quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Machado e bisturi


 

   O futuro próximo da política externa dos Estados Unidos vislumbrou-se numa troca de argumentos entre Barack Obama e John McCain no debate de sexta-feira.
   O candidato democrata, evocando a perícia e precisão do cirurgião e do seu bisturi para a inevitável cirurgia de cortes orçamentais, declarou que era preciso por termo à guerra no Iraque.
   Obama, sem delongas, sublinhou que a guerra custa aos Estados Unidos 10 mil milhões de dólares por mês numa altura em que Bagdad dispõe de um excedente orçamental de 79 mil milhões de dólares.
   O senador republicano na sua réplica denunciou despesas incontroladas e afirmou que Washington dispensava 700 mil milhões de dólares por ano a países que nem apreciam particularmente os Estados Unidos. McCain exigiu firmeza, mas não esqueceu de mencionar 500 mil milhões de dólares de dívidas para com a China como exemplo dos constrangimentos orçamentais.
   Dois dias antes a Câmara de Representantes aprovara um orçamento para o Pentágono, contemplando 621,5 mil milhões de dólares em programas de defesa nacional no ano fiscal que começa a 1 de Outubro.
   No próximo orçamento, seja à machadada, seja pelo corte de bisturi, as amputações vão obrigar a uma reavaliação dolorosa das capacidades de projecção do poder e influência de Washington.

                                            Cálculo político

   Os custos mais pesados do resgate e saneamento do sistema bancário e financeiro vão fazer-se sentir com maior virulência sobretudo nos primeiros dois anos da próxima administração.  
   Um presidente republicano terá uma margem de manobra limitada ante um Congresso de maioria democrata, mas Obama confrontar-se-á com a necessidade de não alienar a sua base política de apoio.
   Uma administração democrata terá de evitar que o abrandamento económico ou uma eventual recessão comprometam as eleições para o Congresso de 2010 e as perspectivas de reeleição presidencial.
   A estratégia política dos democratas implica evitar uma perda das maiorias na Câmara de Representantes e no Senado tal como sucedeu em 1994 a Bill Clinton, dois anos após a sua eleição.
   É neste condicionalismo político que serão negociados cortes no orçamento que terão, no entanto, de preservar o essencial das opções de defesa e ajuda militar e civil ao estrangeiro.
   Uma redefinição de prioridades estratégicas é limitada pelo arco de crises em que estão implicados interesses dos Estados Unidos.
   Mesmo que não se verifique um agravamento da situação no Iraque a transferência de recursos para o teatro de guerra no Afeganistão não possibilitará economias nos 68,6 milhões de dólares que em 2009 foram orçamentados para operações militares nos dois países.
   Os 45 mil milhões de dólares anuais em ajuda militar para aquisição de armamento aos Estados Unidos não deverão sofrer alteração de maior ainda que os principais beneficiários, Israel e o Egipto com uma quota superior a 80 %, possam ver diminuir um pouco a sua posição relativa.
   Washington tentará até, graças os financiamentos de ajuda militar, aumentar a quota de 52 % nas vendas internacionais de armamento que, segundo os últimos dados disponíveis relativos a 2006, supera largamente o competidor mais próximo: a Rússia com 21%.
   A instabilidade no Paquistão, a crise de sucessão de Mubarak no Egipto, a aliança com Israel, o programa de combate ao narcotráfico na Colômbia e a prevista ampliação deste tipo de cooperação ao México, não permitem cortes na ajuda dispensada aos principais beneficiários de Washington.
   A eventualidade de um confronto com o Irão, a tensão na península coreana e o aumento dos orçamentos militares da China e da Rússia tão pouco facilitarão a redução das despesas com defesa. O abandono de alguns programas de armamento convencional ou de iniciativas controversas, como o sistema de radares e baterias anti-mísseis na República Checa e na Polónia, será compensado por investimentos em projectos de militarização do espaço.
   Ambos os candidatos pretendem aumentar os efectivos nos corpos do exército e fuzileiros (750 mil no activo na proposta de Obama e 900 mil segundo McCain) e, consequentemente, se as despesas com defesa não podem continuar a crescer ao ritmo imposto pela administração Bush (um aumento de 85 % desde 2001) tão pouco são de esperar reduções significativas.
   Os Estados Unidos manterão as suas despesas militares aos níveis actuais, próximas, portanto, dos 4 % do PIB. Será sobre outras áreas do orçamento que recairão as machadas e os cortes de bisturi.

                                        Tensão generalizada

   A consequência incontornável é um aumento da tensão entre Washington e os aliados, sobretudo europeus.
   Os 60 mil homens da Força de Intervenção Rápida Europeia terão efectivamente de se apresentar a serviço e não faltarão pressões de Washington para aumento dos actuais níveis de despesas em defesa da União Europeia (na ordem de 1,9 % do PIB), dos demais aliados na NATO, além da mobilização de militares e equipamentos para o campo de batalha no Afeganistão.
   Os programas de ajuda ao desenvolvimento e de erradicação de doenças no Terceiro Mundo dificilmente continuarão a ser financiados ao nível estabelecido pela administração Bush que canalizou para combate à SIDA, sobretudo em África, 18,8 mil milhões de dólares desde 1993. Nesta matéria caberá aos demais países da OCDE criticarem e colmatarem o desinvestimento norte-americano.
   A crescente dependência de investidores estrangeiros para financiamento da dívida federal, 9,7 biliões de dólares este mês, condiciona a futura administração e limita as opções da diplomacia norte-americana.
   Se a Reserva Federal aumentar as taxas de juro para atrair investimento criará condições para aumento de investimentos em acções de empresas norte-americanas e aplicações em títulos de longo prazo, mas deprimirá a actividade económica.
   Caso Bernanke e o Tesouro optem por uma política inflacionária a posição do dólar será afectada negativamente.
   Em qualquer dos casos Washington terá de levar em conta que 45 % da dívida pública está na mão de investidores estrangeiros, cabendo quase metade ao Japão e à China.
   No jogo de interdependências é muito grande a quota de dependência norte-americana.
   A tensão com o exterior tenderá a crescer dada a importância para a estabilização do dólar das reservas em divisas de países como a China e dos capitais dos fundos soberanos.
    Os investimentos de fundos da Arábia Saudita, dos Emiratos Árabes Unidos ou da Rússia estão dependentes do preço do petróleo e da evolução da cotação do dólar, mas se as tendências proteccionistas predominarem no Congresso (como aconteceu ao torpedear em 2006 a compra pela Dubai Ports das operações da londrina Peninsular and Oriental Steam Navigation Corp. em seis portos norte-americanos) outros fundos da China a Singapura poderão reduzir a sua presença nos Estados Unidos.
   Numa conjuntura recessiva um congresso de maioria democrata tenderá a rejeitar a adopção de acordos de comércio livre com a Colômbia e a Coreia do Sul, complicará as relações com os parceiros da NAFTA e levantará objecções a uma reforma das leis de emigração o que não facilitará as relações com os países da América Central e do Sul.
   O défice na balança de transacções correntes de Washington nada augura de bom para o retomar das negociações na Organização Mundial do Comércio e na falta de recursos para investimento em programas de energias alternativas e de conservação energética a próxima administração não conseguirá diminuir a dependência de fornecimentos do exterior e consequentes custos políticos.
   Arábia Saudita, Angola ou Nigéria ocupam lugar cativo nos interesses de Washington.
   Este défice energético dificultará as negociações na área do ambiente e aumentará as tensões com aliados e estados como a China e a Índia na definição de um programa global de contenção das mudanças climáticas.
   Estas são consequências previsíveis da actual conta corrente em Washington, mas outras crises prováveis na Coreia do Norte, em Caxemira ou nalguma das autocracias da Ásia Central poderão complicar ainda mais o cenário.
   Os próximos anos com Barack ou McCain vão ser agrestes e uma potência global em apertos financeiros tenderá a assumir comportamentos erráticos e contraditórios.


Jornal e Negócios
29 Setembro 2008

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