domingo, 9 de setembro de 2012

Outro Verão de guerra no Médio Oriente


Mavi Marmara

   Já se vinha notando que o governo de Jerusalém não mede bem as consequências dos seus actos e o ataque aos navios que transportavam ajuda humanitária para Gaza é apenas mais um passo numa escalada que degenerará em grave dano para Israel.

   O ataque aos navios mobilizados por organizações pró-palestinianas, incluindo apoiantes do Hamas, teve um cunho acentuadamente violento, deixando perceber uma acção premeditada e previamente autorizada ao mais alto nível.

   A operação dos comandos israelitas, notoriamente mal montada com recurso essencialmente a forças helitransportadas, não excluía à partida o uso de força letal, no que pode ser entendido como uma acção exemplar de dissuasão.

   A alternativa de interceptar os navios na zona de bloqueio fora excluída, depois do movimento Free Gaza ter recusado entregar a carga em portos israelitas para posterior envio para Gaza sob supervisão israelita .

   Romper o bloqueio a Gaza era o objectivo declarado dos militantes pró-palestinianos e seus apoiantes que, desde o Verão de 2008, têm vindo a organizar o envio de ajuda humanitária por via marítima.

   As primeiras cinco iniciativas foram actos de pouca monta e chegaram a bom porto, mas depois dos confrontos no final de 2008 entre as forças israelitas e o Hamas, Israel passou a impedir a atracagem.

    A última investida a ter sucesso implicaria o risco de romper de vez o bloqueio marítimo e poderia dar lugar a novas iniciativas ainda mais espectaculares.

   O governo de Jerusalém optou por uma acção de força para salvaguardar um objectivo tido por essencial: o bloqueio do território controlado pelo Hamas.

    As autoridades israelitas violaram a lei internacional ao atacar e apreender os navios, seus tripulantes e passageiros, fora do limite de 20 milhas náuticas da águas territoriais de Gaza onde Israel impõe um bloqueio marítimo.

                                     Os Goyim que se danem!

   Os estrategos israelitas voltaram, contudo, a pecar por arrogância e deixaram-se levar por um crescente sentimento de impunidade derivado de anos de políticas de ocupação, segregação e ataques militares contra inimigos intratáveis (civis, militares ou terroristas, sem distinção) que aparentemente legitimam qualquer abuso desde que esteja assegurado o respaldo em último recurso dos Estados Unidos.

   O bloqueio a Gaza imposto após o golpe do Hamas contra a Fatah em 2007 não cumpre presentemente objectivos de segurança úteis.

   É uma punição colectiva a milhão e meio de palestinianos com gravíssimas consequências humanitárias.

   Israel permite alguns abastecimentos de forma limitada e com uma lógica estranha e medidas arbitrárias: são autorizadas, por exemplo, importações de chá, café, e canela, mas proíbe-se o chocolate, os coentros ou brinquedos de plástico.

   Para cimento ou artigos de metal são exigidas garantias de que não se destinem à construção de bunkers ou lançadores de mísseis para os combatentes do Hamas.

   O contrabando via Egipto, que abarca desde artigos de consumo corrente a armas e Mercedes, não obsta a que 10 por cento do milhão e meio de palestinianos de Gaza sofram de subnutrição e a economia local acumule "danos irreversíveis", segundo a ONU.

    O Hamas factura politicamente, não desarma, tem sempre em reserva a alternativa de lançar ataques que provoquem uma retaliação e, assim, limita as escassas alternativas da Fatah de Mahmoud Abbas acantonada na Cisjordânia.

   O governo de Benjamin Netanyahu ao afirmar que Israel exerceu um direito de autodefesa face a uma provocação política de apoiantes violentos de terroristas lançou mais achas à fogueira.
  
   Impera a ideia de que os Goyim, os gentios, já foram complacentes num Holocausto e nunca entenderão as necessidades de defesa de Israel contra a intransigência e vontade dos árabes (e persas) de aniquilarem todos os judeus.

   Israel fará o que tiver de ser feito e os Goyim que se danem!

                        Um calimero sem graça e sem norte

   Um pequeno estado, dependente de uma rede internacional de suporte, não pode deixar-se enlear numa imagem de intransigência e violência desproporcionada que aliena cada vez mais apoios políticos.

   Israel arrisca ser tido como um calimero nuclear; uma potência militar disposta a tudo, sempre de dedo no gatilho, e que se queixa de ser incompreendida.

   Em vez de cultivar alianças regionais e globais numa lógica de contenção pela força em último recurso, Israel enveredou pela prepotência em territórios ocupados, sob tutela e bloqueados, sem considerar qualquer hipótese negocial como se evidencia pela expansão dos colonatos judeus na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental.

    O calimero israelita, que tem todas as razões para temer o ódio dos vizinhos, recusa, no entanto, negociar concessões a qualquer potencial aliado ou entidade não-hostil e limita-se ao curto prazo quando a demografia, a começar pelo peso dos ultra ortodoxos judeus (que acentua o cunho étnico-religioso do estado) e dos árabes em Israel (cuja discriminação põe em causa o regime democrático), mostrar ser insustentável persistir nessa política.

   A degradação das relações com a Turquia governada pelos islamitas moderados de Recip Erdogan, que já se vinha acentuando desde os confrontos em Gaza em 2008, priva Israel do único aliado histórico que lhe restava no Médio Oriente depois do Irão passar a inimigo fatal com a revolução khomeinista de 1979.

   O Egipto terá cada vez maior dificuldade em justificar o seu próprio bloqueio a Gaza e sobram para árabes israelitas, 20 % da população, apelos a uma terceira Intifada.

   O Hizballah no Líbano e seus apoiantes iranianos ganham pretextos para vingar a invasão do Verão de 2006 que, aliás, se saldou por um malogro estratégico para Israel e degradou ainda mais a imagem de eficácia e superioridade militar e moral das forças armadas posta em xeque desde a guerra do Líbano de 1982 e da Intifada de 1987.

   Depois de ter hostilizado a administração Obama com a construção de novos colonatos pondo em causa aquilo que deveria ser, segundo suas próprias alegações, o objectivo fundamental de ganhar apoio diplomático para conter o programa militar nuclear do Irão, o governo de Jerusalém continua a disparar e disparatar em todas as frentes.

   Um destes dias alguém na Casa Branca poderá vir a retomar a tirada equívoca do general De Gaulle em 1967 crismando todo o povo judeu, confundido com a política momentâneo de certos governos, como nação segura de si e dominadora em detrimento de todos os outros.

                                  Outra guerra vinha a calhar

   Uma das tentações para sair do impasse passa por exacerbar tensões de modo a provocar uma vaga de atentados terroristas ou ataques militares contra Israel - sempre justificados na lógica de extermínio anti-judaico prevalecente entre islamistas, largo espectro de nacionalistas árabes e em Teerão - que legitime uma retaliação em força.

   Uma guerra eventualmente bem sucedida, ao contrário do que ocorreu no Líbano em 2006, ou repetidas vezes em Gaza, permitiria no curto prazo a Israel ganhar fôlego ainda que a noção estratégica de coexistência no Médio Oriente tivesse de aguardar por melhores dias.

   Tem um problema: os judeus preservaram tradições para reinventarem uma ideia de nação que suscitou um projecto de estado reivindicado pela força e através de uma ocupação de tipo colonial no século XX não podem limitar-se a expedientes de curto prazo.

   Ameaça-os uma solidão temível ao perderem o norte e remeterem-se a expedientes de guerra num meio hostil.




Jornal de Negócios
02 Junho 2010

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