quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A Coreia do Norte sobe a parada


   O Paquistão efectuou em Maio de 1998 a sua primeira série de testes nucleares.

   Seguiram-se três anos de sanções e, em 2004, o principal responsável do programa paquistanês Abdul Khan era obrigado a confessar publicamente que uma rede clandestina sob sua direcção traficava informação e materiais para países envolvidos em projectos nucleares militares.
   A Líbia, o Irão e a Coreia do Norte contavam-se entre os principais clientes da rede de Abdul Khan e Pyongyang chegou mesmo a adquirir centrifugadores do tipo P2 para enriquecimento de urânio, segundo revelou o general Pervez Musharraf nas suas memórias recém-publicadas.

   A nuclearização militar do Paquistão, na sequência do teste realizado pela Índia em 1974, foi o caso mais grave de fracasso do Tratado de Não-Proliferação desde a sua adopção em 1968.
 
   Nem Nova Delhi, nem Islamabade são signatários do Tratado e, por duas ocasiões, em 1999 e em 2002, os dois estados estiveram perto de recorrer aos seus arsenais nucleares.
 
   Israel, que iniciou com auxílio da França na década de cinquenta um programa militar nuclear, concluído com êxito nos anos sessenta, encontra-se, igualmente, fora do Tratado.

  A Coreia do Norte, que em 2003 abandonou o Tratado acaba, por sua vez, de tornar-se a nona potência militar nuclear do planeta.

   No acervo positivo das últimas décadas podem, no entanto, contar-se a renúncia de estados como a África do Sul, o Brasil e a Líbia aos seus projectos militares nucleares, bem como a desnuclearização das antigas repúblicas soviéticas mediante acordos estabelecidos por iniciativa de Moscovo e Washington.

   Aos riscos de proliferação estatal junta-se a ameaça terrorista patente no tráfico ilegal de materiais radioactivos passíveis de uso para fabrico de "bombas sujas". A Agência Internacional de Energia Atómica registou desde 2002 mais de 300 casos de tráfico ilegal de materiais radioactivos, sobretudo na Europa.

   As perspectivas de imposição de uma proibição total de testes nucleares são remotas. Potências nucleares, como, por exemplo, os Estados Unidos, recusam tal alternativa invocando a necessidade de modernização dos seus arsenais.

                                        A última cartada

   O ensaio nuclear norte-coreano foi de dimensão diminuta. As estimativas vão de uma quilotonelada a 15 quilotoneladas.

  Trata-se de uma potência em todo o caso inferior à explosão que arrasou Hiroxima em 1945 e abaixo do nível dos primeiros ensaios nucleares indiano e paquistanês.
 
   As capacidades da Coreia do Norte armar mísseis com engenhos nucleares são, aparentemente, ainda pouco significativas, mas seria um erro subestimar a determinação de Pyongyang que conseguiu concretizar o objectivo estabelecido nos anos cinquenta de se dotar de meios militares nucleares.
 
   A Coreia do Norte contou, inicialmente, com o apoio reticente de Moscovo e, posteriormente, de Pequim, mas, além do contributo paquistanês, as fases finais do projecto assentaram nos seus próprios recursos humanos e tecnológicos.
 
   Nunca Kim Il Sung, nem o seu sucessor Kim Jong Il perderam de vista que só armas nucleares poderiam evitar que os Estados Unidos voltassem a considerar a possibilidade de optar pelo uso de bombas atómicas contra o regime de Pyongyang, tal como o general Douglas MacArthur propôs no final de 1950 para deter o avanço das tropas norte-coreanas e chinesas.
 
   A partir do momento em que passou a dispor de urânio e plutónio com qualidade suficiente para dotar-se de um pequeno arsenal nuclear o regime de Kim Jong Il tem-se por invulnerável a um ataque militar, tanto mais que os 20 milhões de habitantes de Seul estão ao alcance das suas forças de artilharia e os mísseis da classe No-Dong têm capacidade para flagelar todo o sul da península e alcançar o Japão.
 
   O objectivo aparente de Pyongyang, falhadas as iniciativas negociais da administração Clinton e a estratégia de recusa de conservações directas de George W. Bush, visa obrigar os Estados Unidos a assinarem um acordo de paz que ponha termo ao estado técnico de guerra que prevalece desde o final das hostilidades em 1953, retirando as suas tropas e arsenais da península, provendo ajuda económica e financeira, além de garantias de segurança.
 
   Nenhuma administração norte-americana alguma vez aceitará tais condições e se Washington falhou o desiderato de impedir a nuclearização da Coreia do Norte pode, pelo menos, considerar que a última cartada de Kim Jong Il isolou ainda mais o país e provou que a campanha iniciada o ano passado para desarticular a vasta rede norte-coreana de lavagem de dinheiro – nomeadamente através de bancos em Macau –, tráfico de droga e cigarros afectou significativamente o regime, mas não a ponto de pôr em causa a sua sobrevivência.
 
    A partir de agora Pyongyang já não tem mais cartas para jogar salvo a provocação militar que será intolerável para todos os estados vizinhos.
  
  A possibilidade de Pyongyang aumentar as suas receitas através de vendas de tecnologia militar é limitada e a ameaça de tráfico de materiais radioactivos ou nucleares para grupos terroristas mostra-se, ainda que real, pouco racional porque provocaria retaliações capazes de aniquilar o regime que visa, sobretudo, a sua autoperpetuação.

                                 Um novo imperativo para a China

   O regime de Kim Jong Il é essencialmente vulnerável a sanções que a China possa vir a aplicar já que Pequim fornece mais de 70 por cento do combustível e um terço dos alimentos consumidos pela Coreia do Norte.

   Para a China, a aplicação de sanções implica o risco de Pyongyang enveredar por provocações militares intoleráveis, agravando ainda mais os riscos de militarização nuclear do Japão ou da Coreia do Sul, ou de causar o colapso do estado norte-coreano.
  
   Ambas as alternativas são negativas para Pequim que, presentemente, não dispõe de influência para propiciar qualquer tipo de golpe político ou militar em Pyongyang.
 
   A capacidade de resistência do regime de Kim Jong Il à avalanche de desastres (secas, inundações, fomes) que causou mais de dois milhões de mortos na última década não augura, também, viabilidade às sanções internacionais que vieram a ser adoptadas se Pequim mantiver um nível mínimo de abastecimentos para permitir a subsistência do estado norte-coreano.
 
   Em Seul reina, também, o consenso de que o colapso brusco do regime norte-coreano apresenta riscos económicos e de segurança intoleráveis.
 
   O Irão e a necessidade de preservar a capacidade de dissuasão do Tratado de Não-Proliferação Nuclear são os factores que obrigam, no entanto, à adopção de medidas de contenção da Coreia do Norte.

    Se tal como aconteceu com o Paquistão, a Coreia do Norte conseguir nos próximos anos ser aceite como potência nuclear o Tratado está condenado e o regime iraniano terá excelentes perspectivas de êxito para o seu programa militar.
  
  Kim Jong Il cometeu, contudo, um erro clássico.

  Ao realizar um teste nuclear precisamente no dia em que o Comité Central do Partido Comunista chinês iniciava o seu plenário o líder norte-coreano fez perder a face ao presidente Hu Jintao.
 
   É algo de intolerável para a cultura política chinesa e levará certamente a China a repensar as alternativas de que dispõe para derrubar o "Querido Líder", preservando, no entanto, a Coreia do Norte como entidade estatal autónoma.
 
   Talvez aqui possa surgir uma oportunidade para ultrapassar o impasse se Pequim conseguir articular um acordo com os Estados Unidos que terão de propiciar garantias de segurança aos eventuais sucessores de Kim Jong Il.



Jornal de Negócios
11 Outubro 2006


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