quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Depois de Soljenitsin



   Ao dobrar dos sinos no mosteiro de Donskoi a Rússia enterrou hoje Aleksandr Soljenitsin, o último dos seus profetas.

   O escritor morreu incompreendido e viu ignoradas as derradeiras exortações.

   Soljenitsin regressou à Rússia em 1994, após duas décadas de exílio e, ante o que considerou ser um estado de caos, empreendeu uma cruzada em defesa da "preservação da saúde física e moral do povo".

   Nos últimos anos, Soljenitsin - revoltado pelo colapso demográfico, pela degradação de valores imposta pelo legado totalitário e pela ganância materialista - pensou ter encontrado em Vladimir Putin um estadista que estava em vias de fazer valer os interesses da Rússia na arena internacional e de restaurar a autoridade e integridade do estado, num país desmoralizado e espoliado por oligarcas.

                                   Uma ilusão política

   Uma das razões que levava Soljenitsin a aprovar a política de Putin advinha da vontade de erradicação de uma elite tida por corrupta e inepta.

   No seu encontro com Putin em 2001, o escritor-profeta reiterou a necessidade de um poder presidencial forte, capaz de promover o retorno ao sistema de autogoverno local e regional dos conselhos territoriais instituído pelo Czar Alexandre II em 1864.

   Na solução preconizada por Soljenitsin para a "reorganização da Rússia", o profeta via igualmente com bons olhos a formação de "grupos de interesses orgânicos", mas um sistema partidário seria irrelevante se os deputados eleitos por regiões e distritos não respondessem directamente ante os seus constituintes a quem deveria assistir o direito de destituição e anulação de mandatos.

   Tal como Lev Tolstoi, também Soljenitsin se assumia como um escritor que encarnava a dissidência face ao estado, mas, chegada a hora da reconstrução dos poderes políticos, para o antigo preso do GULAG um novo regime teria de servir a nação, que é, essencialmente, uma pessoa moral obrigada a enfrentar a escolha entre o bem e o mal.

   A religiosidade russa, no entender de Soljenitsin, definia a nação e era apanágio das gentes simples, imbuídas dos princípios de perdão, arrependimento, penitência e sacrifício.

   Soljenitsin, à imagem dos seus predecessores eslavófilos, atribuía às reformas de Pedro, o Grande, a submissão da Igreja Ortodoxa ao estado a partir do início do século XVIII, a atrofia do espírito nacional religioso que visaria a contemplação da sabedoria e a presença de Deus na natureza.

   A degeneração da Igreja Ortodoxa, iniciada com as reformas de estilo grego do final do século XVII, tornara-a, por sua vez, cada vez mais alheia à tradição de ascetismo, a ideia perversa de acumulação de riquezas deturpara prioridades, a contaminação ocidental promovida por liberais alheios à tradição nacional abrira o caminho da ruína. Eis outros traços da mitologia de Soljenitsin.

   O liberalismo corroeu a nação, uma intelectualidade ateia contestou a pátria, a revolução de Fevereiro de 1917 afastou o Czar e uma orgia libertária levou à tirania de outra ideologia estrangeira, a marxista, imposta por agentes húngaros, letões, judeus e russos meio tártaros e judeus, como Lenin, que, em conluio com a Alemanha de Guilherme II, arruinaram a Rússia.

   É esta a Rússia de Soljenitsin.



                                A mitologia nacional

   A regeneração de uma Rússia impoluta, radicalmente oposta ao ateísmo triunfante em Outubro de 1917, só seria possível por via da assunção destes pecados da nação e através do retorno aos valores que as comunidades camponesas alegadamente cultivavam.

   O verdadeiro destino da Rússia encontrava-se nas vastidões do Norte. O Ártico é o verdadeiro oceano russo, as florestas europeias e a Sibéria, a terra de eleição, proclamaria Soljenitsin na sua Carta aos Dirigentes Soviéticos de 1973.

   O povo sempre fora sacrificado às ambições imperiais e às conspirações de ideólogos seduzidos por ideologias estrangeiras, eis a fé que guiou Soljenitsin a partir das terríveis provações que conheceu nas prisões e nos campos de trabalho forçado.

   Em nome da salvação de uma Rússia una e impoluta, muitos anos depois, Soljenitsin condenaria Boris Ieltsin por lançar, em 1994, a guerra contra os separatistas da Tchetchénia.

  Para o escritor, tchetchenos, tal como estónios, lituanos e letões, eram alheios à nação russa e dos escombros da União Soviética só deveria ser preservada a unidade estatal que congregasse todos os russos da Rússia, da Ucrânia, da Bielorússia e do norte do Cazaquistão.

   Já ao vislumbrar a ameaça de que os islamitas do norte do Cáucaso pudessem contagiar as minorias muçulmanas do Volga e dos Urais, Soljenitsin decidiu apoiar a decisão de Putin de empreender a segunda guerra da Tchetchénia em 1999.

   A questão judaica seria, também, abordada por Soljenitsin no início desta década e o seu nacionalismo radical revelou um pensador ambivalente ante os judeus assimilados, implicados nas catástrofes liberais e marxistas, e os judeus religiosos merecedores de admiração pelo mistério de preservação de uma nação na diáspora, cujo destino se revela, no entanto, trágico e misterioso.

                                         A revelação cristã

   A busca de um sentido da história, assente no valor da justiça cristã, é o vínculo que une o escritor da denúncia do sistema concentracionário - o autor de Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch, A Casa de Matriona, No Primeiro Círculo e do "ensaio de investigação artística" Arquipélago GULAG - e o visionário do ciclo A Roda Vermelha, uma epopeia em que uma massa imensa de testemunhos serve à ficção de momentos decisivos para explicar a catástrofe de 1917.

   O Soljenitsin da dissidência anti-soviética, o antigo preso do GULAG, proclamando o princípio da recusa de "viver na mentira", e que já nos anos 60 marcava a diferença face a ocidentalistas como Andrei Sakharov, teve, por força da sua coragem, brilhantismo e das circunstâncias o maior peso internacional na denúncia do sovietismo.

   O discurso de Harvad, em 1978, condenando a cobardia e degradação moral de um Ocidente materialista e ateu, assombrou, no entanto, os incautos das ideologias subterrâneas que resistiam na Rússia ao comunismo e revelou a estripe de conservador e nacionalista religioso ortodoxo do profeta.

   Vindo de outro mundo, proclamando perdão, remissão dos pecados e penitência para a redenção, Soljenitsin acabou incompreendido no Ocidente e após o seu retorno à Rússia viu-se ignorado.

   Os esforços de Soljenitsin em prol da preservação da memória da repressão comunista e a ajuda a ex-presos políticos pouco pesaram num país que recusa o confronto com o passado, os panfletos apocalípticos sobre a catástrofe nacional foram acolhidos com indiferença, o seu russo literário expurgado de excrescências estrangeiras assombrava as novas gerações, e até uma série televisiva adaptada em 2006 a partir de No Primeiro Círculo acabou vista como um testemunho de um tempo revoluto.

   Soljenitsin morreu fiel a si próprio numa Rússia que entre autoritarismos e petrorrublos não tinha lugar para um escritor com alma de profeta que acabou a clamar no deserto.



Jornal de Negócios
06 Agosto 2008

http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?id=326752&template=SHOWNEWS_V2

Sem comentários:

Enviar um comentário