sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Um equívoco sobre "Guerra e Paz"

  
           
                        Tolstói os malefícios dos concursos televisivos

   A primeira tradução directa do russo de «Guerra e Paz» da responsabilidade de Nina Guerra e Filipe Guerra, poderia pemitir ao leitor português encontrar, finalmente, o tom coloquial de Tolstói que as versões a partir do francês, caso das realizadas por Cabral do Nascimento e João Gaspar Simões, tantas vezes elidiam ao optarem por soluções mais respeitosas das convenções literárias.
 
  Talvez seja o caso, mas, primeiro, convém dar atenção ao título.

   O casal Guerra que desde 1996 se tem dedicado à meritória tradução de obras literárias russas -- seguindo o método em que Nina (Moscovo,1950), formada em filologia românica na capital russa, elabora uma primeira versão portuguesa trabalhada posteriormente por Filipe (Vila Pouca de Aguiar, 1948) --, apresenta nesta sua versão de «Guerra e Paz» uma «nota sobre o título do romance» que desperta perplexidade.

    Advertem os tradutores que «no original russo não consta a palavra ‘paz’, mas sim um seu homófono que significa ‘universo, sociedade, mundo humano’ (no tempo de Tolstói os dois homófonos tinham grafia diferente, o que actualmente não acontece, e daí a confusão)».
 
   Depois de esclarecem os leitores que laboravam em confusão há mais de um século, condescendem os tradutores, galardoados em 2001 com o «Grande Prémio do P.E.N. Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores» pelas versões de obras de Dostoievski, em «não contrariar a tradição e manter a tradução do título já consagrada no Ocidente.»
   É de louvar o respeito pela tradição, mas melhor seria atentar no seguinte.

   É sabido que Tolstói desde que começou a trabalhar, em 1856, num romance sobre os nobres dezembristas --- que em 1825 tentaram derrubar o tzar Nicolau I --, até à conclusão da obra em 1869, hesitou no âmbito cronológico da obra.

    Numa primeira fase, o romance sobre «o carácter do povo russo», implicava «uma descrição da vida e conflitos de algumas personalidades no período temporal que vai de 1805 até 1856», mas Tolstói acabou por se concentrar nos anos das guerras contra Napoleão (1805-1813).

    Os primeiros capítulos publicados na revista «O Mensageiro Russo», em 1865 e 1866, foram apresentados como excertos do romance «O ano de mil oitocentos e cinco», e, nessa altura, Tolstói já abandonara a hipótese «Três épocas» para título da epopeia. O título em vista era, então, «Bem está o que acaba bem».

   Em 1867, Tolstói abandonava o título com ecos de Shakespeare e optava por outro semelhante ao ensaio «La Guerre et la paix» que Proudhon publicara seis anos antes.

   «Guerra e Paz» manteve-se até concluir a publicação do romance em Dezembro de 1869.


 Entre as edições de 1886-69 até à quinta de 1886 Tolstói fez alterações significativas ao texto, mas nunca mais modificou o título do romance e aceitou a versão da sua primeira tradutora, a Princesa Irina Ivanovna Paskiévitch, que, em 1879, publicou a versão francesa «La Guerre et la Paix».

Портрет


   Como surge então a confusão entre «paz» e «mundo»?
  
   Nestes casos é de compulsar, necessariamente, Vladimir Dal, o grande lexicógrafo russo, e o seu clássico «Dicionário Compreensivo da Língua Russa Viva» na primeira edição publicada entre 1863 e 1866 e na versão revista de 1880-1882.
  
   O verbete миръ vale por paz e a palavra міръ significa, efectivamente, universo, sociedade, mundo.

   As reformas ortográficas de 1917 e 1918, pelo governo provisório e pelos bolcheviques, uniformizaram a grafia dos homófonos paz e mundo, resultando мир. Война, a guerra, por sinal, manteve a mesma grafia.

   Olha-se para as capas das edições de «Guerra e Paz» anteriores à reforma ortográfica e não há motivo para qualquer dúvida.
   Porquê, então, esta confusão?

   Tudo começou em 1982 com uma emissão do popular concurso do primeiro canal da televisão soviética «O quê? Onde? Quando?».

   Confrontado com uma edição publicada em 1913 que, por erro, numa única página, indica o título do primeiro dos quatro volumes do romance como «Война и Мipъ» um dos concorrentes foi levado a aceitar a explicação de que o sentido filosófico profundo da obra residia precisamente nesta opção por «Guerra e o Mundo».

   A 23 de Dezembro de 2000 numa emissão comemorativa dos 25 anos do concurso «O quê? Onde? Quando?» o primeiro canal da televisão russa, ORT, repetiu este momento de confusão ortográfica e, cá o temos, finalmente em Portugal, directamente transcrito do russo.

Lev Tolstói,
"Guerra e Paz"
Editorial Presença, Lisboa 2005

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