quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A complexidade cordial da China

 

   No exterior predomina a imagem de uma China em ascensão irresistível, mas os dirigentes comunistas confrontam-se com o espectro mais persistente da história do Império do Meio: a ameaça do luan, a desordem e o caos que arruína as gentes e derruba os poderes instituídos

   Um contrato para compra de 70 aviões à Boeing no montante de cerca de 4 mil milhões de dólares, a promessa de maior empenho na protecção dos direitos de propriedade intelectual e de prossecução da reforma monetária, além de cooperação acrescida no combate à gripe aviária, resumem os ganhos públicos da estada de George W. Bush em Pequim.

   Os apelos do presidente norte-americano em prol de maior liberdade política e religiosa foram censurados pela comunicação social chinesa e Bush concluiu as conversações com Hu Jintao admitindo a complexidade da relação tida por cordial entre os dois países.

   Na frente económica e financeira a China, com reservas em divisas no montante de 750 mil milhões de dólares, é, presentemente, o segundo maior credor dos Estados Unidos. Em Setembro, Pequim detinha 252,2 mil milhões de dólares da dívida dos Estados Unidos (Tóquio é credor de 687,3 mil milhões de dólares), financiando, assim, os 114 mil milhões de dólares de importações norte-americanas da China, em 2004, metade das quais vendas de multinacionais dos Estados Unidos instaladas no país. As exportações dos Estados Unidos para a China não ultrapassaram os 34,7 mil milhões de dólares no ano passado.

   Terceiro parceiro comercial de Washington, após o Canadá e o México, a China recebeu desde os anos oitenta 29 mil milhões de dólares em investimentos directos oriundos dos Estados Unidos, enquanto o total dos investimentos chineses no exterior se quedava por 35 mil milhões de dólares.

   Em Julho, Pequim valorizou em 2 por cento o yuan, mas apesar da promessa de valorizações progressivas de 0,3 por cento ao dia, chegou-se a Novembro com uma alta adicional de apenas 0,3 por cento da moeda chinesa.

   A veia proteccionista do Congresso de Washington, atormentado pelo défice comercial e pelo apetite aparentemente insaciável do dragão que já representa 12 por cento da procura mundial de energia, alia-se às apreensões do Pentágono quanto à modernização e expansão das capacidades militares de Pequim que, por enquanto, não permitem uma projecção de forças convencionais para além da periferia da China.

   Os temores e impasses de Washington são um exemplo maior dos problemas levantados pela ascensão pacífica da China para usar a terminologia oficial de Pequim e, no entanto, os dirigentes chineses dão, sobretudo, sinais de crescente preocupação com a estabilidade social e política.

   O plano quinquenal 2006-2010, aprovado em Outubro, visa reorientar a economia para promover a prosperidade colectiva, outra forma de referir o combate às crescentes desigualdades.
  
   As regiões costeiras, onde começaram as reformas de Deng, congregam 300 milhões de habitantes e produzem 70 por cento da riqueza nacional. É aí que se concentram 80 por cento dos depósitos bancários detidos por 20 por cento da população que não mostra particular confiança num sistema bancário em que mais de 20 por cento do crédito é tido de cobrança duvidosa ou impossível.

   O rendimento anual de 60 por cento da população chinesa dispersa pelas zonas rurais é, em contraste, inferior a 300 dólares. De pouco lhes vale a intenção oficial de duplicar até 2020 o rendimento per capita para os 3 mil dólares. As autoridades reconhecem que 3 milhões de pessoas participaram em incidentes violentos nas zonas rurais em 2004 e tentam reorientar investimentos para o interior, ante a oposição declarada de regiões avançadas como Xangai, Zhejiang e Jiangsu.

   As assimetrias têm-se agravado à medida que diminui a produtividade agrícola, principal responsável pelo feito histórico de arrancar mais de 300 milhões de chineses à situação de pobreza absoluta nas décadas de 80 e 90.

   Com 120 milhões de trabalhadores migrantes, excedentários na economia rural, e menos de 1/5 da mão-de-obra empregada nas indústrias de transformação, extracção mineira e na construção, o governo de Pequim confronta-se com as projecções que apontam para um crescimento da população urbana dos actuais 520 milhões para 800 ou 900 milhões em 2020.

   A implicação mais imediata é o aumento do consumo de energia. Nos dois últimos anos as taxas de crescimento económico na ordem dos 9 por cento levaram a um aumento do consumo energético em 15 por cento, o dobro no caso do petróleo, sendo 75 por cento da electricidade produzida a partir do carvão com danos ambientais insustentáveis.

   A desflorestação e erosão dos solos afectam 37 por cento do território chinês e se 300 milhões de pessoas ainda não têm acesso a água potável, apenas 25 por cento das águas residuais domésticas são tratadas. As reservas de água serão insuficientes para prover às necessidades em 2030 quando a população total atingir 1,6 mil milhões de pessoas, segundo os estudos oficiais.

   São estes números e a exasperação provocada pela crescente conflitualidade social e as expectativas frustradas das regiões deprimidas que preocupam os dirigentes comunistas.

   O comércio externo representa 37 por cento do PIB, mas menos de 1/5 das exportações podem ser classificadas como produtos de alta tecnologia e, em qualquer dos casos, 85 por cento dos artigos de alto valor acrescentado são produzidos por empresas estrangeiras.

   A criação de emprego para 900 milhões de pessoas em idade laboral, segundo as previsões para 2020, não pode ser assegurada pelo sector exportador (ainda que a percentagem da China nas exportações mundiais ronde, actualmente, apenas os 6 por cento) e é preocupante que o peso do consumo interno no crescimento económico tenha vindo a baixar nos últimos vinte anos, cifrando-se, em 2004, em 53,6 por cento.

   Os deploráveis níveis de saúde pública, o baixo investimento na educação, a diminuta inovação tecnológica e a corrupção endémica são outros desafios reconhecidos pelo regime autoritário de Pequim.

   É paradoxal, mas enquanto no exterior predomina a imagem de uma China em ascensão irresistível, os dirigentes comunistas confrontam-se com o espectro mais persistente da história do Império do Meio: a ameaça do luan, a desordem e o caos que arruína as gentes e derruba os poderes instituídos.


Jornal de Negócios
23 Novembro 2005


 

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