quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A canalha contra a República



   Integrar no mercado de trabalho e no sistema escolar os deserdados alienados e violentos dos subúrbios não é desiderato que se alcance sequer numa geração.

   Sem qualquer solução a curto prazo a França vai ter de viver por muitos anos com o espectro da revolta da canalha, no qualificativo do ministro Nicolas Sarkozy; a minoria deserdada, alienada e propensa à violência, que cresceu nos subúrbios.

   A resistência a reformas do sistema de emprego e segurança social, o proteccionismo promovido pelas elites francesas e a prevalência do modelo integracionista da imigração assente na imposição dos valores republicanos e laicos não auguram uma mudança radical de política.
  
   Os primeiros confrontos sérios entre bandos juvenis oriundos de famílias imigrantes e a polícia começaram em 1979, em Vaulx-en-Velin, nos arredores de Lyon, e dois anos depois novos motins no bairro de Minguettes à Vénissieux, na mesma região, colocaram irreversivelmente na agenda política a questão da «violência urbana».

    A vitória da selecção black-blue-beur no Mundial de futebol de 1998 foi, provavelmente, o último momento de ilusão no sucesso do modelo de integração da segunda e terceira geração de imigrantes, mas três anos depois a Marselhesa era vaiada nas bancadas do Stade de France pelos jovens maghrebinos que assistiam ao primeiro jogo amigável entre a França e a Argélia.

   O choque foi brutal e Le Pen fez, uma vez mais, ouvir a sua voz ante o desconcerto dos partidos tradicionais.
 
    O diagnóstico da crise é claro.

    As 750 cités construídas a partir da década de cinquenta nos arredores das grandes cidades, classificadas presentemente como «zonas urbanas sensíveis», albergam mais de 4,5 milhões de habitantes, com escassas ou nulas qualificações profissionais, emprego precário ou em situação de desemprego.
 
   Nas cités as taxas de desemprego cifram-se em 21 por cento (o dobro da média nacional), chegando aos 40 por cento no caso de jovens até aos 25 anos de ambos os sexos, e registam-se níveis de delinquência e abandono escolar muito superiores aos registados no resto da França.

    Entre 30 a 60 por cento dos residentes nas cités são de origem estrangeira e a tendência é para um aumento da concentração nos subúrbios dos excluídos do mercado de trabalho e do sistema de ensino.
  
    As instâncias tradicionais de mediação política, caso do partido comunista e de organizações associativas animadas por activistas da classe média, perderam influência e o seu espaço foi ocupado por líderes religiosos, essencialmente muçulmanos, que o aparelho de estado não conseguiu integrar. A criminalidade de bandos alastrou à medida que as cités eram abandonadas pelos habitantes melhor sucedidos.
  
   Sem modelos de sucesso com quem se possam identificar nas áreas políticas, culturais, de entretenimento ou desportivas, sobra o vazio para uma geração que vê frustradas as expectativas inalcançáveis de consumo e prestígio social.

   Sarkozy ao prometer varrer «a canalha» cometeu um erro crasso, para gaúdio momentâneo e insensato dos seus rivais Chirac e Villepin, ao transmitir um sinal que foi tomado comoprova da hostilidade declarada do estado face aos jovens dos subúrbios e expressão de criminalização de comunidades inteiras.

   Ora, a canalha não se confunde de forma alguma com o universo da imigração.

   É o mundo da exclusão.

   O censo de Março de 1999 referenciava 4,3 milhões de residentes na França metropolitana de origem estrangeira, ou seja 7,4 por cento da população, uma proporção invariável desde 1975.

  Um terço possuía nacionalidade francesa. A Europa fornecia ainda o maior contingente à imigração (45 por cento) - entre eles 571 874 portugueses (13,3 % do total) -, mas estava em crescimento o número de oriundos do Maghreb (39 %) e da África subsaariana (9%).
  
   Presentemente, as autoridades de Paris estimam, ainda, a presença de 200 mil a 400 mil ilegais em França e é Nicolas Sarkozy, o principal político da direita a tomar a questão em mãos, quem tem vindo a aventar a adopção de uma política de maior selectividade nas autorizações de trabalho para estrangeiros.

   Num contexto de quebra demográfica (entre 1990-1995 registaram-se 1,7 nascimentos por mulher) a população criada em contextos culturais islâmicos continua a aumentar o seu peso e ronda os quatro a cinco milhões, tendo cerca de metade nacionalidade francesa.

   A violência suburbana é, consequentemente, obra das camadas de jovens alienados em resultado do fracasso dos sistemas de integração e da incapacidade de absorção pelo mercado de trabalho.

   O abandono escolar foi agravado no caso da população jovem masculina pela abolição do serviço militar obrigatório em 1996.

   A segregação nas áreas degradadas dos subúrbios, destinadas exclusivamente a habitação, levou ao desenvolvimento de uma cultura de dependência dos sistemas assistenciais que rejeita, simultaneamente, os valores promovidos pela República.

   As áreas de exclusão viram expandir-se uma subcultura identitária de violência, criminalidade e banditismo.

   A maior parte da criação rap - cínica, cruel e machista - é a expressão musical da alienação que transformou em rituais a destruição de símbolos de sucesso como o automóvel, uma constante nas noites de S. Silvestre desde 1997, ou de equipamentos públicos, dos contentores de lixo aos autocarros.

                         Nihilistas, criminosos e xenófobos

   Entre a recusa nihilista de todos os valores e a criminalidade como modo de vida nos subúrbios, um grupo crescente de jovens de origem muçulmana assumem o Islão nas suas versões mais integristas como cultura alternativa.

   A tentativa do estado laico de criar um interlocutor oficial com a instituição, em 2003, do Conselho Francês do Culto Muçulmano, seguida da proibição de símbolos religiosos nas escolas como a hijab, não cativou a minoria islâmica.   

     A endoutrinação nas mesquitas é conduzida por 1000 a 1500 imãs, 90 por cento dos quais são cidadãos estrangeiros.

   Cerca de metade dos imãs ignora o francês e as prédicas radicais como as de Abdelkader Bouziane, sediado em Lyon e expulso para a Argélia em Abril, advogam a submissão das mulheres e a poligamia e exigem o respeito estrito de valores islâmicos contrários à ordem constitucional.

    A nomeação, em Março, do presidente da Renault, Louis Schweitzer, para chefiar a recém-criada Alta Autoridade para a Luta contra as Discriminações e pela Igualdade, ainda não se traduziu em resultados práticos.

   A rejeição crescente pelas empresas e serviços públicos de filhos e netos de imigrantes reflecte-se parcialmente nas estatísticas oficiais que assinalam 9 por cento de desempregados com qualificações universitárias entre os franceses de raiz e 26 por cento entre os candidatos de origem árabe com idênticos atributos académicos.

   O programa, adoptado em 2000, para construir em vinte anos 400 mil habitações sociais em 742 comunas com menos de 5 por cento de residências para famílias de recursos escassos ainda nem começou a ser cumprido por um terço das edilidades.

   A ênfase em acções repressivas, negligenciando a actuação da polícia de proximidade, iniciativa tomada há três anos por Sarkozy, retirou eficácia à acção das autoridades nas zonas sob controlo de gangs.

    A «discriminação positiva» advogada pelo ministro do Interior e a concessão do direito de voto a estrangeiros não-oriundos da União Europeia residentes em França há dez anos são contestadas à direita.

    A maior parte da sociedade francesa rejeita e discrimina de forma consistente e determinada os estrangeiros que pela aparência ou actos não partilham os valores dominantes.
  
   As culturas de gueto odeiam a República, desprezam as normas de civilidade, a canalha consume-se na violência pela violência e os bandos traficam.
 
   Não há qualquer reivindicação de ordem ideológica na actual vaga de violência, mas, a prazo, alguns grupos radicais muçulmanos vão encontrar aqui terreno fértil para a prédica integrista.
  
   As reformas que a França terá de trilhar passam pela repressão sistemática da violência das subculturas e dos bandos criminosos dos guetos, mas, sobretudo, pela integração no mercado de trabalho e no sistema escolar dos deserdados dos subúrbios.

   Não é desiderato que se alcance sequer numa geração.




Jornal de Negócios
09 Novembro 2005

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