sexta-feira, 7 de setembro de 2012

O fim de um reinado




   Às imagens dos confrontos em Banguecoque juntem-se o vídeo do príncipe herdeiro celebrando o aniversário do caniche real e fotografias de um monarca em cadeira de rodas e poder-se-á começar a ter uma ideia do que seja o fim de uma era.

   Na Tailândia um confronto político que opõe o grosso dos estratos sociais rurais e urbanos excluídos dos centros de decisão à preponderância das elites, enfeudadas numa teia de interesses negociada a partir do palácio real, degenerou num impasse.

   A doença e o conservadorismo cerceiam a capacidade do venerado rei Bhumibol, monarca desde 1946 e com 82 anos, de mediar consensos e o boom económico tailandês desde meados dos anos de 1980 gerou demasiados centros de interesses em conflito.

   As reticências da maior parte das classes médias urbanas em apoiarem um movimento com forte componente rural reflectem, ainda, um arreigado desprezo pelas populações rurais.

   A Tailândia é um país de acentuadas desigualdades sociais e regionais (49% do rendimento ou consumo cabe ao estrato dos 20 % mais ricos da população), mas o crescente nível educacional e capacidade económica de camadas sociais em ascensão do Norte e Nordeste gerou movimentos de protesto por uma repartição mais equitativa dos proventos do crescimento e maior participação política.

                           O fim da mediação monárquica
   A partir da instauração da monarquia constitucional em 1932 as forças armadas foram sempre a entidade tutelar do regime e a maioria dos 18 golpes militares que ocorreram desde então tendeu a desenrolar-se como um acerto político negociado entre as elites.

   Bhumibol mediou os conflitos entre facções do poder em conflito e interveio decisivamente para evitar que revoltas de movimentos populares de contestação a prepotências militares, designadamente em 1973 e 1992, degenerassem em maiores morticínios.

   Algo mudou, no entanto, com a eleição de Thaksin Shinawatra em 2001.

   O multimilionário das telecomunicações cuidou dos seus interesses empresariais por vias dúbias e ilegais, recorreu a métodos de violência extra-legal contra redes criminosas e reprimiu sem peias revoltosos nas províncias de maioria muçulmana no Sul do país.

   Ao promover políticas de crédito e assistência médica para as classes despossuídas e núcleos regionais emergentes, Thaksin criou, no entanto, uma dinâmica que levou à criação de um bloco inter-classista claramente oposto às redes tradicionais do poder.

   Thaksin usurpou mesmo a imagem de marca do trono na promoção do cuidado pelos desvalidos e transformou o assistencialismo real da tradição budista numa arma política.

   Ao golpe militar de Setembro de 2006 contra Thaksin, com conivência do palácio real, seguiu-se uma série de decisões judiciais interditando partidos apoiantes do ex-primeiro-ministro.

   Somaram-se a isso processos que culminariam na condenação de Taksin, fugido para o estrangeiro, em 2008 a dois anos de prisão e o confisco de mais de metade da fortuna pessoal do antigo chefe de Governo em Fevereiro deste ano.

                                         Amarelos e vermelhos
   O bloco pró-Thaksin voltara, contudo, a impor-se nas eleições de Dezembro de 2007.

   Irromperam então em força os protestos dos chamados camisas amarelas, em sinal de fidelidade à monarquia, de recorte marcadamente conservador e essencialmente urbano.

   Ao bloquearem os aeroportos da capital em 2008 conseguiram criar condições para mais uma investida judicial interditando outro partido pró-Thaksin.

   Defecções parlamentares levaram à queda do governo quando foi conseguido o número de deputados suficientes para formar um executivo de seis partidos de direita liderados por Abhisit Vejjajiva.

   Em protesto contra o Governo de Abhisit manifestações de camisas vermelhas obrigarem ao cancelamento da cimeira da Associação das Nações do Sudeste Asiático em Abril de 2009 na cidade de Pattaya, retomando ímpeto em Março nas marchas de protesto e barricadas de Banguecoque.

   Das bandas do palácio real surgiram apoios para sustentar o governo de Abhisit e a rainha Sirikit não hesitou em comparecer no ano passado ao funeral de um manifestante dos camisas amarelas morto em confrontos.

   A doença do rei obsta à negociação de consensos e, desta feita, a tendência de Bhumibol para governos conservadores e propiciadores do respeito pela hierarquia, lei e ordem, manu militari se necessário, inviabiliza qualquer abertura às reivindicações dos camisas vermelhas onde começam a assomar laivos de crítica à monarquia.

   Bhumibol conseguiu, a partir dos anos sessenta, converter a monarquia numa instituição largamente venerada como um esteio de méritos e virtudes na tradição budista e mesmo intervenções políticas de teor acentuadamente conservador na década de setenta não prejudicaram signficativamente a reputação do rei, mas, presentemente, o palácio está decididamente contra o tumulto da plebe.

   As leis de lesa-majestade impedem, por seu turno, qualquer crítica à família real e à rede de negócios e influências que irradia do palácio, mas a péssima imagem pública do príncipe herdeiro Maha Vajiralongkorn, de 54 anos, nada augura de bom para o futuro da monarquia e gera controvérsia mesmo entre os monárquicos mais devotos.

   O aparecimento em 2007 de um vídeo de uma festa privada do príncipe e de sua mulher semi-nua celebrando o aniversário do caniche real Fu Fu e constantes rumores sobre os interesses financeiros do herdeiro ao trono e a sua atribulada vida amorosa são óbvios sinais das desconfianças que Vajiralongkorn provoca até no seio das elites aristocráticas.

                                      A regra da instabilidade

   Thaksin, financiador de um movimento que o ultrapassa, é, por sua vez, demasiado controverso para possibilitar uma negociação política entre os sectores conservadores e demais líderes dos camisas vermelhas da Frente Nacional Unida da Democracia Contra a Ditadura.

    Ao assumir funções de conselheiro especial do Governo do Camboja, em Novembro de 2009, meses depois de nova ronda de escaramuças entre tropas cambojanas e tailandesas numa disputa fronteiriça, Thaksin assumiu uma atitude provocatária inaceitável para os círculos do poder em Banguecoque.

   Abhisit revela-se, por sua vez, por demais dependente do apoio das chefias militares divididas quanto à repressão de um movimento com forte apoio popular e diversos partidos da coligação governamental poderão optar por afastar o primeiro-ministro, sobre quem recai o odioso da repressão, antecipando as eleições agendadas para 2011.

   A antecipação das eleições para Novembro, que chegou a ser admitida pelo Governo ao tentar negociar a retirada dos manifestantes da capital, dificilmente solucionará a crise.

                                        Bloco contra bloco
   A vitória provável do Pheu Thai (Partido Pelos Tailandeses), formado em Setembro de 2008 por deputados que escaparam à interdição do Partido do Poder do Povo, sucessor do Thai Rak Thai (Os Tailandeses Amam os Tailandeses) de Thaksin dissolvido pelo Tribunal Constitucional em Maio de 2007, gerará contestação à direita tanto mais porque será exigida a revisão da Constituição conservadora adoptada há três anos e o julgamento de responsáveis do actual governo.

   Após sucessivas interdições dos tribunais anulando resultados eleitorais e intervenções militares, o movimento dos camisas vermelhas recusa legitimidade ao Governo e põe em causa a independência do poder judicial.

   Para os núcleos conservadores, por sua vez, apesar de não terem sido confrontados com movimentos grevistas ou actos insurreicionais generalizados, é inaceitável o advento da lei da plebe que ponha em causa, mesmo por via eleitoral, o regime monárquico e o acerto de interesses em vigor.

   A alternância eleitoral não tem legitimidade para qualquer dos blocos que passaram a contestar os resultados em manifestações de rua para paralisarem a capital do reino.
   Num impasse completo e ante uma sucessão real incapaz de gerar consensos a Tailândia entrou em deriva.






Jornal de Negócios
19 Maio 2010

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