sábado, 25 de agosto de 2012

Miguel Esteves Cardoso: um perfil (em 2001)

Dizer por ser dito. Desdito. De ora em diante dizer por ser desdito."
(Samuel Beckett em tradução de Miguel Esteves Cardoso)



   Miguel Esteves Cardoso é o que se dá a ver: pai de duas gémeas, casado o ano passado, em segundas núpcias, com enlace fotografado na ternura outonal de "O Independente", indefectível de Beckett, da poesia de João Miguel Fernandes Jorge, monárquico e conservador, filósofo político doutorado pela Universidade de Manchester, ignorado na candidatura ao Parlamento Europeu, boémio convertido ao recato, cara de menino de 46 anos com talento para dar e vender, saltarilho de sete instrumentos.

É como se fora um João da Ega, com tiques de Fradique e nostalgias de Jacinto, que ora contemporiza, ora exulta na oferenda à choldra de esparsos das "Memórias de um Átomo". É um puzzle queirosiano devoto de António Vieira.

Qualidades irónicas, recomendáveis e prolixas que lhe valem ódios e louvações: Luiz Pacheco, em 1997, elogioso para com o cronista irreverente e mordaz, desiludido com o autor de alegados romances "aldrabados e mercantis", apostrofou-o de "traquinas contentinho". Muitos anos antes, em 1982, Fernando Assis Pacheco assinalava um talento evidente, "com o único senão de fazer uma legião de invejosos."

A polarização é compreensível, sobretudo, agora, ainda que ignorando o recuo intelectual (sic) que permite à peroração vigente "equacionar as metodologias": no início dos anos europeus de 80, quando MEC se deu a conhecer " na vertente académica pelos seus estudos na "Análise Social", na polémica subversiva da Escrítica Pop na "Música e Som", "O Jornal" e o "Se7e", depois numa torrencial deriva discográfica, teatral, radiofónica, cronística ", um fotógrafo reputado perguntou-me a certa altura: "Tens a certeza que é o mesmo gajo?" Até hoje consta que sim; há provas de que a sua função "não é tanto ser esperto, como despertar."

MEC é, de facto, o irreverente, inconsequente, contundente e pertinaz abusador das "Noites da Má-Língua", da SIC, o racionalista contraditor das divagações de Agostinho da Silva, nas "Conversas Vadias", da RTP, o guionista altamente dançável do "Trópico de Dança" a que João David Nunes deu voz na Rádio Comercial, o dramaturgo de "Os Homens", para os palcos de Graça Lobo, o copydesk das "Grandes Opções do Plano" de Aníbal Cavaco Silva, o homem do argumento com José Fonseca Costa d` "A Mulher do Próximo", o inapelável crítico que na última página do primeiro caderno do "Expresso" chocalhava a modorra ao lembrar, a propósito de certas "Coisas", ser "típico que no mercado português tanto os «Provisórios» como os «Definitivos» custem exactamente o mesmo preço."




Foi, também, MEC (ainda e sempre ao arrepio da elite intelectual portuguesa dividida, ao que constatava, então, nos tradicionais "três grupos de influência: os de influência francesa, os de influência francesa e ainda os de influência francesa") quem promoveu, entre 1983 e 1985, a editora discográfica Fundação Atlântica, com Pedro Ayres de Magalhães e Francisco Vasconcelos. Foram eles a revelar a Sétima Legião, os Delfins, a editar um álbum exclusivo, "Amigos em Portugal" dos Durutti Column. Constam do curriculum de MEC as letras para o primeiro EP a solo de Né Ladeiras, "Alhur", editado em 1983. Dois anos antes, o single mais vendido por cá tinha letras de MEC e música de Ricardo Camacho para a voz de Manuela Moura Guedes, a de "Foram Cardos, Foram Prosas".

MEC traduziu q.b., sobretudo Beckett, abespinhou-se com a versão portuguesa do "Ulysses" de James Joyce, pelo académico brasileiro António Houaiss, louvou Amália, está farto de fazer coisas.

Em 1987 deu o nome para director de "O Independente", enquanto o subdirector Paulo Portas arrematava a ofensiva política. Pelo meio ignorou as acusações de diletantismo fascizante para fundar a "K", em 1990 (e só as prosas de Vasco Pulido Valente na revista mais que justificaram a aventura), trocou de director para subdirector, deixou o semanário, enquanto Portas levava o PP por conta.

Voltou a director de "O Independente" feito escaparate de poesia, fotografia e prosas (Agustina, naturalmente, mas também João Bénard da Costa, Alfredo Saramago e Maria de Lourdes Modesto levaram o carinho e destaque a que nenhum director se arrisca) para deixar, outra vez, a redacção atónita, em descalabro de vendas, na Primavera deste ano.

Enquanto não se aventura à autobiografia ("bem escrita é um género muito respeitável", segundo diz) de MEC sabe-se que da língua materna inglesa guardou o que ostenta de melhor, depois de desfrutar o que havia para gozar como menino "prodigiosamente criado".



 Afiança que desistiu da poesia aos 22 anos e vai escrevendo romances e romances, mas, até agora, só riscou três best-sellers: "O Amor é Fodido" (1994), "A Vida Inteira" (1995) e "Cemitério de Raparigas" (1996).

Das crónicas, esquecida a espuma pop, ficaram (com mais do que a conta certa de textos dignos de antologia) "A Causa das Coisas" (1986), "Os Meus Problemas" (1988), "As Minhas Aventuras na República Portuguesa" (1990) e "Último Volume" (1991).

Tudo ponderado, MEC não é para usar. Está por aí como as nuvens na paisagem portuguesa.

Publicado em Netparque
16 Agosto 2001

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