sábado, 8 de setembro de 2012

As cem horas de Pelosi e os 804 dias de Bush





   Nancy Pelosi, a primeira mulher a presidir à Câmara de Representantes, anunciou um plano parcimonioso para as suas primeiras cem horas como terceira figura da hierarquia do estado norte-americano que, a ser bem sucedido, contestará a iniciativa política em matéria de política interna de George W. Bush nos 804 dias que lhe restam de mandato presidencial.

   A milionária de São Francisco pretende levar a maioria democrática a votar, nomeadamente, o aumento do salário mínimo de 5,15 para 7,25 dólares/hora, a redução para metade das taxas de juro nos empréstimos a estudantes, uma diminuição dos preços dos medicamentos cobertos pelos seguros de saúde Medicare – abrangendo mais de 40 milhões de cidadãos, na esmagadora maioria com mais de 65 anos – e, na vertente anticorrupção, um pacote de reforma do sistema de "lobbying" no Congresso.  

   O ímpeto político que os democratas venham a ganhar na sua batalha minimalista das cem horas legislativas e nas nomeações para as principais comissões da Câmara de Representantes poderá, no entanto, ser contido caso os republicanos tenham conseguido manter o controlo do Senado.
                            
                                        A vitória curta

   Considerando a hipótese de o Partido Democrático ter recuperado a Câmara de Representantes, mas falhado o Senado, dificilmente os opositores de Bush poderão concretizar a partir de Janeiro o seu programa "Um novo rumo para a América" que preconiza, designadamente, a adopção de um calendário para a retirada do Iraque e a transferência das responsabilidades de segurança para o governo de Bagdade, o reforço do contingente militar empenhado na captura de Bin Laden, a redução dos impostos para as classes médias e a limitação de deduções fiscais para rendimentos elevados e companhias petrolíferas, além da recusa da privatização parcial do sistema de reformas.

   A necessidade de negociar acordos com uma maioria republicana no Senado poderá conduzir a alguns compromissos viáveis em matéria de políticas de imigração ou comercial – acentuando, no entanto, o pendor proteccionista face à concorrência internacional – e consensualizar iniciativas legislativas para maior eficiência energética, investigação de energias alternativas ou o programa de reforma do ensino primário e secundário promovido pela presidência Bush.   

   A margem de compromisso é, apesar de tudo, reduzida, se a maioria no Senado for liderada pelo republicano Mitch McConnel.

   As classes médias, com rendimentos inferiores a 75 mil dólares/ano, não beneficiaram do crescimento económico registado após a recessão de 2001 e mostram-se particularmente sensíveis às turbulências conjunturais, apesar do baixo nível de desemprego que se cifra em 4,4 por cento. Eventuais inflexões significativas nas intenções de voto poderão, assim, ocorrer nos próximos anos.

   Não tendo a Casa Branca recolhido benefício eleitoral da recuperação económica dos últimos cinco anos e claudicado em áreas fundamentais como os objectivos da guerra no Iraque, a luta antiterrorista, a probidade orçamental e a contenção do despesismo do governo federal – cifrado num aumento anual de 3,1 por cento no primeiro quinquénio da presidência Bush  –, além de deixar alastrar impunemente o cadastro de corrupção e imoralidades, é crível que os democratas venham a pressionar em todas estas questões através de comissões de inquérito de modo a pôr em causa a competência administrativa de Bush e os chamados valores morais caros aos republicanos. 

   Uma inflexão centrista por parte da Casa Branca em busca de compromissos legislativos confronta-se com a questão incontornável de reconhecimento do fracasso iraquiano e com a incoerência da maior parte dos líderes democratas em articularem uma estratégia de retirada militar que consiga preservar um vislumbre mínimo de estabilidade e integridade do estado no Iraque.
                                     
                                    Tiro de partida para 2008

   Esta quarta-feira marca o tiro de partida para as presidenciais de 2008 e nenhum putativo candidato à Casa Branca – da inevitável Hillary Clinton ao impoluto John McCain, passando pelo promissor Barack Obama e o consagrado Rudolph Giuliani – estará disposto a sacrificar as suas aspirações por um compromisso que salve a face a George W. Bush.

   A impossível pacificação do Iraque será uma das questões fundamentais com que se confrontarão os candidatos presidenciais e todos eles terão de se assumir contra a política de Bush no Iraque e as usurpações de poderes por parte da Casa Branca na chamada luta antiterrorista.

   A contestação dos abusos do privilégio executivo será, no entanto, mais fácil de levar a cabo pelos democratas e seus previsíveis candidatos presidenciais do que a definição de uma estratégia de retirada do Iraque efectiva que evite dar o flanco a acusações de derrotismo.

   Reza a história eleitoral norte-americana que para gerir o fracasso de uma intervenção militar falhada um candidato presidencial se obriga a aventar estratégias mais latas e de consequências imprevisíveis em prol de novos arranjos geoestratégicos.

   À imagem de um Eisenhower, atolado na Coreia, ou de um Nixon, perdido na Indochina, alguém terá de assumir que falhar no Iraque acarreta avançar com propostas arrojadas frente ao Irão, à Palestina, a Coreia do Norte ou, noutra vertente, assumir a impossibilidade dos Estados Unidos continuarem a ignorar as suas responsabilidades na questão maior do controlo das emissões de gases com efeito de estufa.
 
                                               O patinho coxo

   Se Harry Reid tiver garantido a liderança de uma maioria democrata no Senado a sua dinâmica de vitória condenará a Casa Branca a um arrastado confronto com comissões conjuntas do Congresso que escrutinarão todos os fiascos da administração republicana.

   Bush recorreu apenas uma vez ao veto presidencial para impor, em Julho, a manutenção das restrições de financiamento federal à investigação sobre células embrionárias estaminais, mas, a partir de agora, é de esperar que o veto venha a revelar-se a opção por excelência numa Casa Branca cercada tal como aconteceu a Bill Clinton em 1994, dois anos após a sua eleição – e anteriormente a Ronald Reagan –, mas sem que George W.Bush manifeste dotes de subtileza para negociar compromissos, apesar das recentes evocações da sua experiência como governador em Austin.

   John Bolton deixará a ONU, a demissão de Donald Rumsfeld será inevitável e, mesmo com um Supremo Tribunal de orientação maioritariamente conservadora, a capacidade da Casa Branca recuperar a iniciativa legislativa revelar-se-á diminuta. 

   Imperará o gridlock, o impasse, cujas consequências negativas também poderão prejudicar os democratas e, sobretudo, os seus senadores com ambições presidenciais.

   A quota de aprovação de Bush é inferior a 40 por cento, mas a actuação do Congresso de maioria republicana desde 1994 (excepto o breve interlúdio entre Maio de 2001 e Novembro de 2002 em que os democratas beneficiaram da deserção de um senador republicano num altura em que o Senado estava repartido equitativamente e o vice-presidente Dick Cheney assegurava o voto de desempate) é ainda pior não atingindo sequer os 30 por cento.

   Transformar a Câmara de Representantes e o Senado num palco de campanha sistemática de obstrução e inquérito apresenta, consequentemente, sérios riscos de credibilidade para os democratas.

   Depois da reeleição de 2004, Bush não conseguiu fazer aprovar os planos de autorização de descontos parciais para fundos privados de segurança social ou de legalização de imigrantes clandestinos e é ainda menos crível que, agora, possa avançar com iniciativas capazes de cativarem uma Câmara de Representantes hostil – independentemente do aumento do número de representantes democratas conservadores – quanto mais um Congresso dominado pelo partido democrático.

   Um presidente desacreditado é uma danação para um partido vencido depois de doze anos de maioria no Congresso e uma ameaça para qualquer candidato republicano à Casa Branca. Tanto basta, portanto, para que Bush corra o risco de penar 804 dias de solidão política e muito por culpa dos seus pares. 

   Conclua-se, apesar de tudo, com a mera consideração de que, ainda que uma vaga revanchista dos democratas possa vir a mostrar-se contraproducente, é bem provável que a inclemência das crises que assolam o vasto mundo venha a condenar as hostes republicanas e democratas a um confronto particularmente virulento.

Jornal de Negócios
08 Novembro 2006

http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=285422

   As eleições de 7 de Novembro saldaram-se por 233 mandatos democratas contra 202 republicanos na Câmara de Representantes.
   No Senado registou-se um empate 49-49, com 2 independentes dispostos a alinhar com o Partido Democrático. (Nota de Setembro 2012)

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