quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Política da catástrofe

Bogaly, Birmânia, Maio 2008
   Na madrugada de 26 de Julho de 1976 um terramoto arrasou Tangshan.
   Todo o norte da China foi sacudido pelo sismo que devastou a cidade das minas de carvão e das porcelanas.
   Nunca se soube ao certo quantas pessoas morreram. Só em 1988 foi divulgado um balanço oficial de 242 419 vítimas, ainda que outras estimativas apontem para mais de 600 mil votos.
   Por mais de um ano Tangshan foi uma cidade entregue às almas penadas e a catástrofe que se fez sentir desde Pequim ao porto de Tianjin tornou-se em mais um dos segredos sinistros da Grande Revolução Cultural Proletária.

   Era o sempre temido Ano do Dragão, prenhe de ameaças, e o abalo de Tangshan foi visto como signo de desgraças maiores.

   Depois, a 9 de Setembro, morria o Grande Timoneiro e a luta entre o Bando dos Quatro e Deng Xiaoping atingia o paroxismo.

   O pequeno homem de Sichuan levaria a melhor no mês seguinte e com a prisão da viúva de Mao, Jiang Qing e dos restantes três “entes maléficos” chegava o princípio do fim do maoísmo.

   O grande terramoto de Tangshan fora mesmo o sinal da derrocada do mandato do céu maoísta.
  
                                    Evitar mais erros

   Neste auspicioso Ano do Rato a terra voltou a tremer em Sichuan.

   Temeu-se que a Barragem das Três Gargantas, a 760 quilómetros do epicentro, tivesse sido atingida, mas as águas do Yangtzé não assolaram as regiões mais férteis da China.

   Os herdeiros de Deng entre Novembro de 2002 e Abril de 2003 tentaram ocultar a dimensão da epidemia da Síndrome de Doença Aguda Respiratória (SARS) que eclodira no sul da China e no início deste ano foram surpreendidos pela gravidade das tempestades de neve no país.

   Nem o primeiro-ministro Wen Jiabao, nem o presidente Hu Jintao podiam claudicar desta feita e a rede regional de emergências, criada o ano passado e reportando directamente ao governo de Pequim, foi activada imediatamente, sem que a censura tivesse ocultado a dimensão do desastre, apesar de evitar referências às deficiências de construção da maior parte de edifícios e infra-estruturas numa região de grande risco sísmico.

   Gratos pelas ofertas de ajuda internacional os dirigentes chineses estão confiantes na sua capacidade para prover assistência às vítimas e conter as consequências gravosas do terramoto.

   Evitada a catástrofe na maior barragem hidroeléctrica do mundo o sismo de Sichuan afectará essencialmente a economia da província e das regiões limítrofes do sudoeste da China.

   O impacto do sismo, tendo em conta que a província Sichuan e o adjacente centro manufactureiro do município de Chongqing representam apenas 3,5 % da capacidade industrial instalada da China, será menor do que a carga negativa dos nevões de Janeiro e Fevereiro que, aliás, apenas afectaram ligeiramente a taxa de crescimento económico.

   A economia chinesa teve uma expansão de 10,6 % no primeiro trimestre deste ano, comparada com os 11,2% registados entre Janeiro e Março de 2007.

   Sichuan contribui com 9 % das colheitas chinesas de arroz e, neste particular, bem como na previsível redução das produções regionais de milho, soja, carnes de vaca e de porco, acrescidos os custos de reconstrução, far-se-ão sentir efeitos inflacionários indesejados numa altura em que a alta de preços anual ronda os 10 %.

   Toda a catástrofe natural põe à prova a eficácia administrativa de um regime político.

   No Ano do Rato reina em Pequim certa confiança de que o grande terramoto de Sichuan não insinue sinais de convulsão política.

                                       A desgraça no delta

   A meio caminho entre Rangoon e Mandalay, as duas maiores cidades da Birmânia, a junta militar contempla uma catástrofe sem comoção de maior.

   Acantonados na sua fantasmagórica capital de Nay Pyi Taw, poupada pelo tufão Nargis, os generais mostram-se indiferentes à calamidade do Delta do Irrauádi.

  Em Setembro do ano passado os militares puseram termo pela força aos protestos liderados por monges budistas nas regiões de maioria birmanesa, seguros da indiferença das minorias étnicas que constituem 30% dos 56 milhões de habitantes da Birmânia, e da conivência dos seus aliados e parceiros comerciais.

   Agora, a Junta abandonou à desgraça mais de milhão e meio de pessoas no Delta por considerar, correctamente, que a presença no terreno de agências estrangeiras, organizações internacionais, especialistas civis e militares em auxílio de emergência, colocaria em causa as estruturas militares de controlo e administração.

   O auxílio internacional, que começou por chegar de países como a China, a Índia, a Tailândia e a Indonésia, foi, assim, entregue à tutela directa das forças armadas birmanesas que recusaram a presença de especialistas estrangeiros.

   O desastre no Delta do Irrauádi vai, no entanto, custar caro ao regime porque na região atingida pelo Nargis se situam os maiores arrozais, bancos de pesca e explorações de aquicultura da Birmânia.

   A contracção económica será particularmente severa e agravará a miséria dos cerca de 18 milhões de birmaneses que subsistem com menos de um dólar por dia.

   Para a junta a degradação económica é questão de somenos enquanto os mais de 400 mil militares que consomem 40 % dos recursos orçamentais continuarem a ter condições para manter o controlo político do país que se arrasta desde 1962 e foi, outra vez, consagrado na nova constituição em referendo.

   Os generais birmaneses dão como adquirida a não hostilização por parte da China, principal parceiro comercial, maior investidor e fornecedor de equipamento militar, vitalmente interessada no acesso ao Oceano Índico e em manter as suas bases de vigilância electrónica nas ilhas Coco, no Golfo de Bengala.

   A abertura a investimentos estrangeiros iniciada nos anos 90 para exploração das jazidas off shore de gás natural (que asseguram mais de metade das receitas das exportações legais, sendo desconhecidas os proventos do contrabando, designadamente de madeiras e tráfico de ópio e anfetaminas) deu, ainda, novo fôlego ao regime e implica interesses da Índia, além da Coreia do Sul, Tailândia e Malásia.

   Acresce que países vizinhos como a Índia, Bangladesh, China e Tailândia têm presente que o colapso da junta militar apresenta o risco de desagregação do estado birmanês, uma entidade ameaçada desde a independência em 1948 pelos conflitos entre as etnias birmanesa, karen, kachin, shan, chin, só para nomear as principais comunidades.

                                     Sofrer até mais não

   A hipótese de forçar o fornecimento de ajuda internacional manu militari ao abrigo do princípio de “responsabilidade pela protecção”, adoptado pela Assembleia Geral da ONU (sem carácter vinculativo) desde 2005 para casos de “genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade”, não se aplica à situação na Birmânia.

   A necessária autorização do Conselho de Segurança para uma acção de assistência forçada deparar-se-ia com o veto da China e da Rússia e não colhe o apoio de estados tão diversos como a Grã-Bretanha, a Indonésia ou a África do Sul.

   A abertura pela força de um corredor aéreo implicaria riscos de segurança e seria ineficaz para distribuição de água, alimentos, medicamentos e mosqueteiros.

    Para mais só a presença no terreno de pessoal especializado permitiria instalar equipamentos sanitários e de purificação de água e prestar assistência à população.

   Não existem interesses políticos, nem justificações jurídicas para legitimar uma intervenção pela força.

   Acresce que, a prazo, a Birmânia com um sector de serviços incipiente, comércio internacional diminuto e concentrado nas trocas regionais, turismo pouco significativo, é um estado que, salvo corte drástico das trocas com a China, se pode considerar imune a boicotes e sanções internacionais.

   A primeira regra de regimes ditatoriais face a catástrofes naturais é preservar as estruturas de segurança e administrativas em que assenta o poder.

   Por vezes, a resposta pode revelar-se eficaz, como está a acontecer na China, país em que os fluxos de informação, a liberdade de movimentos e o crescimento económico já não permitem esconder a dimensão dos desastres naturais e ignorar a sorte das vítimas.

   Noutros casos, à imagem da Coreia da Norte, os interesses de preservação de regimes ao abrigo de pressões exteriores decisivas, geram uma reacção corrupta e brutal, conforme se assiste na Birmânia.

   A brutalidade e incúria da Junta birmanesa poderão provocar tal degradação da situação social no sul do país que leve a uma eventual perda de controlo por parte dos militares.

   A degradação, sofrimento e apatia de populações esmagadas sob o peso da fome e da miséria são, contudo, outro cenário bem conhecido da ditadura birmanesa.

   No Delta do Irrauádi é sofrer até mais não.



Jornal de Negócios
14 Maio 2008

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