domingo, 9 de setembro de 2012

Do Líbano à desgraça



 
   Duas semanas depois do início da ofensiva israelita no Líbano é patente o fracasso de Telavive.

   Os bombardeamentos aéreos e incursões limitadas no terreno não conseguiram eliminar a ameaça militar do Hizballah, esgotou-se o prazo de cobertura diplomática e chegou o momento de negociar um cessar-fogo.

   O general da força aérea Dan Halutz, que desde a sua nomeação em Junho de 2005 para chefe do estado-maior general das forças armadas aguardava uma oportunidade para erradicar a ameaça dos mísseis do Hizballah, optou por uma guerra a meio gás sem mobilizar forças para uma investida rápida e massiva contra as posições das milícias xiitas no sul do Líbano, no vale de Beeka e em Beirute.

   A má memória das invasões de 1978 e 1982 inibiu os estrategos israelitas que, desta feita, nem contavam com putativos aliados entre as facções libanesas, mas, ainda assim, jogaram na hipótese de isolamento político do Hezbollah, com a consequente degradação da capacidade de iniciativa militar das milícias.

   Seguras de si e dominadoras, para lembrar a controversa tirada de De Gaulle, as elites políticas e militares israelitas partiram do princípio de que a destruição de parte significativa das infra-estruturas libanesas seria mais do que suficiente para levar a maioria não xiita (cerca de 60 por cento da população) a contestar os custos da persistência do Hezbollah como força militar num estado liberto ainda há apenas um ano da tutela militar síria.

   Surpreendidas e ambíguas em relação à subestimação das capacidades das milícias xiitas, as forças armadas israelitas viram-se incapazes de ocupar sequer a faixa de território do sul do Líbano que se estende até ao rio Litani e de impor um tampão de segurança numa área cobrindo trinta quilómetros a norte da sua fronteira.

   Inconclusivas e perplexas, as últimas estimativas israelitas apontam para uma degradação importante das capacidades militares do Hizballah, mas, admitem, que seriam necessárias semanas para obliterar os arsenais das milícias xiitas - capazes de flagelar Israel a distâncias fora do alcance da actual ofensiva - e obviar ao seu reabastecimento por parte da Síria e do Irão.

   Em conclusão: Israel não eliminou a capacidade do Hizballah lançar mísseis contra o seu território, sofreu baixas significativas em confrontos directos com as milícias xiitas, hostilizou as demais comunidades libanesas, e ver-se-á obrigada a aceitar um cessar-fogo que fragilizará os delicados equilíbrios do Líbano conseguidos após o final da guerra civil em 1990 e reintegrará a Síria como parceiro negocial.

                                           Negociar mal

   Se o governo de coligação em Beirute de Fouad Siniora, de que o Hizballah faz parte, escapar a esta crise, a sua estratégia negocial irá obrigá-lo a retomar algumas exigências altamente penosas para Israel.

   Em primeiro lugar, o executivo de Beirute terá de concretizar uma troca de prisioneiros libaneses e palestinianos pelos soldados israelitas em poder do Hizballah.

   No topo da lista libanesa figurará Samir al Kantar. É o guerrilheiro da Frente Popular de Libertação da Palestina que, aos 17 anos, foi detido, em 1979, num ataque à cidade israelita de Nahariya que custou a vida a um polícia, um civil e uma criança israelitas. Condenado a 542 ano de prisão, este druzo é um dos três presos libaneses que Hassan Nasrallah jurou libertar no discurso de 25 de Maio último, Dia da Resistência e Libertação, que celebra a retirada israelita do sul do país há seis anos.

   A sua libertação, com a de detidos palestinianos, será celebrada como uma indubitável vitória pelo Hizballah, tão transcendente quanto a resistência que levou à retirada israelita do Líbano em 2000.

   Em segundo lugar, a coligação de Beirute proporá a retirada de Israel da região de Sheeba, os 25 quilómetros quadrados nos contrafortes dos montes Golan cuja soberania o Líbano reivindica, mas Telavive afirma integrarem território sírio que, por sinal, ocupa desde 1967.

   A questão de Sheeba é particularmente relevante pois sustenta o argumento aventado pelo primeiro-ministro Fouad Siniora para legitimar politicamente o desarmamento do Hizballah, retirando-lhe o estatuto de movimento de resistência à ocupação israelita.

   Neste momento, ainda antes sequer que sejam discutidas indemnizações pelos danos provocados pelos confrontos, a Síria surgirá como parceiro negocial, não só pelo seu estatuto como estado possidente dos Montes Golã ocupados na guerra de 1967, mas, também, como factor de estabilização do Líbano.

   A contrapartida à boa-vontade de Damasco em suspender os fornecimentos militares ao Hezbollah passará pelo pressuposto de evitar que as conclusões do inquérito da ONU acerca do assassinato de ex-primeiro-ministro libanês Rafic Hariri, em Fevereiro de 2005, impliquem sanções ao regime de Damasco que, além disso, poderá manifestar a sua disponibilidade para obstar a infiltrações terroristas no Iraque.

                                       Uma presença indesejada

   A partir do momento em que for invocada a aplicação da Resolução 1559 do Conselho de Segurança da ONU, adoptada em Setembro de 2004, que obriga ao desarmamento das milícias do Hezbollah, passar-se-á logicamente à discussão dos termos de outras resoluções - 242, de 1967, e 338, de 1973, que obrigam Israel a devolver os Montes Golã à Síria - e Damasco reentrará no jogo diplomático.

   O cessar-fogo, que fará de novo recair as atenções sobre a questão palestiniana, reforçará o papel político do Hezbollah, será visto por largas faixas das populações árabes, sunitas e xiitas, de que só o recurso à força obriga Israel a concessões e condicionará a actuação da força de interposição internacional.

   Um mandato da ONU para forças multinacionais visará impor a desmilitarização do sul do Líbano. Funcionará como um compasso de espera antes que o exército libanês (de maioria xiita, apesar da forte presença cristã nos postos de comando) imponha a soberania do estado e do governo de Beirute.

   Parte-se aqui do princípio etéreo de que o exército do Líbano é uma entidade alheia aos confrontos confessionais do país e ignora-se que as forças armadas sempre foram mantidas propositadamente fracas para evitar a sua instrumentalização pelas diversas facções políticas como ocorreu no passado.

   O desarmamento dos guerrilheiros do Hizballah, que terá de ser assumido pelo contingente estrangeiro, implica o sério risco das forças internacionais serem vistas como uma entidade ao serviço de Israel sobretudo se Telavive não ceder na questão de Sheeba.

   Basta lembrar os atentados ocorridos nos anos oitenta contra forças francesas e norte-americanas no Líbano para ponderar os riscos de uma presença militar internacional no sul do país sem que estejam reunidas as condições políticas para um acordo de paz formal entre Beirute e Telavive.

   Entretanto, dado que o Eixo do Mal sírio e iraniano, reentrou na negociação diplomática por via do conflito libanês, Teerão terá aqui uma dos seus grandes trunfos quando no fatídico dia 22 de Agosto anunciar formalmente a persecução do seu programa nuclear, advertindo que se retirará, se necessário, do Tratado de Não Proliferação Nuclear, a exemplo do que a Coreia do Norte fez em 2003.

Jornal de Negócios
26 Julho 2006

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