domingo, 9 de setembro de 2012

Quanto vale o Haiti?




   Ainda antes de assentar a poeira e os jornalistas estrangeiros partirem, é bem possível que a comunidade internacional aprove financiamentos para um programa de reconstrução do Haiti, mas as probabilidades de recuperação do país são escassas.

   O presidente da vizinha República Dominicana, Leonel Fernández, propôs um plano de assistência a cinco anos no montante de 10 mil milhões de dólares e o perdão da dívida externa, que à altura do terramoto de 12 de Janeiro ascendia a 891 milhões de dólares.
   Um montante nesse valor superaria os 6 800 mil milhões de dólares disponibilizados para os países da América Central fustigados pelo furacão Mitch, que em 1998 matou cerca de nove mil pessoas, o maior esforço recente de ajuda após uma catástrofe natural na América Latina e nas Caraíbas.

   O Banco Mundial e o FMI tinham perdoado em Junho do ano passado 1,2 mil milhões de dólares da dívida do Haiti, estimando estas instituições que a dívida pública representasse, considerando dados de Setembro de 2008, 36% do PIB que rondaria, por sua vez, os sete mil milhões de dólares.


                              Muita ajuda, pouca eficácia

   A julgar pelos primeiros anúncios de eventuais perdões da dívida remanescente e promessas de ajuda de emergência, superando os 900 milhões de dólares (apesar dos 100 milhões do FMI obrigarem desde logo ao congelamento de salários do funcionalismo público), o Haiti poderá desta feita contar com maior atenção do que em 2008 quando quatro furacões provocaram prejuízos de 900 milhões de dólares, matando cerca de 800 pessoas, e a ajuda externa de emergência mal ultrapassou os 350 milhões de dólares.

   O Haiti recebia em média mais de 700 milhões de dólares por ano em ajuda externa antes do sismo e a capacidade de absorção dessas verbas (equivalentes às remessas dos 2 milhões de emigrantes haitianos nos Estados Unidos, Canadá, República Dominica e França, incluindo os territórios da Guiana, Guadalupe, Saint-Martin e Martinica) mostrava-se diminuta.
   O investimento estrangeiro só no ano passado dera mostras de algum interesse por projectos no sector têxtil e do turismo, e mesmo assim nem correspondia a 10% das verbas chegadas ao país por via das ajudas externas.

   A pletora de Organizações Não Governamentais a operarem no Haiti supria em parte a incapacidade do estado em prover serviços básicos e o Programa Alimentar Mundial provia ajuda a cerca de um milhão de haitianos, mas todas as estatísticas se mostravam confrangedoras e perto de sete milhões de pessoas subsistiam com menos de dois dólares por dia.
   À deflorestação quase total do terço da ilha de Hispaniola que corresponde ao Haiti sucedeu-se o êxodo rural agravado pelo colapso da agricultura comercial incapaz de competir com o arroz e demais produtos alimentares importados dos Estados Unidos.


                                        Sob tutela alheia

   Desde 2004, na sequência do golpe que afastou o presidente Jean-Bertrand Aristide, que a missão militar e policial da ONU, liderada pelo Brasil, assegurava um mínimo de ordem pública e tentava criar condições para a realização de eleições legislativas e presidencias agendadas para este ano, sem que se fosse possível ignorar os riscos de recrudescência da violência política.

   Tudo ruiu com o sismo e a partir deste mês, e por tempo indeterminado o Haiti ficará sob tutela de uma missão reforçada da ONU, que passará dos 9 mil para os 12.500 homens, enquanto os Estados Unidos assumiram a liderança dos esforços de ajuda e segurança mobilizando 11 mil militares.

   A discussão em curso sobre a eventualidade dos Estados Unidos, o Brasil e o Canadá dirigirem em conjunto as operações de segurança, coordenando na prática o fornecimento de ajuda humanitária, até as Nações Unidos e ONG estabeleceram um sistema minimamente integrado de assistência a médio prazo, é apenas um vislumbre do protectorado internacional em que o Haiti se tornará nos próximos anos.

   Os Estados Unidos, constrangidos pelo seu cadastro (ocupação a partir de 1915, conivência com os anos Duvalier, 1957-1986, e inconsequência ante a instabilidade que persistiu depois da intervenção ordenada por Bill Clinton em 1994 contra a administração do general Raoul Cédras), optaram agora por um forte investimento militar, político e diplomático, mas sem garantias de que o país mais pobre do Hemisfério rompa com os ciclos destrutivos que marcam a sua história desde o século XVI.

   A tutela estrangeira corre o risco de rapidamente se ver orientada por alguns interesses estratégicos essenciais: evitar que o Haiti se transforme num pólo de emigração clandestina que destabilize a República Dominicana e um centro de tráfico de droga oriunda da região andina e do México com destino a Puerto Rico e à Florida.

   Num país arruinado, sem instituições civis ou estatais capazes de assegurem serviços mínimos de administração e a prestação de serviços básicos, a tutela internacional será necessariamente prolongada, custosa, susceptível de provocar rancores e rebeliões, e dada a escassa valia estratégica do Haiti os esforços iniciais para auxílio à reconstrução podem bem depressa dar lugar à indiferença e negligência para com uma terra assolada pela inclemência dos homens e da natureza.



Jornal de Negócios
20 Janeiro 2010

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