sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Morte de um cleptocrata

  



   Uma oferta de acordo extrajudicial levou no passado sábado o procurador-geral da Indonésia Hendarman Supandji ao hospital de Jacarta onde Suharto agoniza.

   A visita do procurador-geral, a pedido do presidente Susilo Yudhoyono, era a derradeira tentativa de salvar a face do estado e do estadista moribundo, mas os familiares do paciente do quarto 534 recusaram considerar um compromisso quanto à acção civil movida por um tribunal da capital.

   Estão em causa 440 milhões de dólares concedidos pelo estado à fundação Supersemar, estabelecida por Suharto, que o antigo presidente terá alegadamente desviado para financiar negócios da família. Outros 1100 milhões de dólares são pedidos a título de indemnização.

   Esta queixa apresentada em Julho é tudo o que resta dos esforços para recuperar os milhares de milhões de dólares que Suharto acumulou ilicitamente ao longo de 32 anos no poder.

                                                   Suharto Inc.

   Os processos-crime contra o general foram abandonados definitivamente em Maio ano passado por o estado de saúde de Suharto não permitir a sua comparência em tribunal.

   O clã Suharto enfrenta o risco de novos processos, designadamente o filho mais novo Tommy – em liberdade condicional desde 2006 depois de ter cumprido quatro anos de uma sentença de 10 anos de prisão por assassínio de um juiz do Supremo Tribunal –, mas as perspectivas são radiosas para os bilionários que fizeram fortuna no regime da Ordem Nova.

   Um montante entre os 15 mil e os 35 mil milhões de dólares terão sido acumulados ilicitamente por Suharto entre 1967 e 1998, segundo um estudo de 2004 da Transparency International, que é a estimativa mais citada e utilizada inclusivamente pelas Nações Unidas e o Banco Mundial na Stolen Assets Recovery Initiative lançada em Setembro.

   Suharto, ao apropriar-se de dinheiros públicos correspondentes a 0,6 por cento, na estimativa mais baixa, ou a 1,3 por cento do PIB, na versão dos 35 mil milhões, durante os anos de expansão da economia indonésia terá assim superado outros cleptocratas de renome como o filipino Ferdinand Marcos (5 mil a 10 mil milhões de dólares entre 1972 e 1986) e Mobutu Sese Seko (cerca de 5 mil milhões de 1965 a 1997).

   A julgar pelas dificuldades da justiça filipina que levou 18 anos para recuperar apenas 624 milhões de dólares depositados por Marcos em bancos suíços a Indonésia muito terá de penar.

   A Suharto Inc., ao contrário de práticas mais frustres de Ferdinand e Imelda Marcos, por exemplo, não recorria ao roubo directo de dinheiros públicos, mas antes, seguindo a tradição de apropriação patrimonial javanesa, criava empresas, preferencialmente em regime de monopólio, e tomava posições em todas as áreas de negócios.

   As parcerias lucrativas passavam pelas associações a interesses estrangeiros e, assim, à altura da queda de Suharto, em Maio de 1998, os seis filhos e filhas, um neto, o irmão de um cunhado e um primo do presidente tinham participações confirmadas em 66 grandes investimentos na Indonésia de empresas europeias, norte-americanas, canadianas, australianas, neo-zelandeses, japonesas e sul-coreanas.

   O emaranhado das fortunas do clã complica-se ainda mais pelas alianças e participações cruzadas nas empresas controladas por velhos associados de Suharto que se tornaram nos principais homens de negócios indonésios a partir dos anos 70, em particular os magnatas de origem chinesa Liem Sioe Liong, Bob Hasan e Prajogo Pangestu.

   Além de investidores estrangeiros, também organizações financeiras internacionais acabaram por aceitar as regras do sistema de corrupção.
Um relatório interno e confidencial do Banco Mundial, vindo a público em Agosto de 1998, estimava que pelo menos 20 a 30 por cento dos fundos para desenvolvimento do orçamento de estado eram desviados para bolsos de funcionários e políticos do regime. Isto no balanço de quase uma década em que as verbas provenientes de ajudas internacionais representavam 12 a 15 por cento das receitas do orçamento indonésio.
                  
                                    O sistema KKK

   O sistema KKK- Korupsi, Kolusi, Nepotisme (Corrupção, Conluio, Nepotismo) – bloqueou completamente o regime político autoritário e entrou em colapso quando a crise financeira e económica bateu à porta na sequência da bancarrota tailandesa em Julho de 1997.

   Em Outubro, quando foi anunciado o primeiro pacote de ajuda de 43 mil milhões de dólares do FMI a Jacarta, tornou-se por demais evidente que a resistência dos familiares e associados de Suharto às consequências negativas para os seus interesses das medidas de estabilização condenavam ao fracasso as tentativas de salvar a economia indonésia de um mergulho no abismo.

   A depreciação da rupia foi fatal para as empresas indonésias que tinham acumulado 80 mil milhões de dólares de dívidas em divisas estrangeiras, a seca provocado por El Niño devastou a economia rural e, em poucos meses, num cenário de crescentes tensões nas Forças Armadas, motins antichineses e manifestações estudantis escaparam ao controlo e Suharto cedeu.

   A legitimidade e reverência que Suharto desfrutou como pai do desenvolvimento (o crescimento e progresso apesar da corrupção que o veterano estadista de Singapura Lee Kuan Yew louvou em visita de homenagem ao leito de morte do antigo presidente) esvaneceram-se em 1997, mas nem por isso se impôs qualquer vontade de apurar responsabilidades pelos abusos cleptocráticos e as violências do regime.

   Demasiadas pessoas estiveram envolvidas a vários níveis na cultura de autoritarismo, corrupção e nepotismo da Ordem Nova para que seja possível processar apenas uns quantos culpados por mais ostensivos que sejam os seus cadastros plutocráticos e o rol de violências policiais e militares. O emaranhado de conivências é demasiado perverso e pervasivo.

   Os avanços democráticos, a pacificação da província de Aceh, a independência de Timor-Leste, e a recuperação económica que marcaram a última década vão a par de Para a maioria dos cerca de 230 milhões de indonésios, mais de 60 por cento nascidos depois de Suharto ter assumido no poder na ressaca do contra-golpe sangrento de 1965 que redundou no massacre de mais de meio milhão de pessoas, o desenvolvimento ainda é uma miragem.

   Metade das gentes do arquipélago subsiste com menos de 2 euros por dia e o que ficou do sistema autoritário KKK ainda sela o seu destino no pior dos legados do maior dos cleptocratas.

Jornal de Negócios
16 Janeiro 2008

http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=309463

Sem comentários:

Enviar um comentário