sábado, 1 de junho de 2013

O paciente argentino




"Veja"


  A patologia ciclotímica da economia e política argentinas algo terá que ver com a inaudita proliferação de psicólogos, psicoterapeutas e psicanalistas pelas bandas do Rio del Plata e as celebrações de uma década de kirchenismo aparentam ter agravado as taras da nação.

   Aquando da sua eleição presidencial em 25 de Maio de 2003, Néstor Kirchner prometeu um peronismo de estilo novo e a alta das matérias-primas – com a soja à cabeça – ajudou a superar a crise e bancarrota de 2001-2002 legadas pelo radical Fernando de la Rúa.

  O governador da província de Santa Cruz instrumentalizou a seu favor a administração pública – a exemplo de outros avatares do "justicialismo" como Carlos Menem, presidente de 1989 a 1999 –, levou da Patagónia para Buenos Aires a panóplia tradicional de fiéis e, sobretudo, a intransigência no recurso aos poderes do estado para esmagar, neutralizar ou seduzir rivais e opositores.

  No mandato de Néstor as receitas das exportações agropecuárias permitiram reduzir a dívida externa (138% do PIB em 2003; presentemente 40%) de um país irradiado dos mercados desde Dezembro de 2001 graças ao recurso às reservas em divisas do Banco Central.

  Néstor e sua mulher Cristina, que lhe sucedeu em 2007, acabaram inevitavelmente por comprometer a independência do Banco Central e, apesar das reestruturações da dívida, compromissos pendentes somam 23 230 milhões de dólares.

  Processos pendentes em tribunais dos Estados Unidos mantêm o estado argentino refém de fundos de investimento que recusam aceitar perdas aceites por outros credores em 2005 e 2010.

  Ao esfumar-se o excedente comercial, o executivo de Cristina impôs em 2011 controlos cambiais numa altura em que a Argentina se via obrigada pela primeira vez a importar petróleo e gás desde a privatização da "Yacimientos Petrolíferos Fiscales" (YPF) no início da década de 90.

  Ao abrir esta semana, o câmbio oficial de venda do dólar era de 5,27 pesos e no mercado paralelo atingia os 8,95, enquanto detentores de cartões de crédito exploravam as vantagens de compensadoras aquisições em dólares no estrangeiro apesar das taxas em vigor.

  O fim-de-semana da festa da década de kirchenismo deu em ressaca na segunda-feira quando foi anunciado que a "Câmara de Comércio Internacional" de Paris decidira que a YPF teria de pagar por quebra de contratos em 2009 para fornecimento de gás 1 400 milhões de dólares a empresas brasileiras.

  A nacionalização em Abril do ano passado de 51% da YPF, em prejuízo da "Repsol" espanhola que exige receber como compensação 8 mil milhões de euros, surgiu como um corolário de diversos confrontos sociais que escaparam ao controlo dos Kirchner ainda antes da morte do marido de Cristina em 2010.

  Quando Cristina foi reeleita em 2011 eram já irremediáveis os efeitos nefastos do confronto com os próceres do sector agropecuário, taxado pelo governo a partir de 2008 a níveis considerados incomportáveis pelos produtores argentinos, que degenerou noutro conflito contra os "media" críticos da presidente.

   Desde então acentuou-se o controlo de nomeações de juízes e de responsáveis do Banco Central, a manipulação descarada das estatísticas económicas dos organismos do estado denunciada inclusivamente pelo FMI.

  As estimativas oficiais de taxas de inflação estão na ordem dos 10%, ao passo que entidades independentes referem valores rondando 24%, e tamanha discrepância com efeitos nas negociações salariais acabou por levar à ruptura com os sindicatos tradicionalmente apoiantes dos sucessivos avatares do "justicialismo" do eterno general Juan Perón que se finou em 1974.

  A legislação dirigida contra o grupo de media "Clarín", opositor declarado da presidente, ainda aguarda decisão do Supremo Tribunal e, é, por seu turno, sinal de prepotências políticas que alienaram os tradicionais apoios sindicais do "justicialismo".

  Na linha da frente "justicialista" anti-Cristina para as eleições legislativas de Outubro encontram-se figuras como Roberto Lavagna – antigo ministro da economia de Néstor – e Hugo Moyano – líder da "Confederação Geral do Trabalho" e inimigo declarado da presidente nos últimos anos.

  Ainda assim, face às fragilidades das oposições, incluindo radicais e progressistas, a senhora da "Casa Rosada", o palácio presidencial de Buenos Aires, continuará provavelmente a ditar os termos da compita política.

  Nada indica que psicanalistas, psicoterapeutas e psicólogos do Rio del Plata venham a perder pacientes.


Jornal de Negócios, 29 Maio 2012

http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/o_paciente_argentino.html

Sem comentários:

Enviar um comentário