninguém que conte na área da energia considera credível o projecto de processamento de gás natural na costa sul de Timor.

  Não é por a Woodside ter recursos para influenciar ou manipular jornalistas, gestores, académicos ou políticos menos honestos. Não. É porque o projecto é tido como não sustentável economicamente. Neste caso já não é uma questão de comunicação. É uma questão de análise e decisão política e económica.

  De qualquer forma, deixando agora de lado esta importante matéria, vamos partir do princípio de que foi definida uma estratégia, desejavelmente correcta, por decisores legitimados democráticamente, e pensar bem na mensagem que se deseja transmitir e nos meios para o fazer.

  O que nos traz de novo a uma geografia de comunicação.

  Espero que Timor, ou, já agora, experimentem dizer Díli que dá outro peso, tenha uma política de comunicação bem articulada no que toca à Indonésia.

  Falo da política estado a estado. Disputas, divergências até por causa de um passado tão doloroso, exigências de reparações, são incontornáveis.

  A reconciliação estado a estado, o esquecimento doloroso no seio das próprias nações, é, contudo, feita também à custa de perfeitamente compreensíveis e justas exigências de justiça.

  O mal, o abuso, o terror, é questão que estará sempre presente, mas a forma como Díli e Jacarta ultrapassaram traumas tão vivos dá razão para ter esperança que alguma coisa possa mudar de facto.

  Lembro-me de como Pramoedya Ananta Toer me advertiu uma vez, em Jacarta, pouco antes do referendo de 1999, fumando kreteks uns atrás dos outros, que seria de temer o pior do género humano em coisas de política.

  Fora assim na ilha de Buru; assim fora nos contrafortes do Matabian.



  Pak Pram, era um escritor superior, assumidamente controverso em questões políticas, mas com uma sensibilidade que imediamente o levava a compreender quando o conheci pessoalmente em 1999 que pelas bandas de Timor estava em jogo qualquer coisa de fundamental.

   Lembro Pak Pram para sublinhar que aqui joga a vosso favor o conhecimento do bahasa indonesia, a militância democrática no arquipélago, e a memória de certos horrores da História.

  Mudando de paragens é altura de referir que na área de expressão portuguesa certas prioridades são óbvias.

  Temos a cooperação para a divulgação da língua portuguesa, um imperativo constitucional da República Democrática, para qual é fundamental sobretudo o empenho de portugueses e brasileiros.

  Portugal tem ainda maiores obrigações porque é ex-potência colonizadora e membro da União Europeia e o Brasil pela sua importância indiscutível não se pode eximir de responsabilidades.

  Toda uma série de razões culturais, económicas e políticas fazem de Moçambique, Angola, São Tomé e Princípe e Cabo Verde parceiros de eleição, mas é necesário descobrir como adequar a mensagem a cada país e potencializar as relações.

  No caso do deplorável estado falhado da Guiné-Bissau é já Timor que, na medida do possível, tenta ajudar.

  A política de protecção das línguas nacionais em Moçambique e Angola, a par da utilização da língua administrativa nacional, apresenta aspectos de muito interesse para Timor, por exemplo.

  Noutras vertentes os serviços de comunicação do estado timorense têm a obrigação de facultar informação fidedigna a países dadores, seja o Japão ou a Noruega, e a organizações internacionais.

  Por vezes podem até recorrer a agências de comunicação para campanhas pontuais, mas melhor será se dispuserem de recursos minímos permanentes para dar resposta aos media.

  Desnecessário será dizer que Macau facilita ainda o contacto com a China, uma potência que tem vindo a alargar a sua rede de interesses. O vasto mundo da China está muito para além de Macau, mas o que importa é que face a Pequim, bem como ante os Estados Unidos, importa definir especificamente o que se pretende.

  Vale o mesmo para as agências especializadas das Nações Unidas e organizações não-governamentais estrangeiras e nacionais vitais para projectos de desenvolvimento.

  Por todas estas razões não é conveniente que o aparelho de estado timorense continue excessivamente dependente de organizações de voluntariado como a ETAN, que, sublinhe-se, realizou e realiza um notável trabalho, para produzir e fazer circular informação.

  O meritório serviço de difusão destas organizações ou de entidades religiosas não exime o estado das suas obrigações de facultar directamente ou através da media informação aos cidadãos da República Democrática, às comunidades timorenses em Portugal ou na Austrália, a jornalistas estrangeiros, a outros estados e instituições internacionais.

  Apesar da turbulência do pós-independência Timor-Leste ainda conta com um grande capital de simpatia, mas não se deixem levar pela autocomplacência.

  Têm pouca gente qualificada no aparelho de estado para produzir e elaborar informação que frequentemente exige grande rigor técnico.

  Os media timorenses, públicos ou privados, estão ainda no início do caminho para, a pouco e pouco, cumprirem funções de escrutínio, crítica, ou divulgação de informação útil.

  As vossas elites são muito escassas, sensivelmente metade da população subsiste abaixo da linha de pobreza, o crescimento demográfio anual é excessivamente elevado atingindo os 2,9%.

  Portanto, tudo é difícil e a comunicação com o exterior, que é o assunto em que tenho particular competência para falar, ressente-se disso.

  Os quadros timorenses que possam intermediar com o estrangeiro dominam sobretudo o bahasa, poucos, demasiado poucos, o português e o inglês.

  Nem sequer sei se existe algum levantamento sobre as capacidades linguísticas, escritas e faladas, da administração timorense e nos media.

  Persiste uma grande dependência da cooperação internacional estatal ou não-governamental.

  Esta escassez de pessoal, as infraestruturas de comunicação extremamente deficientes ou quase inexistentes em boa parte do país, obrigam a um esforço tremendo para definir prioridades e não desperdiçar os escassos recursos disponíveis.

  À míngua de gente qualificada pode, ainda, vir a ocorrer um fenómeno altamente negativo e que, de repente, inquina tudo.

  Falo da promiscuidade, da rotação acelerada, do hoje ajuda-me tu que amanhã pago eu o favor, enfim, das transferências de quadros das estruturas de comunicação do estado para empresas privadas, com retorno garantido e vice versa.

  Esse vai e vem entre sectores públicos e privados, mesmo quando sujeito a legislação rigorosa, dá azo a imensos abusos e alimenta as piores suspeitas.

  Em Portugal, digo-o francamente, confrontamo-nos com uma realidade confrangedora nessa matéria.

  Fico por aqui e não lamento ter essencialmente destacado problemas, insuficiências, dúvidas, perplexidades, apesar de se ver por aí imensa coisa boa.

  Haja alguém! É para isso que os amigos servem, ensinou-me o padre Xico.

  Na torna-viagem, dizia ele, de tanta discussão talvez algo de bom venha à luz do dia.

  Espero bem que sim.

 Obrigado.

Comunicação ao Seminário de Comunicação: "Interacção com os Media"
Díli, Salão do Ministério dos Negócios Estrangeiros
23 de Março de 2013

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Um genocídio como outro qualquer



   Pastores cuvales
   Deserto do Namibe, 1935-1939
   Foto Helmano Costa, ICCT 


Quem pouco fala não diz nem bem nem mal e o morto no caixão não tem voz activa.
"Ondula, Savana Branca" (1982)
 Ruy Duarte de Carvalho

   A batida do cabo-de-guerra Abel de Abreu Sotto-Maior à tribo cuvale começou nos finais de 1940 e, em Fevereiro do ano que sobreveio, estes pastores do sul de Angola estavam subjugados, seu gado disperso, e mais de três mil homens, mulheres e crianças cativos da autoridade portuguesa na última investida de pacificação antes de outra revolta, desta vez fatal, deflagrar bem a norte em 1961.

   Ainda assim, umas centenas de mortes descontadas à savana, melhor foi a sorte dos cuvales do que a dos seus patrícios hereros chacinados às ordens do governador Heinrich Goering na colónia alemã do Sudoeste Africano nos anos de devastação que se arrastaram de1904 a 1908.

  A chacina desencadeada pelo pai de Hermann Goering, o futuro marechal do Reich hitleriano, consta dos anais dos extermínios por ordem estatal que actualmente se enquadram no cadastro de genocídios.

   Só em Janeiro de 2004 o governo de Berlim lamentou oficialmente "um passado infeliz", mas a Alemanha continua a contestar o pagamento de indemnizações aos descendentes dos quase cem mil chacinados.

  O processo judicial aberto nos Estados Unidos em 2001 continua o seu curso.

  A memória dum massacre é um espectro sempre presente. Paira sobre savanas e desertos e tão cedo também não deixará de assombrar as montanhas dos Balcãs por mais que o finjam ignorar as chancelarias.   
  
                                Genocídio na letra da lei

   Do genocídio como conceito e letra de lei sabe-se que tudo deve à persistência do jurista judeu polaco Raphael Lemkin.

  Inicialmente chocado com o massacre dos arménios na Turquia durante a I Guerra Mundial e dos assírios às mãos de árabes e curdos no norte do Iraque em 1993, Lemkin acabaria, desgraça do destino, por teorizar a chacina de judeus desencadeada pelos nazis como acto de genocídio.

  Na lógica de Lemkin, a destruição dos fundamentos da vida de uma entidade nacional seria equivalente a um genocídio, mas o que passou para a "Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio", adoptada pelas Nações Unidas em 1948 e em vigor desde 1951, foi a tipificação de qualquer acto cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

  Os termos restritos da Convenção englobam os actos, considerando apenas estes grupos, de matar e causar lesão grave à integridade física ou mental de pessoas.

   Acresce o impor intencionalmente condições de existência capazes de ocasionar a destruição física total ou parcial do grupo estigmatizado.

  A adopção de medidas destinadas a  impedir nascimentos no seio do grupo destinado à matança e a transferência forçada de crianças para outra entidade constam, ainda, na definição da ONU como prática de genocídio.

                                         "Et tu quoque" 

  Nesses lapidares ditos latinos do "até tu" também que assombram o Ocidente coube agora à atormentada Sérvia escapar ao pior, mas a Bósnia multiétnica do passado não reviverá apesar das quimeras de políticos e diplomatas.

  A mais alta instância judicial das Nações Unidas, o Tribunal Internacional de Justiça, absolveu, na segunda-feira, o estado sérvio da prática de genocídio na guerra da Bósnia Herzegovina.

  A crer nos dados mais elaborados em data, por parte do Cento de Pesquisa de Documentação de Sarajevo, a guerra de 1992-95 saldou-se em cerca de 100 mil mortes, sendo 66 por cento das vítimas muçulmanas, 25 por cento sérvias e quase 8 por cento croatas. 

  O tribunal de Haia considerou, no entanto, que a Sérvia não cumpriu com a obrigação legal de evitar genocídio no caso particular do massacre de 8 mil muçulmanos em Srebrenica em Julho de 1995.

  O estado sérvio, à altura presidido por Slobodan Milosevic, foi, assim, exonerado de cumplicidade no crime de Srebrenica. Nem neste caso foi possível provar a intenção genocidária.

  Temos, portanto, um crime, mas não se vislumbra um estado culpado.

  A culpa fica por conta das milícias sérvias da Bósnia lideradas por Radovan Karadzic e Ratko Mladic, a monte desde Julho de 1995 data em que o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia ordenou a sua detenção.

  Neste particular, a decisão da mais alta instância judicial da ONU considera a Sérvia culpada de não cooperação com o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia por não ter extraditado Ratko Mladic acusado de genocídio.

  A decisão, que é definitiva, determina, ainda, que a Sérvia, estado sucessor da antiga República Federal Jugoslava que incluiu até o ano passado o Montenegro, não tem de pagar indemnizações monetárias à Bósnia-Herzegovina que apresentou a queixa em 1993.

  O Tribunal Internacional de Justiça julga desde 1946 exclusivamente disputas entre estados e as suas deliberações não têm carácter vinculativo.

                            A quimera depois do genocídio                                       

   Obviamente, a chacina em massa é prática velha como o mundo e vai muito para além da mera letra da Convenção da ONU, mas esta decisão judicial levanta questões delicadas, aumentado desde já a pressão sobre Belgrado para a captura de Mladic que durante muito tempo se refugiou em território sérvio e cujo paradeiro é agora incerto.

  A NATO que vai para 12 anos tenta capturar Karadzic na Bósnia também não sai muito bem vista e a oferta feita em 2006 a Belgrado para integrar a Parceria para a Paz, continua a fazer pouco sentido enquanto a Sérvia não cumprir as suas obrigações legais de plena cooperação com o Tribunal Penal Internacional.

  Em rigor a situação criada pelas forças nacionalistas na Sérvia condena o país a uma situação comparável à do Sudão de Omar al Bashir que recusa terminantemente entregar à justiça internacional suspeitos de crimes de guerra e contra a humanidade no Darfur.

  A União Europeia, assoberbada com a questão do Kosovo, não pode, por sua vez, ignorar mais este engulho diplomático nas negociações com Belgrado para um eventual acordo de estabilização e associação.

   Os acordos assinados em 1995 em Dayton estão ainda longe de estar cumpridos na Bósnia onde cresce a contestação sérvia à partilha de soberania com croatas e muçulmanos.

  Milorad Dodik, o primeiro-ministro sérvio, exige a realização de um referendo que permita à República Sérvia desvincular-se do estado bósnio à semelhança das aspirações independentistas dos albaneses do Kosovo.

   A imposição de uma presidência rotativa e de um governo central sobrepostos às estruturas separadas da Federação Croata e Muçulmana e da República Sérvia, apesar da criação de um sistema judicial e alfandegário comuns e de estruturas policias e de defesa unificadas, revela-se por demais artificial e dificilmente sobreviverá à dinâmica criada pela separação do Kosovo.

   O modelo imposto pelos Estados Unidos e a União Europeia à Bósnia-Herzegovina é impraticável, contraditório com o apoio de Washington e de países como a Alemanha ou a Grã-Bretanha às reivindicações de independência do Kosovo, e, consequentemente, melhor seria assumir a partilha territorial.

   O genocídio resumido ao massacre de 8 mil homens e rapazes em Sarajevo agasta muçulmanos e também croatas e, para maior humilhação, o veredicto de Haia foi conhecido precisamente no dia em que o ministro da Defesa da Holanda, Henk Kamp, condecorava em Assen, pelos seus feitos numa "missão extraordinariamente difícil", militares do batalhão que em Julho de 1995 assistiu impotente ao massacre.    

   Deixar os mortos ter voz activa e não tentar impor a coexistência de gentes que, presentemente, têm ainda muita dor e ressentimento a separá-las é um imperativo moral e político.


Jornal de Negócios
1 de Março 2007

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sexta-feira, 12 de abril de 2013

Uma epidemia na China





   Uma década passada sobre a erupção da "Síndrome Respiratória Aguda Severa" (SARS) a China confronta-se com novo surto de epidemia aviária, mas as autoridades de Pequim estão desta feita a cooperar com a "Organização Mundial de Saúde" (OMS) para conter a propagação do vírus.

   O H7N9 tinha infectado 24 pessoas, oito das quais morreram, até terça-feira em Xangai e nas províncias de Zhejiang, Jiangsu e Anhui no leste do país.

  O vírus aparenta poder vir a ser transmitido de aves para mamíferos, como porcos, mas não sofreu mutações que propiciem a transmissão entre seres humanos.

  A primeira morte foi assinalada a 7 de Fevereiro, a segunda a 4 de Março, e a informação oficial da "Comissão para a Saúde Nacional e o Planeamento Familiar", entidade sucedânea do "Ministério da Saúde" desde o mês passado, foi divulgada a 31 de Março.

  Ao contrário do ocorrido quando a epidemia da SARS eclodiu no final de 2002 em Guangdong -- a província do Sul com forte concentração de explorações suínas e aviárias adjacente a Macau e Hong Kong -- as autoridades chinesas forneceram a informação disponível à OMS e a países vizinhos, incluindo Taiwan, tendo alertado a população para os riscos sanitários.

  A epidemia irrompeu precisamente quando a "Assembleia Nacional Popular" formalizava a nomeação como chefe de estado de Xi Jinping e coincidiu com um novo escândalo de saúde pública motivado pelo aparecimento de mais de 6 mil porcos mortos no Huangpu, rio que abastece Xangai.

   Tal como sucedeu noutros países atingidos por epidemias, caso da cólera no Peru ou de casos localizados de lepra na Índia nos anos 90, ou, ainda, da encefatopatia espongifrome bovina detectada na segunda metade da década de 80 no Reino Unido, as autoridades chineses mostraram-se muito relutantes em reconhecer a gravidade da SARS.

   A ocultação de informação e a falta de cooperação de Pequim com a OMS, que entre Março e Julho de 2003 conseguiu conter a epidemia, revelaram-se muito prejudiciais para a imagem e respeitabilidade da China.

   Em termos de saúde pública e credibilidade de Pequim, a epidemia da SARS -- que causou 774 mortes (cerca de 10% das pessoas infectadas) na esmagadora maioria na China e na Região Administrativa Especial de Hong Kong, além de prejuízos estimados em 40 mil milhões de dólares – foi o equivalente do Tchernobil soviético, obrigando o regime a adoptar maior abertura no tratamento noticioso em caso de crises sanitárias com repercussões internacionais.

  A presente epidemia levou ao encerramento de mercados aviários nas províncias afectadas, apesar de ainda não terem sido anunciadas medidas de compensação para os produtores, e levou Hong Kong, por exemplo, a introduzir testes veterinários de forma a obstar à importação de aves contaminadas.

  Alguns especialistas alertaram para o risco do H7N9 poder ser facilmente transmissível à imagem da estirpe do vírus aviário H5N1 que desde 2003 infectou mais de 600 pessoas causando a morte de 60% dos contaminados.

  A OMS considera, contudo, que, presentemente, se está longe de uma situação semelhante à das mutações do H1N1 de origem suína que ao mesclar-se com vírus humanos e aviários desencadeou a pandemia de gripe de 2009 responsável por 294 500 mortes.

   Investigações preliminares do Laboratório de Microbiologia Patogénica da "Academia de Ciências" de Pequim indicam que o vírus resulta de uma mistura de estripes encontradas em aves selvagens oriundas do Sul da península coreana e em galinhas e patos da região do delta do rio Yangtze.

   As populações suínas aparentemente não estão infectadas pelo H7N9, mas o vírus ao passar directamente de aves para seres humanos é altamente letal, segundo as informações divulgadas esta semana pelos especialistas chineses.

   Os riscos de alastramento da epidemia são difíceis de avaliar, mas um factor merece desde já ser salientado: pela primeira vez, as autoridades chinesas deram resposta expedita a uma crise sanitária capaz de afectar países vizinhos e enveredaram por uma cooperação plena com a OMS.


Jornal de Negócios
10 Abril 2013

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Hipertensão nuclear




 
   A retórica de guerra na península coreana vai ter um impacto económico e financeiro na Europa que é perigosamente subestimado.

   A nova ronda de ameaças por parte de Pyongyang tem como pretexto imediato as manobras militares anuais das forças sul-coreanas e norte-americanas que Washington não pode deixar de realizar para fazer prova das suas garantias de segurança na península e em todas as regiões asiáticas onde se faz sentir o incremento da capacidade de projecção de força de Pequim.

   A adopção de mais sanções económicas e financeiras pela ONU após a realização do terceiro teste nuclear norte-coreano em Fevereiro e a necessidade do jovem Kim Jong-un, chegado ao poder em Dezembro de 2011, consolidar uma imagem de força entre os militares na tradição dinástica do avô Kim Il-sung e do pai Kim Jong-il, contam igualmente como factores agravantes da presente crise.

    Testar a nova presidente em Seul, Park Geun-ye - filha do antigo ditador militar Park Ghung-hee - eleita em Dezembro, é outra vertente da estratégia da liderança norte-coreana que se mostra cada vez perplexa ante os sinais que chegam do sul.

  Desde o início da democratização no Coreia do Sul no final dos anos 80 a política dos sucessivos presidentes tem variado entre a adopção de uma linha intransigente ante a ditadura nortenha e propostas de apaziguamento.

   O antigo dissidente Kim Dae-jung, depois de eleito chefe de estado em Dezembro de 1997, lançou a chamada política do "sol que brilha" inspirando-se nas longínquas fábulas do grego Esopo.

   O soprar de um vento forte nunca levará um homem desconfiado a largar o seu manto de abrigo, mas o sol que brilha acabará por convencê-lo a gozar o calor e desta fábula se partiu para uma tentativa de cooperação e criação de confiança mútua com a paranóica ditadura de Pyongyang herdeira de um complexo de taras das piores tradições racistas e nacionalistas coreanas, além de perversões ideológicas confucianas e stalinistas.

  A rápida expansão da economia sul-coreana que a partir da década de 70 deixou para trás o vizinho do norte, o colapso soviético, as reformas económicas na China, a crise de abastecimentos dos anos 90 desencadeando uma fome que vitimou mais de um milhão de norte-coreanos, davam algum sentido a esta inédita tentativa de aproximação desde o final das hostilidades em 1953.

  Um factor deitou por terra a iniciativa numa altura em que o cepticismo sobre a eventualidade da reunificação da península já predominava entre a maioria dos 50 milhões de sul-coreanos, sobretudo cidadãos com menos de 40 anos que rejeitam uma política de confronto, mas se desinteressam da sorte da população a norte, temendo os elevados custos da absorção de 24 milhões de compatriotas.

  Kim Jong-il nunca perdera de vista que só a posse de armas nucleares poderia evitar que os Estados Unidos voltassem a considerar a possibilidade do uso de bombas atómicas contra Pyongyang tal como o general Douglas MacArthur propusera ante o avanço das tropas norte-coreanas e chinesas durante a guerra iniciada em 1950 por Kim Il-sung para descontento do presidente Harry Truman que acabou por demitir o herói da Guerra do Pacífico em Abril de 1951.

   A ameaça nuclear de MacArthur, o bombardeamento arrasador do Norte da península, o arriscado exercício de manipulação das divergências entre os patronos chineses e russos, acentuaram os traços paranóicos da beligerância de Pyongyang e tiveram um papel essencial no desenvolvimento de um projecto militar nuclear, com cumplicidade da rede clandestina do paquistanês Abdul Khan, que culminou no teste de 2006.

  Desde então a Coreia do Norte é invulnerável a ameaças militares porque dispõe de capacidade de retaliação contra a Coreia do Sul e o Japão, sendo a diminuta dimensão do arsenal irrelevante ante a sua potencial e insuportável capacidade destrutiva.

   Tal como Israel, Índia e Paquistão, a Coreia do Norte ignorou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e tornou-se uma potência intratável que, apesar de depender da China para fornecimentos de combustível e alimentos, joga por sua própria conta exigindo que Washington assine um tratado de paz pondo termo ao estado técnico de guerra, retirando tropas e arsenais da península, provendo ajuda gratuita económica e financeira, além de garantias de segurança.

   O risco de escalada não é de subestimar porque, por exemplo, a presidente Park não pode arriscar oferecer uma imagem de inibição e temor de uso da força militar conforme sucedeu ao seu antecessor Lee Myung-bak na sequência do bombardeamento pelo Norte da ilha de Yeonpyeong em Novembro de 2010, e Kim III mal chegado aos trinta anos ainda tem de puxar lustro aos galões militares.

   A questão maior, contudo, nem se joga na península coreana, onde China, Rússia e Japão têm, também, todo o interesse em evitar um conflito militar, mas sim no Médio Oriente.

   A invulnerabilidade da Coreia do Norte é precisamente o estatuto a que aspira o Irão e esta nova vaga de ameaças no extremo-oriente é um baço vislumbre do que poderá acontecer de pior se Teerão concretizar a obtenção de armamento nuclear.

  Por vontade de ignorar as piores opções possíveis subestima-se o efeito altamente negativo que a retórica de guerra no extremo-oriente tem vindo a causar sobre outra intratável crise no Médio Oriente.

   Seja dentro em breve ou passe ainda mais um ano ou dois nem Israel, nem os Estados Unidos podem permitir-se acabar encurralados num impasse similar ao que ocorre na península coreana.

  Isso implica, em última análise, o uso da força militar e vai ter consequências muito negativas na Europa.

  Neste caso vale o "de te fabula narratur" com que o romano Horácio advertiu incautos alheios às consequências de tramas tenebrosas que lá longe os envolvem e arrastam.

  Este transe coreano fala de nós e vai custar-nos caro.


Jornal de Negócios
3 Abril 2013

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Perdas e danos





   O que ninguém irá esquecer é que os governos da eurozona começaram por aceitar o confisco parcial de todos os depósitos bancários em Chipre para angariar fundos que permitissem manter num nível inferior a 100% do PIB a dívida de Nicósia de forma a garantir a participação do FMI num resgate.

   A derradeira versão do acordo salvaguardou a garantia que alegadamente cobre na eurozona os depósitos até 100 mil euros, mas estabelece um novo princípio: cabe em primeiro lugar aos investidores e depositantes de montantes superiores a 100 mil euros assumirem perdas em caso de falências, reestruturações e recapitalizações bancárias.

   O presidente do Eurogrupo, bem como comissários de Bruxelas, responsáveis do BCE e governantes de diversos estados, tentam precisar agora que esta regra, que Jeroen Dijsselbloem começou por apresentar como modelo a aplicar genericamente, não obsta à procura de outras soluções para situações específicas.

   Investidores particulares e institucionais passaram, contudo, a ter de assumir como risco de aplicação de capitais na eurozona o precedente cipriota para reestruturação bancária, sobretudo se se confirmarem perdas na ordem dos 40% para detentores de depósitos acima de 100 mil euros no "Banco de Chipre" e "Laiki", conforme admite o ministro das Finanças cipriota Michalis Sarris.

   Encerramento de bancos por longos períodos -- desde dia 15 de Março em Chipre --, restrições a levantamentos e desconto de cheques, imposição de controlos sobre movimentos de capitais foram, igualmente, aplicados de forma inédita e sem contemplações e poderão ser repetidos a muito curto prazo na Eslovénia.

  As condições do resgate cipriota, obrigando desde logo à angariação de 5,8 mil milhões de euros por parte de Nicósia, impõem a redução drástica de um sector financeiro hipertrofiado, mas ainda assim menor do que o do Luxemburgo ou Malta.

   O corte radical na oferta de serviços que representam mais de oito vezes o PIB cipriota acarreta uma contracção económica significativa, mas, independentemente das consequências sociais, prevaleceu o imperativo de evitar a bancarrota e saída do euro de um estado que viu o seu sector bancário fortemente atingido pelo colapso grego de 2010.

   A directora do FMI, Christine Lagarde, numa vaga previsão indicou que a dívida pública cipriota manter-se-á na ordem dos 100% do PIB até ao final da década, sinal de que o empréstimo inicial de 10 mil milhões de euros, passível de ter de vir a ser reforçado, implica uma cura de austeridade pesada e não exclui a necessidade de novos resgates.

   Uma das consequências da urgência na angariação de fundos que irá assoberbar os governos cipriotas passa pela degradação da posição negocial de Nicósia nas negociações sobre a futura exploração dos seus depósitos de gás natural "off shore" e os diferendos sobre fronteiras marítimas com a Turquia.

  As hipóteses de avanços nas negociações para a reunificação da ilha dividida entre gregos e turcos desde 1974 são praticamente nulas e os diferendos entre a UE e Ancara sobre Chipre irão agravar-se.

  As garantias de liquidez para manter Chipre no euro pressupõem, ainda, a reestruturação dos termos do empréstimo concedido por Moscovo a Nicósia em 2011 de 2,5 mil milhões de euros. É de esperar que o Kremlin tente salvaguardar interesses de particulares e empresas russas à revelia dos compromissos assumidos no plano de resgate, avivando focos de tensão entre diversos estados da UE, Chipre e a Rússia.

   Sucessivas crises têm evidenciado a ausência de alternativas entre os 17 às políticas de reequilíbrio orçamental e redução da dívida soberana gizadas por Berlim.

   Os governos e os mais importantes partidos de oposição da Finlândia ou Holanda partilham a recusa alemã em aceitar mutualizações de dívida ou transferências líquidas para estados deficitários na eurozona, contando com largo apoio dos seus contribuintes e eleitores, e assim se vai cavando um fosso cada vez maior entre países com dinâmicas económicas e financeiras muito divergentes.

  Da discussão da supervisão bancária às reformas institucionais para unificação de políticas financeiras e económicas prevalecem posições defendidas por Berlim e inevitavelmente uma fronda anti-alemã, com fortes laivos populistas de extrema-direita e extrema-esquerda, ganha corpo pondo em causa os equilíbrios de toda a União Europeia além do espaço da moeda única.

  A subestimação ou obstinada recusa em ponderar custos políticos e estratégicos de opções financeiras (no caso cipriota os efeitos sobre as relações com a Turquia e as negociações para reunificação da ilha foram deliberadamente postos de lado), o desprezo pelo sofrimento social imposto por estratégias destruidoras de emprego em larga escala, a incapacidade para superar o persistente défice democrático das instituições europeias, revelam a extrema mediocridade dos actuais dirigentes da maior parte dos 27 e um acumular dramático de perdas e danos.



Jornal de Negócios
27 Março 2013

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Vale tudo



   Mais depressa se esquece a morte do pai do que um atentado ao património, conforme assevera o dito de Maquiavel, e, portanto, é crível que quaisquer promessas de garantias bancárias na zona da moeda única passem a vir a ser acolhidas com o mais sarcástico cepticismo.

   A quebra de confiança que sustenta o sistema bancário por via do confisco imposto a Chipre é irremediável e encontra como primeira justificação a impossibilidade do FMI poder aceitar estatutariamente uma dívida pública que salte dos actuais 84% para níveis incomportáveis próximos dos 140%, ainda que 100% seja tido por aceitável num período que se pode estender até 2020.

   Na eurozona, sobretudo na Alemanha, mas também na França, persiste entretanto a recusa de transferências financeiras directas para estados insolventes, seja por défices orçamentais derivados de investimentos e despesas excessivas ou colapso de esquemas bancários especulativos.

   Optou-se, assim, pela novidade de impor perdas à totalidade dos depositantes bancários depois de investidores privados terem assumido prejuízos na reestruturação parcial da dívida grega no ano passado.

   A crise cipriota, entre outras consequências, aniquila para os tempos mais próximos qualquer capacidade da UE para mediar o conflito entre gregos e turcos na ilha dividida desde 1974 e confirma o bloqueio, para gáudio de Berlim, Paris ou Viena, nas negociações de adesão da Turquia.

   A parte grega, sob pressão de Atenas, foi admitida no bloco de Bruxelas em 2004 para compensar a integração de estados saídos da derrocada comunista e com a hipertrofia do seu sector bancário, que a UE pretende reduzir em cinco anos de 8% para 3,5% do PIB, veio a revelar-se um dos elos mais fracos na exposição à dívida grega.

  A solução encontrada pelo Eurogrupo partiu do cálculo incerto de que um montante de 17,5 mil milhões de euros, praticamente equivalente aos 18 mil milhões de euros do PIB, seriam suficientes para evitar a bancarrota de Nicósia.

  O Mecanismo Europeu de Estabilidade poderia com 100 mil milhões de euros manter o nível de dívida próximo dos 100% do PIB, assegurando a comparticipação do FMI, mas tal implica que 5,8 mil milhões de euros sejam, por sua vez, arrecadados pelo governo de Nicósia que ainda não pode alienar futuras receitas da exploração de gás natural.

   O confisco bancário, além do aumento do imposto sobre capitais de apenas 10%, o mais baixo da eurozona, para 12,5% ao nível do praticado na Irlanda, foi a eleição do Eurogrupo que ignorou propositadamente interesses russos.

   Moscovo concedeu no final de 2011 um empréstimo a Chipre de 2,5 mil milhões de euros a 24 meses depois de Nicósia ter perdido o acesso ao mercado de financiamento e agora a Rússia afirma ser prejudicada directamente por decisões injustas, tecnicamente medíocres e perigosas.

   A forte presença russa na metade grega da ilha desde a queda do comunismo é resultado da busca de garantias de segurança para capitais de origem lícita e ilícita, do baixo nível de taxação e da permissividade dos controlos bancários e financeiros que só após a adesão ao euro em 2004 começaram a ser adaptados ao grau de exigência da UE.

   Dos 70,15 mil milhões de euros à guarda da banca no final do ano passado (mais 1,2% do que em 2011) 43,3 mil milhões cabiam a cipriotas, 5,3 mil milhões eram oriundos da UE (quebra de 1,2%) e 21,5 mil milhões tinham outras origens.

  A maior parte dos depósitos e investimentos estrangeiros, directos ou através de particulares e empresas cipriotas, é reconhecidamente de origem russa.

   As autoridades de Moscovo rejeitaram em consequência medidas de confisco bancário que afectam interesses legais, dúbios e criminosos de particulares e empresas russas que irão agora buscar refúgio no Dubai ou Singapura.

   Em termos de política externa russos e turcos confirmam as piores suspeitas quanto à UE e o euro sai politicamente cadáver da desventura do falhado resgate de Chipre.

Jornal de Negócios
20 Março 2013

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/colunistas/joao_carlos_barradas/detalhe/2013_03_19_vale_tudo.html