domingo, 16 de setembro de 2012

Timor: matai-vos uns aos outros

East Timorese gangs throw rocks with sling shots (photo: by Paula Bronstein /Getty Images)
 
 
 
   Uma cultura de violência, a intransigência do herói e do clã que não perdoam insultos, são constantes da história de Timor-Leste que se agravaram desde os tempos da guerra civil de 1975 e só pioraram no clima de brutalidade da ocupação indonésia.

   Após a independência, em Maio de 2002, bandos de jovens e ex-guerrilheiros continuaram a alimentar confrontos.

  No início de Dezembro de 2002 motins em Díli provocaram dois mortos e o primeiro-ministro Mari Alkatiri viu a sua casa incendiada.

   Há dois anos uma revolta nas forças armadas e na polícia, com forte carga de confronto entre grupos étnicos das regiões ocidentais e orientais de Timor-Leste, acabou com qualquer arremedo de autoridade do novo estado. 

   Desde então Timor-Leste ficou irremediavelmente sob tutela de segurança de forças internacionais e tornou-se um dos territórios mais problemáticos para a Austrália no arco de crises da área de influência de Canberra que se estende da Papua Nova Guiné até às ilhas Salomão.

                                    Um arremedo de Estado

   O exército timorense está reduzido a 715 homens (2/3 oriundos das províncias orientais de Baucau, Lautém e Viqueque) e a polícia, marcadamente corrupta, brutal e inoperante, conta com 3 207 efectivos.

   Um milhar de soldados australianos e cerca de 1 600 polícias da ONU são a rede de segurança que evita o reacender de conflitos generalizados. 

   A Igreja Católica ganhara influência e peso político em mais de duas décadas de ocupação, mas terminou envolvida nas lutas partidárias (e aqui se extraviou de alguma forma D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau, bem menos convulsivo do que o atormentado, intransigente e heróico D. Ximenes Belo) e assim se perdeu a capacidade de mediação e moderação de conflitos entre timorenses que os sacerdotes tinham assumido depois de 1975.

   Xanana Gusmão e Ramos-Horta entraram em rota de colisão com a Fretilin de Mari Alkatiri e tornou-se impossível qualquer acordo para a edificação de uma administração pública, a criação de um sistema judicial independente e a adopção de uma política de desenvolvimento minimamente consensual.

   As divergências entre os líderes partidários levaram a que a Fretilin não reconhecesse legitimidade ao governo que Xanana Gusmão formou em Agosto e impediram que Alfredo Reinado fosse presente à justiça, com Ramos-Horta a contestar inclusivamente decisões do estrito foro judicial.

   Entre trocas de acusações sobre manipulações de desertores e revoltosos – a Fretilin  afirma que a crise do primeiro semestre de 2006 só deflagrou depois de tentativas infrutíferas de forças estrangeiras para levarem as chefias das forças armadas a derrubar Alkatiri – sobrou ainda o descrédito da capacidade de dissuasão e imposição da ordem de soldados e polícias, australianos, portugueses e neozelandeses.

  O resto resume-se a mais um momento de desordem em que bandos armados se lançaram num ajuste de contas, dizendo-se traídos e tentando um golpe furibundo de contornos obscuros.

   Por cá pode parecer violência alucinada, mas acontece numa terra onde cem mil refugiados subsistem por conta da caridade alheia e o grito de revolta do guerreiro faz valer a honra do clã e, no caso de Reinado, a bravata e o desafio ao malai (estrangeiro) aziago e torpe.
  
                      Acumulai dólares que os pobres vos contemplam

    Em 2006 o PIB de Timor-Leste cifrava-se em 365 milhões de dólares, segundo estimativa do Banco Mundial que registava um crescimento negativo nesse ano de 1,6 por cento.

   Desde a independência não se registou qualquer incremento nos rendimentos da população, apesar da inflação nos centros urbanos de Díli e Baucau ter superado os 10 por cento no ano passado.

   O rendimento anual per capita ronda os 750 dólares e metade da população, que já ultrapassa um milhão de almas, subsiste com menos de um dólar por dia.

   A taxa de fertilidade de 7,8 por cento aponta para que a população triplique até 2050 e é praticamente nula a criação de emprego.

   O sector formal da economia cria apenas 400 empregos para os 15 mil jovens que entram anualmente no mercado de trabalho, de acordo com o Banco Mundial.

   O desemprego entre os jovens – metade dos timorenses tem menos de 18 anos – é, consequentemente, superior a 50 por cento, atingindo níveis ainda mais elevados em Díli e Baucau.

  O Fundo Petrolífero acumulava a 31 de Dezembro de 2007 2 mil milhões de dólares e este montante aumenta à média de 100 milhões de dólares por mês.

   No último ano fiscal, entre Junho de 2006 e Junho de 2007, 260,07 milhões de dólares foram transferidos do Fundo Petrolífero, mas a Autoridade Bancária e de Pagamentos chegou ao final deste período com 248 milhões de dólares disponíveis para aplicações em projectos governamentais por utilizar.

   A incapacidade de o governo planear e executar o orçamento (cifra-se em apenas 348,1 milhões de dólares – 237,6 milhões de euros – para o ano fiscal de 2008) redunda em excedentes financeiros em contraponto às carências de investimentos em infra-estruturas e serviços.

   Neste quadro de insuficiências estruturais a ajuda externa, caso dos 60 milhões de euros (cerca de 81,6 milhões de dólares) previstos por Portugal entre 2007 e 2010, metade dos quais para os sectores da Justiça e Educação, depois dos 381 milhões de euros (cerca de 519 milhões de dólares) disponibilizados por Lisboa entre 1999 e 2006, assume uma importância relativa ante a incapacidade do estado timorense mobilizar recursos disponíveis.

   O resto é a luta política pela criação de sistemas de patrocínios que sustentem clientelas num estado que arrisca assumir as características mais negativas de um regime sustentado pelas receitas de hidrocarbonetos, relegando o grosso da população para uma economia de autosubsistência agrícola e pobreza generalizada.       
  
                                     O novo mandamento       

   Nas igrejas de Timor ouve-se muito a exortação de Cristo aos apóstolos, conforme reza o Evangelho segundo São João: “Dou-vos um novo mandamento: que vos amais uns aos outros; que vos amais como Eu vos amei. Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”

   Por certo que o mandamento cristão é universalmente vilipendiado, mas no caso de Timor acresce ter muito pouco a ver com os valores guerreiros e de identificação aos clãs típicos das culturas tradicionais da metade oriental da ilha.

   O catolicismo, por outro lado, arreigou-se durante a ocupação indonésia como uma religião de desafio e resistência aos “javardos”, tal como eram denominados os javaneses.

   À violência, ao arbítrio e à corrupção a maioria dos timorenses respondeu com o desrespeito total pela legitimidade das instituições, com excepção da igreja católica.

   As convulsões de 1999, o colapso económico, o desmantelamento das estruturas administrativas e a impunidade dos responsáveis por actos de violência geraram ainda maior contestação a todas as formas de autoridade.

   Os inquéritos sociológicos realizados em Timor-Leste, especialmente a jovens, constatam a exasperação provocada por expectativas defraudadas e, muito em particular, pelas bosok (mentiras) de líderes políticos que terão traído o povo kiik (a arraia-miúda).

   O resultado é a alienação face ao estado e o desregramento da violência.
Entre os deserdados da guerrilha, os jovens revoltados e os marginalizados vai crescendo a prevalência do mandamento da força.



Jornal de Negócios
14 Fevereiro 2008

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