sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Um massacre anunciado

   No auge das manifestações de protesto na Birmânia, o general Thura Myint Maung falou e disse: uma conspiração de “elementos destrutivos internos e externos” ameaça “o desenvolvimento e a estabilidade nacionais”.
   O ultimato do ministro dos assuntos religiosos, exigindo que a hierarquia budista condene os monges envolvidos nas manifestações anti-governamentais, é o primeiro passo para o início da contra-ofensiva da Junta Militar.

   O cenário mais provável é a partir de agora a repressão em larga escala dos protestos à semelhança da investida militar que provocou cerca de três mil mortes em Setembro de 1988.

                            Yangon, Myanmar, Setembro 2007

   Tal como há duas décadas um decreto inopinado e actos de brutalidade policial propiciaram os pretextos para as manifestações.

   Desta feita, a Junta Militar, sem recursos para manter os subsídios estatais ao consumo de combustíveis, decretou a 15 de Agosto aumentos que duplicaram o preço do diesel e quintuplicaram o custo do gás butano.

   Uma semana depois, treze activistas da oposição foram presos por organizarem acções de protesto contra a alta de preços. A rede clandestina da oposição birmanesa conseguiu apesar das detenções realizar manifestações esporádicas em diversas cidades e monges budistas juntaram-se no início de Setembro aos protestos.

   Detenções e espancamentos de monges e noviços radicalizaram membros do clero que passaram a exigir desculpas públicas por parte do governo. Apanhada de surpresa a Junta militar hesitou em reprimir as manifestações lideradas por monges que a 17 de Setembro passaram a recusar aceitar oferendas por parte de membros da Junta, seus familiares e associados.

   Ao acto de desafio de parte significativa do clero, negando a benevolência da busca de mérito essencial às crenças budistas, seguiu-se um crescendo das manifestações que assumiram um cunho declaradamente antigovernamental e atingiram dimensões semelhantes às das jornadas de Agosto e Setembro de 1988.
  
  Os protestos de há duas décadas seguiram um curso semelhante.
  
                              Rangoon, Birmânia, Setembro 1988

   Em Setembro de 1987, o general Ne Win, que tomara o poder em 1962 instaurando o socialismo búdico, decretou sem valor 56 por cento da massa monetária.

   A conhecida devoção astrológica do general pelo mágico número 9 retirou de circulação as notas de denominação mais alta de 75, 35 e 25 kyat.

   Na impossibilidade de trocar as velhas notas, sem acesso ao sector bancário, a maioria da população viu o dinheiro volatilizar-se num passe de mágica.

   O temor às novas notas de 90 e 45 kyat e o medo de novo confisco levou a uma corrida a bens tangíveis que fez disparar a inflação.

   A partir de então manifestações pontuais passaram a marcar o quotidiano da Birmânia até que uma brutal intervenção policial em Março de 1988, na sequência de distúrbios numa das tradicionais casas de chá de Rangoon junto ao Instituto de Tecnologia, redundou na morte de 41 estudantes.       

  A capital foi abalada por gigantescas manifestações. As brutalidades militares em Agosto provocaram mais de mil vítimas em Rangoon e, então, Aung San Suu Kyi – filha do general Aung San, o herói martirizado da independência em 1947 – assumiu a liderança da contestação.

   Em 18 de Setembro, uma Junta Militar, com o general Ne Win na sombra, decretou o estado de emergência e no dia seguinte começou o massacre. Suu Kyi foi colocada em prisão domiciliária.

   Dois anos mais tarde, em Maio de 1990, eleições organizadas pelos militares resultaram na conquista pela Liga Nacional para a Democracia, liderada por Suu Kyi, de 392 dos 484 lugares em disputa.

   A Junta ignorou os resultados, prendeu dirigentes e militantes da Liga Nacional para a Democracia e demais partidos desafectos ao regime e persistiu até hoje numa política ditatorial.

                              Um regime intratável e indiferente

   A construção de uma nova capital em Nay Pyi Taw, a meio caminho entre Rangoon e Mandalay, as duas principais cidades do país, a convocação de uma fantasmagórica Convenção Constitucional (a reserva da presidência e dos principais ministérios para os generais é um dos pontos fortes da constituição) e o retomar das ofensivas militares contra os rebeldes da minoria Karen no leste do país foram os últimos passos da Junta.

   A estratégia de “negociações construtivas” com a Birmânia que justificou a sua entrada na Associação das Nações do Sudeste Asiático em 1997 de nada valeu aos demais nove Estados da organização.

   O golpe militar do ano passado na Tailândia retirou ainda mais legitimidade às críticas pontuais que se vão fazendo ouvir contra o regime birmanês por parte de alguns parceiros regionais, sobretudo a Indonésia, a Malásia e as Filipinas. 
   
   Na última década, o incremento das relações com Pequim transformou, por seu turno, a China no principal parceiro comercial da Birmânia, maior investidor e fornecedor de equipamentos militares, além de recurso diplomático de última instância.

   Os investimentos para exploração das jazidas off shore de gás natural (que asseguram mais de metade das receitas das exportações legais, sendo desconhecidas os proventos do contrabando, designadamente de madeiras e tráfico de ópio e anfetaminas) deram novo fôlego ao regime e implicam ainda interesses da vizinha Índia, além da Coreia do Sul, Tailândia e Malásia.

   A capacidade de pressão internacional sobre a Birmânia é, no entanto, muito limitada devido ao escasso peso que as trocas comerciais têm num país com um PIB que não ultrapassa os dez mil milhões de dólares.

   A agricultura (essencialmente produção de arroz), a pecuária, as pescas e a exploração de madeiras representam mais de metade do PIB, contribuindo as indústrias e manufacturas, em que as empresas estatais controladas por militares também predominam, com outros 15 por cento.

   Um sector de serviços incipiente, um comércio internacional diminuto e concentrado nas trocas regionais, turismo pouco significativo, acrescem para tornar a Birmânia um caso peculiar: é um estado que, salvo corte drástico do comércio com a China, se pode considerar imune a boicotes e sanções internacionais.   

   Os cerca de 400 mil militares poderão, assim, continuar a consumir 40 por cento do orçamento e quase 30 por cento dos 56 milhões de habitantes da Birmânia terão de subsistir com menos de um euro por dia.

   A presente onda de protestos recebeu alguns apoios de líderes de partidos e movimentos das minorias étnicas que representam 30 por cento da população, mas, tal como em 1988, concentra-se nas regiões de maioria birmanesa.
Indiferente às condenações e sanções que possam advir do Conselho de Segurança da ONU, caso a China não opte por as vetar, a Junta do general Than Shwe prepara-se, com toda a probabilidade, para esmagar com mão de ferro as manifestações antigovernamentais. 

É 1988 outra vez.



Jornal de Negócios
27 Setembro 2007

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