domingo, 9 de setembro de 2012

O Iraque depois do fracasso

Iraqis view burnt and damaged vehicles, after a suicide car bomb attack, in Kirkuk, 290 kilometers (180 miles) north of Baghdad, Iraq, Sunday Sept.17, 2006.

A series of five bomb attacks including two suicide car bombings in the northern city of Kirkuk Sunday left more than 20 people dead and nearly 80 wounded, police said.

Picture: AP/Yahya AhmedKirkuk, 17 Setembro 2006

  A amplitude da derrota republicana nas eleições do próximo mês determinará os termos da revisão da política norte-americana face ao Iraque, mas o fracasso estratégico de Washington é já uma realidade incontornável.

   O reforço da presença militar norte-americana em Bagdade, iniciado em Junho para tentar controlar a violência sectária na capital, não produziu resultados e a insegurança continua a aumentar nas províncias sunitas ao mesmo tempo que eclodem confrontos entre milícias xiitas.

   As rivalidades étnicas e as conivências com as diversas milícias impossibilitam que as forças policiais e militares iraquianas se assumam como garante de segurança, tornando vãs as promessas do governo central de controlar directamente metade das 18 províncias do país dentro de um ano.

   Seis meses após ter assumido o cargo de primeiro-ministro, o xiita Nuri al Malik é incapaz de assegurar o mínimo de consenso que permita dar corpo ao plano de reconciliação nacional ao mesmo tempo que as autoridades centrais não conseguem prover serviços básicos de fornecimento de electricidade e água, cuidados de saúde e saneamento.

   Todos os esforços de investimento e reconstrução estão condicionados pela deterioração das condições de segurança que provocaram mais de meio milhão de mortes nos últimos três anos e pelas deslocações de população que já levaram 1,6 milhões de iraquianos a deixar o país e condenaram outro milhão e meio à situação de refugiados internos.

  As recentes negociações encetados pelos militares norte-americanos com líderes tribais e grupos de guerrilheiros sunitas, excluindo, segundo as primeiras indicações apenas as facções ligadas à Al Qaeda – que representam menos de 10 por cento dos cerca de 20 a 40 mil insurrectos activos nas províncias ocidentais e no centro do Iraque – estão condenadas ao fracasso à medida que se acentua a preponderância das milícias xiitas do Exército do Mahdi, liderado por Moqtada Sadr, e da Organização Badr, o braço armado do "Conselho Supremo para a Revolução Islâmica".

                                 Bancarrota dos acordos políticos

   As garantias dadas este ano pelo embaixador norte-americano Zalmay Khalizad a líderes sunitas de que uma eventual reorganização administrativa implicaria uma partilha equitativa das receitas petrolíferas e o direito de veto sobre questões essenciais de segurança, relações externas e representação política caíram por terra.

   Os partidos xiitas impõem a sua lei no sul do país e nas áreas de maioria xiita de Bagdade e as regiões curdas praticamente não reconhecem a autoridade do governo central, reservando-se o direito de secessão.

   A estabilidade da região norte de maioria curda está, no entanto, sujeita a vagas periódicas de atentados terroristas sobretudo em Kirkuk, a sua capital petrolífera, disputada por curdos, árabes sunitas e xiitas, cristãos e turcomenos.

   Na inexistência de condições para a consolidação de um governo central que, através de um pacto de federação e suportado por um exército fiável e eficaz, possa impor a sua autoridade política e administrativa a todo o país, a discussão de calendários de retirada dos 140 mil militares norte-americanos e dos 7200 britânicos acantonados na região de Bassorá apenas agrava as dissensões étnicas.

   A proliferação de poderes locais e regionais de base clânica, tribal e étnica, bem como a multiplicação de bandos criminosos armados, é uma consequência irreversível a médio prazo da dissolução do estado central dominado pelos sunitas na era de Saddam Hussein e nenhuma potência exterior está em condições de impor os termos de uma eventual partilha do país.

   Mesmo um improvável acordo de princípio entre os Estados Unidos e o Irão sobre o estatuto da maioria xiita num estado independente ou como entidade preponderante num estado unitário ou federal não garantiria o termo das rivalidades entre as diversas facções xiitas, pouco propensas, aliás, a aceitar a tutela persa, e confrontar-se-ia com a oposição das restantes comunidades.

                                   Partilhas sangrentas

   Uma partilha do Iraque em três entidades, concedendo "grosso modo" as províncias do norte aos curdos, as regiões centrais aos sunitas e o sul aos xiitas, seguindo o modelo de administração otomano, implicaria um banho de sangue entre os sete milhões de habitantes de Bagdade e uma sistemática limpeza étnica de contornos tão selváticos quanto a divisão do Raj em 1947.

   Tal cenário seria agravado, ao contrário do que aconteceu com as independências da Índia e do Paquistão, pela forte possibilidade de intervenção das potências vizinhas, nomeadamente da Turquia temerosa de um eventual estado curdo independente, dos países de maioria sunita, como a Jordânia ou a Arábia Saudita e, naturalmente, do Irão, além de poder fazer perigar o domínio dos alauítas na Síria.

   Outra forma de partilha segundo o modelo confessional que vingou no Líbano a partir dos anos quarenta é inviável dado o passado recente de violência extrema e a desproporção entre as diversas comunidades: cerca de 65 por cento de xiitas, 20 por cento de sunitas, percentagem similar de curdos, além de minorias turcomenas e assírios, entre outras, entre os 27 milhões de habitantes do país.

   A incapacidade do exército (cerca de 130 mil homens) e das forças policiais (aproximadamente 150 mil efectivos) demonstrarem unidade e eficácia – o que, simultaneamente, afasta a tradicional solução do poder ditatorial de junta militar ou homem-forte -, bem como a existência de potências vizinhas com interesses divergentes quanto à estabilização e, sobretudo, neutralização do Iraque, tornam, também, irrelevante a opção do modelo confessional libanês.

   Ante o paradoxo da presença militar estrangeira ser factor de conflito e, simultaneamente, único freio à guerra civil aberta e generalizada, Washington e Londres estão, agora, sem condições políticas para reforçar os seus efectivos – uma iniciativa que, de qualquer modo, nesta fase já não conseguiria evitar a erosão do estado iraquiano – e condenadas a procurar formas de retirada a curto prazo.

                                     Sem margem de manobra

   A oposição das opiniões públicas na Grã-Bretanha, na Austrália (parceiro menor com cerca de 1 400 militares) e, mais recentemente, nos Estados Unidos, à continuação da presença militar no Iraque obrigam, portanto, a limitar dados junto dos respectivos eleitorados, mas retiram margem de manobra negocial.

   A consolidação de um regime democrático num estado unitário ou federal, com uma aliança preferencial com os Estados Unidos, está, presentemente, fora de consideração.

   Um regime ditatorial que assegure a unidade estatal do Iraque é inviável devido à fraqueza e cisões nas forças militares e de segurança e por motivo da força e proliferação de milícias xiitas, sunitas e curdas.

   A hipótese mais crível aponta no sentido do aumento da violência e confrontos tribais, clânicos e étnicos e à emergência de centros de poder locais e regionais autónomos que poderão conduzir à partilha de facto do país, sacrificando, sobretudo, os interesses da minoria sunita, privada das receitas do petróleo.

   Por mais voltas que a administração Bush tente dar ao problema o facto essencial é que a sua intervenção militar ameaça conduzir à desagregação do estado iraquiano e destabilizar a região que vai Golfo Pérsico, ao deserto da Síria, passando pelo Curdistão.

   Só o Irão verá a sua posição estratégica reforçada com o colapso do estado que nos anos oitenta foi a principal força de contenção com que os Estados Unidos contaram para se opor ao regime de Khomeini.

Jornal de Negócios
26 Outubro 2006

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