quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A floresta de Putin



   As florestas e as turfeiras ardem em boa parte da Rússia europeia e, na angustiada busca de responsáveis que convulsiona o país, o Kremlin não se sai bem.
 
   Na pior onda de calor de que há registo na Rússia nos últimos 130 anos, as temperaturas estão bastante acima da média em zonas que vão do Leste da Sibéria para Sudoeste, atingindo valores recorde nas regiões a Norte e Noroeste do Mar Cáspio.

Os extremos próprios de um clima continental fazem-se sentir este Verão com particular intensidade nas províncias de Nijni-Novgorod, Moscovo e Voronej, mas os fogos florestais, que no início da semana fustigavam 17 das 83 unidades administativas da Federação, além do irremediável alarme e pânico sociais que causaram, ameaçam vir a ter repercussões políticas.

Apesar de três anos de seca nas regiões meridionais e na bacia do Volga, o risco de incêndios, que alastraram numa área superior a 7.400 quilómetros quadrados, foi menosprezado.

Bases militares foram destruídas; instalações nucleares e refinarias ainda se encontram em risco; e a perda de património e de vidas por efeito directo dos incêndios, além da sobremortalidade provocada pelo calor, é significativa.

Os prejuízos directos da vaga de incêndios, numa estimativa preliminar divulgada na terça-feira pelo diário "Kommersant", ultrapassam 11 mil milhões de euros, cerca de 1% do PIB.

Seca e fogos
A calamidade é menor do que os fogos de 1972, que tornaram a URSS definitivamente dependente de importações de cereais - e nem tem comparação com os grandes incêndios de 1915, no final da era imperial, que fustigaram 1,6 milhões de quilómetros quadrados -, mas agravou as consequências da seca.

As exportações de cereais russas foram suspensas de 15 de Agosto até ao final do ano, apesar da medida poder ser revista em função dos resultadas das colheitas de Outono.

É, no entanto, improvável que tal aconteça, pois, em 2009, a Rússia, com um consumo interno de 75 milhões de toneladas métricas de cereais, produziu 97,1 milhões de toneladas, mas para este ano a última previsão do Ministério da Agricultura aponta para uma colheita entre 60 a 65 milhões de toneladas, sendo as actuais reservas de 24 milhões de toneladas.

Até os media controlados pelo Estado não conseguem sufocar um número crescente de críticas ao governo. Geógrafos, silvicultores, economistas e ecologistas expressam uma opinião unânime: o Estado demitiu-se das suas responsabilidades.

O colapso da prevenção
O sistema soviético de vigilância florestal entrou em colapso no final dos anos 80, quando silvicultores e guardas-florestais sucumbiram à crise.

A maior parte do corpo de 70 mil guardas-florestais passou a subsistir ou fazer fortuna à custa do abate de árvores nas áreas sob sua supervisão.

A corrupção generalizada levou à adopção de medidas radicais para reconverter o sector industrial, mas à custa da preservação dos 800 milhões de hectares de florestas que cobrem 47% da superfície da Federação Russa.

Nenhum ministério ou departamento federal tem actualmente a tutela efectiva da protecção das florestas, e um código adoptado em 2007 atribuiu tal responsabilidade aos governos regionais e a concessionários de explorações florestais.

O desaparecimento de um sistema federal de protecção, incluindo o corpo de guardas-florestais reduzido a 12 mil vigilantes com esporádica presença no terreno, prejudicou sobretudo as regiões europeias, que contam com um quarto da cobertura florestal do país e onde as actividades industriais do sector têm menos importância do que na Sibéria e no Extremo-Oriente.

Nas regiões de exploração florestal intensiva siberianas e do Extremo-Oriente, apesar do abate ilegal e do contrabando, os interesses privados e das autoridades locais permitiram a manutenção de recursos mínimos para prevenção de fogos.

Os sistemas de vigilância e controlo de fogos claudicam por falta de pessoal (existem apenas 51 mil efectivos do corpo de bombeiros em permanência diária, segundo dados oficiais), monitorização (a cobertura área e via satélite é mínima e sujeita a concorrência comercial) e equipamento (o Ministério para as Situações de Emergência conta somente com quatro aviões anfíbios de grande capacidade para combate a fogos, os Beriev Be-200).

A perversão das trufas
O regime putinista, ao centralizar o poder político, designadamente através da nomeação dos governadores regionais, acabou por desarticular instituições inter-regionais ou federais que pudessem vir a revelar-se como contrapesos ao Kremlin.

À excepção de algumas indústrias estratégicas, sobretudo de hidrocarbonetos e militares, os poderes económicos acabaram por ficar muito mais dispersos e a capacidade de coordenação central na área de protecção de recursos naturais diminuiu significativamente.

As turfeiras que ardem nos arredores de Moscovo são um exemplo acabado de uma política agrícola e florestal perversa que começou no tzarismo, passou pelas agruras do sovietismo, degradou-se ainda mais durante a perestroika e acabou em ruína, no putinismo.

Os níveis freáticos de pauis e pântanos reduziram-se drasticamente desde o século XIX, pondo em risco ecossistemas mais vastos.

A secagem de zonas húmidas palustres não teve, na maior parte dos casos, aproveitamento agrícola ou industrial.

Criaram-se, assim, vastas zonas secas e ao abandono, e a exploração das turfeiras é actualmente residual, sem que tenham sido salvaguardados os sistemas tradicionais de controlo de fogos.

O cheiro da turfa a arder sopra nos Verões no centro da Rússia e não poupa o Kremlin de Vladimir Putin e Dmitri Medvedev.
Jornal de Negócios
11 Agosto 2010

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