sábado, 8 de setembro de 2012

"O SEGREDO DE JOE GOULD", JOSEPH MITCHELL




   Joseph Mitchell foi, desde os finais dos anos 30, um dos grandes estilistas da revista mais elegante de Nova Iorque. Hoje, é um clássico das antologias da "New Yorker".

   Era um homem do Sul, dos campos da Carolina do Norte, que se afeiçoou à cidade com um talento impiedoso e uma ternura serena para descrever vidas que passavam ao lado da fama e do proveito.

   Mitchell levou mais de 60 anos a escrever estórias (sem H pela mesmíssima razão que o poeta e. e. cummings invocava para grafar o nome com minúsculas) sobre a graciosidade dos índios Mohawk nos estaleiros dos arranha-céus, as ilusões de grandeza do saltimbanco, a altivez dos bares da ressaca e as incongruências cativantes de pessoas, por vezes, "demasiado tímidas para falar com estranhos, mas não para assaltar um banco".

    A sua colectânea de perfis, crónicas e reportagens "Up in the Old Hotel" (1992) é um pilar do melhor jornalismo literário norte-americano. Estão lá guardados o verso e o reverso de uma das suas criações mais elaboradas: o enigma de um anti-herói da boémia de Greenwich Village.

    "Apesar de não precisar de muitos copos, muitas vezes Gould passa o cabo dos trabalhos para os conseguir", Mitchell não precisa de escrever mais do que isto para lançar a personagem.

   Gould, Joe Ferdinand Gould, um excêntrico que nos anos 20 cativara literatos como Ezra Pound, William Saroyan ou e. e. cummings era, quando Mitchell o conheceu no Inverno de 1932, uma lenda nos meios da arte e vadiagem de Greenwich Village.

   No primeiro perfil que escreveu em 1942 para a "New Yorker", "O Professor Gaivota", Mitchell estava em crer que " embora Gould se esforce por dar a impressão de ser um mandrião filósofo, levou a cabo um enorme volume de trabalho durante a sua carreira de boémio".

   Gould personificava, pensava Mitchell, "o exemplo perfeito de um tipo de excêntrico muito espalhado por Nova Iorque, o vagabundo nocturno solitário".

    O Professor, versado na linguagem das gaivotas, era aos 53 anos, um boémio com sotaque de Harvard e uma grande boquilha preta para fumar beatas apanhadas nos passeios.

    "Homenzinho jovial e emaciado", caminhava curvado por Greenwich Village sobre "uma pasta enorme e sebenta de cartão castanho" e sob o peso do projecto imenso de "Uma História Oral do Nosso Tempo".

   Joe Gould aprimorava, desde o Verão de 1917, o manuscrito (ou melhor, centenas e centenas de cadernos escolares) que já tinha "onze vezes o tamanho da Bíblia" e o consagraria como "o maior historiador do século" pelo testemunho "presenciado ou ouvido" de mais de 20 mil conversas, "história informal da gente em mangas de camisa".

   Pavorosas descrições de experiências hospitalares e clínicas, rimas e comentários rabiscados nas paredes dos lavabos do metro, os ismos da política e da arte, um pontapé num polícia numa manifestação de protesto contra a exibição de "O Nascimento de Uma Nação, as ratazanas cinzentas do Harlem, a "História Oral" tudo continha e "a mais longa obra inédita existente" sempre longe da conclusão.

   Mas Joe Gould, o boémio que captava "o profundo sentido histórico" na conversa de cada esquina, ianque marcado por um destino "tão grande como Gibbon", morreu em 1957 e do manuscrito não deixou rasto.

   Lembrado pelo perfil que Mitchell traçara na "New Yorker " faltava, no entanto, a consagração da publicação do manuscrito perdido.

   Mitchell, o cronista de Gould, contou, então, uns anos depois, em 1964, a fechar a sua própria carreira literária, o segredo da transformação de "um homenzinho com aspecto de vagabundo rameloso condenado a correr os bares, num historiador ilustre".

   O segredo é uma meditação sobre o engano e a ilusão, o embaraço e a admiração genuína.

   António Lobo Antunes diz no prefácio à edição portuguesa que há aqui "um puro milagre da prosa, com o trabalho de oficina sabiamente escondido".

   "Claro que sim", diria Joseph Mitchell.Netparque24 Dezembro 2001

   Stanley Tucci dirigiu e protagonizou Joseph Mitchell no filme "Joe Gould`s Secret" (2000) em que Ian Holm interpretou o papel do boémio de Greenwich Village. Susan Sarandon, Patricia Clarkson e Hope Davis contracenam neste filme que teve pelo menos o mérito de levar à publicação autónoma pela Modern Library dos dois perfis de Gould.

 
"O SEGREDO DE JOE GOULD"
Joseph Mitchell
Apresentação de António Lobo Antunes
Dom Quixote, Lisboa, 2001

Netparque
24 Dezembro 2001

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