quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A ideologia das armas




   Barack Obama, confrontado com o quarto massacre doméstico da sua presidência, dificilmente assumirá algo mais do que o apoio a uma proposta democrática no Congresso para renovar a interdição de venda de armas semi-automáticas que esteve em vigor entre 1994 e 2004.

   O morticínio de Connecticut levou alguns políticos democráticos a tentarem retomar a questão do controlo de venda de armas e munições que o partido evita desde a derrota presidencial de Al Gore em 2000.

   Ganhos em áreas urbanas e suburbanas de rendimentos elevados permitiram a Obama impor-se ao voto branco conservador pró-armas em estados como o Ohio e a Virgínia, prescindindo de tentar cativar um sector do eleitorado irremediavelmente perdido para os democratas.

   Na geografia eleitoral das presidenciais os democratas conseguiram com Obama ultrapassar o óbice de derrotas de Gore e John Kerry em estados como Missouri, Arkansas ou Vírginia Ocidental que tinham sido essenciais para as vitórias de Bill Clinton em 1992 e 1996.

   Afrontar o voto branco conservador pró-armas, que tende em geral a perder peso demográfico, poderá, no entanto, custar a maioria aos democratas no Senado se em 2014 o partido perder os seus eleitos pelo Arkansas, Alasca, Montana, Virgínia Ocidental e Luisiana.

   O risco é elevado tanto mais que Obama optou por esquivar-se a polémicas sobre armas para poder concentrar-se nas questões económicas, de regulação financeira e reforma do sector da saúde.

  Cerca de 300 milhões de armas são propriedade de particulares, um recorde mundial, mas a posse de armas tem vindo a diminuir desde a década de 70 quando aproximadamente metade das famílias declarava ter armas em casa.

   Em 2010 cerca de 30% das famílias possuiam armas, segundo o National Policy Center da Universidade de Chicago.

   A concentração de armas é significativa já que ¾ dos detentores de armas possuiam 2 ou mais unidades, cabendo a maior quota do arsenal precisamente a brancos maiores de 40 anos residentes em áreas rurais.

   O direito à posse individual de armas, consagrado no Segundo Aditamento à Constituição concebida em 1791 antes da criação de um exército nacional, foi reconhecido pelo Supremo Tribunal em 2008.

  Um em cada cinco norte-americanos possui uma arma de fogo e as sondagens da Gallup indicam que a adopção de restrições à sua venda perdeu apoio, caindo de um pico de 78% em 1990 para 44% duas décadas mais tarde.

  Esta tendência vai a par da quebra na criminalidade violenta, tendo ainda de se levar em linha de conta que os Estados Unidos se encontram em 26ª posição em termos internacionais quanto a crimes mortais por armas de fogo por 100 mil habitantes, segundo estatísticas da ONU relativas a 2010.

   Os assassinatos com armas de fogo têm vindo a diminuir atingindo no ano passado os 2,8 por 100 mil habitantes, de acordo com dados do FBI, que, aliás, regista a nível nacional os mais baixos níveis de criminalidade violenta desde a II Guerra Mundial.

   No confronto ideológico o panorama é diverso e prevalece a ideologia promovida pela National Riffle Association (NRA) fundada em 1871 e actualmente com 4,3 milhões de filiados.

  Tradicionalmente apoiante das medidas de controlo federal e estadual quanto a vendas e posse de armamento, a NRA defendeu genericamente a adopção de maiores restrições na sequência dos assassinatos de John Kennedy, 1963, e Robert Kennedy e Martin Luther King, em 1968.

  A partir de meados dos anos 70 NRA assumiu, no entanto, uma filosofia libertária e anti-governamental de pendor conservador.

  A eleição em 1980 de Ronald Reagan, patrocionado pela NRA, assinalou um ponto de viragem, ocorrendo seis anos depois as primeiras revisões de legislação federal marcadas pela prevalência do direito individual de posse e porte de armas.

  As campanhas da NRA foram fundamentais para o triunfo da ideologia da posse de arma como direito inalienável do cidadão e símbolo da liberdade individual quando paradoxalmente a sua potencial base de apoio, os detentores de armas, se reduzia.

  Longo e moroso será o processo de contestação à ideologia actualmente dominante que faz tudo por ignorar uma longa tradição estadual e federal de regulamentação do fabrico, posse e porte de armas.

  A polarização político-partidária, que acentua o cunho disfuncional de certos traços do sistema norte-americano de divisão de poderes, tornará ainda mais difícil superar preconceitos ideológicos e as resistências de grupos de interesses à semelhança do que vem sucedendo com a legislação ambiental.

Jornal de Negócios

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