sábado, 8 de setembro de 2012

A inquietação turca

 Linha Verde, Chipre
   Em meados deste mês as intrincadas negociações para a eventual adesão da Turquia à União Europeia poderão chegar a um beco sem saída depois de Ancara ter recusado cumprir a promessa feita em Julho do ano passado de abrir os seus portos e aeroportos ao tráfego oriundo de Chipre.

   A suspensão das negociações abertas em Outubro de 2005 é uma possibilidade em aberto, ainda que remota, se a Turquia não ceder e os parceiros europeus falharem na tentativa de compromisso que levaria ao levantamento do bloqueio comercial à República Turca do Norte de Chipre.

   Os cipriotas gregos, que em Abril de 2004 rejeitaram em referendo o plano de reunificação proposto por Kofi Annan (73 por cento de votos não) – ao contrário dos cipriotas turcos que o aprovaram com uma maioria de 65 por cento –, bloqueiam quaisquer concessões que possam implicar o reconhecimento tácito da República Turca do Norte do Chipre.

   Em Julho o governo de Tassos Papadopoulos vetou mesmo um pacote de ajudas da União ao norte do Chipre de 139 milhões de euros.

   Desde a entrada de Chipre na União, um mês após o fracassado referendo de 2004, persiste o impasse de uma ilha dividida.

   Os 780 mil habitantes da parte grega gozam dos privilégios da pertença à União e os 260 mil turcos do norte da ilha vivem no limbo de um estado presidido por Mehmet Ali Talat que apenas é reconhecido por Ancara.

   Alargar a Chipre a União Aduaneira estabelecida com a União Europeia no final de 1995 sem assegurar liberdade de circulação e comércio para a minoria turca na ilha é uma impossibilidade política para o governo de Recep Erdogan e receita segura para uma derrota nas eleições legislativas do próximo ano.

                                       Negociações espinhosas

   A questão cipriota é o ponto mais candente das negociações, mas representa apenas uma das questões nomeadas no relatório desde ano da Comissão Europeia em a Turquia foi criticada por alegadas limitações das liberdades religiosa, de expressão, ensino e sindical, discriminação das mulheres e da minoria curda, além de alegações de recurso à tortura, de interferências dos militares em questões políticas, juntando-se ainda ao cadastro o bloqueio fronteiriço imposto à Arménia desde 1993.

   Apesar de ser membro associado da Comunidade Europeia desde 1963 as perspectivas da Turquia vir a conseguir tornar-se estado de pleno direito do clube de Bruxelas dentro de 15 ou 20 anos apresentam-se cada vez mais dúbias.

   O agravamento dos conflitos ideológicos e culturais sobre a integração das comunidades islâmicas residentes nos países europeus é um dos principais factores a reforçar a crescente má vontade das opiniões públicas, sobretudo em estados como a Alemanha, a Áustria e a França, em relação a uma possível entrada turca.

   Os equilíbrios demográficos da União, que conta presentemente com 20 milhões de residentes muçulmanos (4 por cento dos seus 462 milhões de habitantes), seriam significativamente alterados pois a percentagem de muçulmanos subiria para 17 por cento.

   As projecções demográficas apontam, também, no sentido dos actuais 73 milhões de turcos virem a ultrapassar em meados do século a presente população do maior estado europeu, a Alemanha com 82 milhões de habitantes, entre eles 2,2 milhões de origem turca.

   A "associação privilegiada" entre Ancara e Bruxelas como forma de cercear financiamentos (o PIB per capita do país é cerca de 1/3 do português e ronda os 27 por cento da média europeia), limitar a liberdade de circulação de cidadãos turcos e, sobretudo, a participação de pleno direito na tomada de decisões por parte da Turquia, é uma ideia aventada por políticos franceses, alemães e austríacos que tenderá a ganhar cada vez mais aderentes.

   As vantagens estratégicas da entrada turca, seja no domínio de acesso facilitado a mercados fornecedores de gás e petróleo (de que é exemplo o oleoduto aberto este ano que atravessa a Geórgia, ligando Baku ao porto turco de Ceyhan) ou da capacidade de intervenção europeia no Médio Oriente, no Cáucaso e na Ásia Central, tendem a ceder face aos temores provocados pelos imponderáveis da orientação política que poderá originar a presença nas instâncias decisórias da União Europeia de um estado tão nacionalista quanto a Polónia e em que apesar há mais de 80 anos imperar um regime laicista de matriz jacobina a quase totalidade da população mantêm-se fiel à fé islâmica ainda que sem laivos de radicalismo religioso.

   Um número crescente de turcos define-se a sua identidade prioritariamente como muçulmana – entre 51 a 46 por cento, segundo os inquéritos mais recentes –, mas cada vez menos, apenas 9 por cento, se declaram a favor da adopção da lei islâmica tradicional, a sharia.

   O peso da tradicional orientação de esquerda entre a discriminada comunidade alevi, um ramo oriundo do xiismo que agrega entre 20 a 30 por cento dos muçulmanos turcos, contribui para esta contenção do islamismo político em terras da Anatólia e da Trácia.

                                         Desilusões turcas

   A extrema dificuldade nas negociações, as reticências expressas por políticos como Angela Merkel e Nicolas Sarkozy ou a atitude de Ségolène Royale, que se limita a afirmar que acatará a vontade do povo francês em eventual referendo sobre a adesão turca, o impasse cipriota, a polémica em torno do genocídio arménio de 1915, têm assim provocado um constante declinar do entusiasmo da opinião pública na Turquia quanto ao projecto europeu.

   As elites políticas e o mundo dos negócios continuam a apoiar os esforços de adesão, mas em termos gerais a frustração é cada vez maior.

    Os inquéritos do German Marshall Fund mostram a percentagem de turcos que consideram positiva a adesão à União Europeia a diminuir de ano para ano, caindo de 73 por cento em 2004 para 54 por cento dois anos depois, enquanto outras sondagens apontam para níveis de apoio ao projecto europeu inferiores a 40 por cento.

   O incómodo pela presença de Bento XVI na Turquia é apenas mais uma manifestação deste desencanto agravado pelas recentes críticas do papa ao que considera ser o literalismo do Islão, a sua ideia da Palavra Incriada de Deus e o anseio totalitário de submeter toda a sociedade a uma lei que ignora as esferas distintas do político e do religioso.

   Tal patologia visceral chega a justificar a violência como acto religioso no entender de Bento XVI que exige o reconhecimento de direitos de liberdade religiosa e proselitismo às minorias cristãs em terras de Islão como condição fundamental para um diálogo essencialmente intercultural.

   Há dois anos, em plena polémica sobre a referência às "raízes cristãs" da Europa no malogrado projecto de Constituição da União, o então cardeal Ratzinger afirmou publica e reiteradamente que a missão da Turquia deveria resumir-se a "ponte cultural com os países árabes" por via dos seus valores identitários muçulmanos em "contraste permanente" com o ideário europeu de matriz cristã.

   A entrada da Turquia na União Europeia seria, consequentemente, "anti-histórica" e um "grande erro", dizia o Perfeito para a Congregação da Doutrina da Fé.

   Tais profissões de fé críticas do islamismo e da possível adesão da Turquia à União Europeia só poderiam levar a grande maioria dos turcos a ver em Bento XVI um líder religioso que ao fim e ao cabo expressa sem pejo a imensa reticência dos cristãos europeus, para não falar de agnósticos e ateus, frente ao seu país e à sua herança cultural.

   O Vaticano veio a público, entretanto, considerar a questão da adesão da Turquia matéria política acerca da qual se afirma neutral, segundo adiantou recentemente o secretário de estado, Tarcisio Bertone.

   O cardeal italiano afirmou, no entanto "ter esperança de que a Turquia consiga cumprir as condições para entrada na União Europeia", enquanto "o respeito da liberdade religiosa das minorias cristãs" foi referido pelo secretário para as relações com os estados, arcebispo Dominique Mamberti, como requisito fundamental para a integração europeia de Ancara.

   As precisões e rectificações da nova equipa diplomática de Bento XVI, chegam tarde para alterar as percepções prevalecentes na Turquia que, de acordo com uma sondagem do Pew Research Center de Washington realizada em Abril, se traduzem numa apreciação negativa dos cristãos por parte de 71% dos inquiridos. E isto ainda antes da alocução de Bento XVI em Rastibona em Setembro último.

   Papa malquisto na Turquia, dificilmente Bento XVI poderá cumprir o objectivo que atribuiu à sua viagem de "empenhamento na compreensão e diálogo entre culturas".

   Quer o Vaticano, quer a União Europeia alimentam presentemente uma imensa inquietação e desencanto na Turquia.



Jornal de Negócios
29 Novembro 2006

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